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CRIME
O que é o ilusionismo?
Escritores e intelectuais opinam sobre o “manifesto” da facção criminosa PCC, divulgado pela TV
No dia 14 de julho, a TV exibiu um vídeo do PCC em que um porta-voz encapuzado da facção criminosa leu um “manifesto”, pedindo o fim, nas prisões, do Regime Disciplinar Diferenciado, que isola os líderes do crime no Brasil. Na leitura, o porta-voz aparentemente trocou a palavra “Iluminismo” por “ilusionismo”, no seguinte trecho: “O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP (Lei de Execuções Penais)”.
A pretensa citação do Iluminismo (movimento filosófico que defendeu desde o século 18 o primado da razão, da liberdade e do respeito ao indivíduo, opondo-se ao dogmatismo das religiões, ao obscurantismo das tiranias e à irracionalidade da guerra e da violência) por um grupo criminoso é comentada a seguir por intelectuais e escritores.
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Bernardo Carvalho
Escritor, autor de “Nove Noites” e “Mongólia”, entre outros:
Ilusionismo quer dizer artifício para fazer crer, para enganar. No analfabetismo da sua fala imbecil, o PCC apela para o “ilusionismo”. Quer discurso mais patético e revelador em seu antiilusionismo involuntário?
Carlos Alberto Dória
Sociólogo, autor de "Ensaios Enveredados" e "Os Federais da Cultura", entre outros:
O "ilusionismo" moderno só pode ser entendido como uma aplicação do mundo da máquina. Instrumentos e ferramentas usados na produção da aparência de realidade. Em 1769, o Barão von Kempelen, mecânico e personagem da nobreza húngara, construiu um enxadrista que exibiu nas principais cidades européias. A imperatriz Maria Tereza da Áustria jogou com ele uma partida. Em 1815, foi inventado outro autômato enxadrista. O cinema nasceu também nesse contexto ilusionista. Georges Méliès, ilusionista francês, reabriu o decadente teatro Robert Houdini e, ao ver uma sessão de cinema dos irmãos Lumière, decidiu que aquela seria a linha de novos desenvolvimentos do velho teatro ilusionista.
No Brasil, a grande escola de ilusionismo foi a de João Peixoto, e seus "peixotinhos", que levavam esse tipo de diversão para os salões da elite endinheirada, entre os anos 30 e 40 do século passado. No geral, há uma linha clara de desenvolvimento do ilusionismo que liga o mundo industrial, o cinema, a TV, o "mundo virtual". A política como espetáculo faz parte dessa tradição ilusionista. Podemos entender de modo diferente os famosos "complementos" cinematográficos de Primo Carbonari, à época da ditadura militar? Não faziam parte da arte da resistência as pixações em muros que proclamavam "Chega de Primo Carbonari!" -num claro clamor por "realismo"? Não vai na mesma linha boa parte da propaganda eleitoral? Até o PCC parece que se deu conta dessa similitude ao assumir as telas da TV Globo.
Helio Schwartsman
Jornalista e escritor, autor de “Aquilae Titicans – O Segredo de Avicena”:
Algumas piadas não podem ser explicadas, sob pena de as estragarmos. Acho que o “ilusionismo” cai nessa categoria.
Isabel Lustosa
Cientista política, autora de "As Trapaças da Sorte" e "D. Pedro I - Um Herói Sem Nenhum Caráter", entre outros:
Ilusionismo é a melhor síntese para o momento histórico em que vivemos, em que as palavras e as ações dos homens públicos são usadas mais para iludir do que para esclarecer. Ilusionismo é a situação em que o Estado parece estar, ausente ou sem força para impor a lei, deixando os cidadãos a mercê das regras ditadas pelos criminosos.
José Galisi Filho
Doutor em germanística pela Universidade de Hannover (Alemanha):
Ao ler o “manifesto” da facção criminosa, lembrei-me inicialmente da primeira sequência de “Brazil”, de Terry Gilliam. Uma bomba explode num shopping às vésperas do natal. Corte. A moderadora do telejornal pergunta ao primeiro-ministro a que se deve atribuir a recente onda de atentados. “À falta de espírito esportivo dessa gente”, ele responde. Uma falha de impressão de apenas uma letra no mandado de busca contra um conspirador, causada por uma inseto, leva à execução de um inocente, um modesto pai de família. A burocracia encaminha as desculpas protocolares à família. Hitler jamais conseguiu entender por que Churchill não se curvava ao seu “apelo à razão” para conservar o Império Britânico, quando a Blitz incendiava Londres. O conservador Churchill, como observa Eric Hobsbawn, que se enganara a respeito de quase tudo, nunca teve nenhuma ilusão sobre o Fuehrer desde que o acompanhara em campanha como jornalista, antes de 1933.
O próximo a ser citado pelo PCC será certamente Theodor Adorno, sobretudo o capítulo sobre Juliette e o fragmento de abertura das “Notas e Esboços Contra os Que Têm Respostas para Tudo” -“Os inteligentes sempre facilitam as coisas para os bárbaros, porque são tão estupidos”-, da qual é prova a filosofia de botequim do governador de São Paulo. Ao que tudo indica, o PCC deliberadamente trocou a palavra para mandar um recado ao pé da letra à imprensa “ilustrada”: “a vida de um jornalista para nós não vale nada -e fiquem espertos”.
Juremir Machado
Escritor e jornalista, autor de "Cai a Noite Sobre Palomas" e “Getúlio” , entre outros:
O ilusionismo do PCC é um iluminismo que perdeu a clareza e mergulhou no obscurantismo por excesso de exposição aos raios catódicos. De certa forma, mesmo que não tenham lido Guy Debord, os bandidos sabem que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. O PCC, com seu vídeo global e suas operações mortíferas, é o crime na era do espetáculo, uma ilusão de verdade com truques mágicos e de marketing criminoso. Fica assim: o crime não é um conjunto de mortes, mas uma relação social entre indivíduos mediada por imagens.
O ilusionismo do PCC inaugura, no Brasil, o crime da sociedade “midiocre”. As palavras perdem a importância ou assumem novos significados. No entanto, o erro parece descobrir (desocultar, desencobrir) alguma coisa de essencial: no iluminismo havia uma ilusão de verdade e de racionalidade. O PCC, portanto, é a definitiva superação da metafísica e um exercício de hermenêutica aplicada.
Luiz Recaman
Arquiteto, professor da faculdade de arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo:
Ilusionismo é um estado da consciência contemporânea própria do estágio atual do Iluminismo avançado. Implica tanto a habilidade em criar ilusões quanto a capacidade de acreditar nelas. Tendência mais evidente em sítios onde a própria Ilustração era ela mesma uma ilusão. Nesses casos, constitui atualmente a ilusão da ilusão, ou ainda, o avesso do avesso.
Marcio Seligmann-Silva
Professor de teoria literária na Unicamp, autor de "Ler o Livro do Mundo: Walter Benjamin, Romantismo e Crítica Poética" (Iluminuras) e “O Local da Diferença”:
Realmente é revelador o “ato falho” do porta-voz do PCC, quando leu a mensagem levada ao ar pela Globo no dia 14. Segundo o encapuzado, “o Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo (sic) e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP (Lei de Execuções Penais)”. Atos falhos, como ensinava Freud, revelam algo que “deveria ter ficado escondido”. No caso em questão, um mascarado vai ao principal canal de televisão aberta do país para pregar uma moral humanista que descenderia do Iluminismo, o termo não-dito pelo mascarado. Vejamos quais revelações podemos ler nesta pequena peça política involuntária.
Primeiro pensemos na passagem do termo “Iluminismo” para “ilusionismo”. “Ilusionismo” vem do latim “illudere” (zombar, brincar), e significa o ato de iludir, de enganar. Já Iluminismo, é claro, vem de uma metáfora luminar, que remonta à filosofia antiga, que via no sol um paralelo das Idéias perfeitas, e na sombra e na escuridão, o local do engano e da dissimulação. No ato falho em questão, portanto, o Iluminismo escorrega para o que parece ser o seu “oposto”.
A filosofia das luzes do século XVIII pensou que seria possível uma universalização do modelo e do pensamento racional então valorizados. Voltaire, D’Alembert, Diderot e outros participantes do projeto da “Enciclopédia” acreditaram na verdade deste modelo de razão e da ética que a ele se vinculava. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, é um dos documentos desta nova ética. Ela estabelece a felicidade como o objetivo da sociedade e impõe limites ao governo e à aplicação das leis e das penas. Seu princípio ético secular mandava que não deveríamos fazer ao outro, aquilo que não queremos que seja feito conosco.
Cabe a pergunta aqui, após séculos de aplicação desta doutrina, se ela não seria de fato um tanto ilusória... Afinal, sabemos que qualquer Estado e todo governo defendem os interesses não da maioria, mas sim de uma pequena minoria. Com Nietzsche e Walter Benjamin, sabemos que todo poder equivale à violência.
Por outro lado, não é menos verdade que devemos preferir os ideais humanistas à ausência destes ideais. Podemos pensar nas regras do Iluminismo, por mais ilusórias que elas se revelem na prática, como ideais que podem servir ao menos para criticar os “abusos” do poder. Existe, portanto, uma certa luz nas palavras (ilusórias) do Iluminismo. Depende de como e quando estas palavras são usadas. Depende talvez também da resistência destes ideais ao seu uso hipócrita.
Mas o que é realmente impressionante na fala do encapuzado é que ele é um representante dos fora-da-lei de São Paulo, ou ao menos de uma facção deste grupo, o PCC. É ele quem vem pregar o respeito ao espírito do Iluminismo. Talvez isto não seja surpreendente na nossa sociedade brasileira, ou seja, em plena República do Mensalão (ou ainda, na República da Cueca, República dos Sanguessugas etc.). Quem pode hoje em dia se arvorar a dar lições de ética neste país? Certamente não os nossos donos do poder, de qualquer um dos três poderes, aliás.
A fala do encapuzado é apenas mais um pequeno capítulo que revela nosso atual desmonte das instituições políticas. Ela aponta para o fato de que já não se pode mais minimamente estabelecer uma fronteira entre o dentro e o fora da lei. Qualquer tentativa de se traçar este limiar neste país logo se mostra ilusória. A diferença parece ter ficado apenas entre os que estão do lado do aparelho de violência do Estado e os que não dispõem dele para seus atos ilícitos. Será isto o melancólico desmascarar do ilusionismo do Iluminismo?
Nem mesmo a potente arte de ilusionismo de nossos canais de TV pode ocultar este quadro.
Marcos Nobre
Professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, co-autor de "Participação e deliberação - Teoria democrática e experiências institucionais no Brasil Contemporâneo":
A atitude mais inconseqüente que pode haver neste momento é discutir uma firula como o "ilusionismo" do texto do PCC. Até o momento, são três as posições que apareceram sobre esse "fenômeno lingüístico": trazer à tona preconceitos de classe travestidos de piada sobre a ignorância dos presos; flertar com desconstruções lingüísticas e construções de verniz filosófico raso que, no fim das contas, só fazem glamourizar o manifesto; delirar sobre um potencial contestatório do PCC, da mesma forma como há quem veja potencial revolucionário em atos terroristas de fundamentação pretensamente islâmica. Em qualquer dos casos, trata-se com leviandade o que é certamente o problema social mais relevante do momento. Ilusionismo de verdade é o escapismo de tratar o assunto como se nada de muito grave estivesse acontecendo e como se coubesse sempre a alguém outro resolver o problema enquanto se faz chicana.
Maria Rita Kehl
Psicanalista e ensaísta, autora de "Ressentimento" e "Sobre Ética e Psicanálise", entre outros.
"Ilusionismo": efeito colateral de uma corrente filosófica nascida no século XVIII que acreditava que o homem pudesse ser governado pela razão.
Milton Hatoum
Escritor, autor de "Relato de um Certo Oriente" e “Cinzas do Norte”, entre outros:
Ilusionismo é o efeito que certas coisas reais produzem no espírito das pessoas que as vêem de modo distorcido. Por exemplo: dizem que PCC é a sigla de uma nova agremiação política: Partido de Congressistas Corruptos. É um ilusionismo, porque no Brasil não há políticos nem poderes corruptos. Tudo o que está acontecendo -corrupção em todos os poderes, impunidade, violência, seqüestros, sanguessugas- é um livre exercício de alucinação coletiva do povo brasileiro. Afinal, sempre fomos alucinados ou adeptos da ilusão.
Ricardo Musse
Professor no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP):
"Ilusionismo" talvez seja a percepção concreta, experimentada na própria carne, do logro inerente ao discurso liberal no capitalismo, seja em sua forma tradicional ou na versão neo. Extraída do contexto, dir-se-ia que se trata de um "ato falho", ou de uma troca de equivalentes, perpetrada por um leitor atento de Robert Kurz, autor que popularizou em artigos de jornal a crítica do fetichismo e da Aufklärung desenvolvida por Marx e desdobrada por Adorno e Horkheimer.
Vladimir Safatle
Professor do departamento de filosofia da USP, autor de "A Paixão do Negativo" e "Um Limite Tenso", entre outros:
O lapso entre "Iluminismo" e "ilusionismo" cometido pelo porta-voz do PCC não é exatamente uma novidade. Usar critérios normativos de validade para justificar interesses particulares é um procedimento tão velho quanto o próprio Iluminismo, o que nos faz pensar que talvez o problema esteja nos próprios critérios normativos. De qualquer forma, esta não é a primeira vez que vemos o discurso dos direitos humanos sair da boca de quem o nega. Na verdade, a lista é grande. Se quisermos procurar algum sistema de ilusões talvez ele esteja na nossa crença de que algo como o PCC poderia não ser uma fatalidade nacional. Como fomos capazes de acreditar que, com nossa fratura social e uma política de segurança local baseada exclusivamente em extermínio, encarceramento e ignorância, estávamos livres de algo como o PCC? Responder tal pergunta talvez seja a melhor maneira de encaminhar uma discussão sobre o "ilusionismo" em nossas praias.
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