domingo, 14 de agosto de 2011

Entrevista com ex-Presidente alemão Richard von Weizsäcker


No final de maio deste ano, uma comissão de notáveis presidida pelo ex-presidente alemão Richard von Weizsäcker entregou ao Chanceler Schröder um relatório de 100 páginas que quebrava um tabu num país que já teve a iniciativa de desencadear neste século duas guerras mundias: a flexibilização e supressão tendencial do serviço militar obrigatório. Dez anos depois do fim da Guerra Fria e de sua Reunificação, a Alemanha empreenderá uma reforma adminstrativa radical em sua Bundeswehr, que reestruturá o eixo do conceito de defesa continental europeu e de seu papel dentro da OTAN. A Alemanha, que participou no Kosovo com um pequeno efetivo, sob o fogo cruzado das bases da coalização dirigente rote-grüne, pretende, finalmente, entender-se no mundo como uma nação “normal”, com direito a um exército regular, despedindo-se dos clichês de seu passado. O mundo parece ainda não ter entendido, mas a Alemanha tem em comum com este passado apenas o seu nome. Weizsäcker fora soldado da Wehmacht de Hitler na sua cruzada de extermínio contra o bolchevismo soviético. Mas como membro de um regimento da elite prussiana do exército, pertencia também ao círculo que conspiraria com Stauffenberg para eliminar o Führer, quando os Aliados já estavam às portas de Paris em julho de 1944.
Poucas personagens da história recente da República Federal encarnam de maneira tão ambígua esta tarefa em relação ao passado, e talvez apenas uma tenha brilhado tanto por sua sutileza retórica e pela capacidade em usar a palavra certa no momento exato. Para o ultra-consevador bávaro do CDU Joseph Strauss,

eterno candidato a Chanceler, o ex-presidente Richard von Weizsäcker era simplesmente o “mestre das palavras” e o “preferido” da mídia. Contudo, se a história da República Federal foi determinada desde o seu início, sobretudo durante o auge da Guerra Fria, pela busca de um centro moral em figuras patriarcais, como o primeiro Chanceler Adenauer,

o carisma de Weizsäcker e o consenso que sua figura projetou ao longo dos dez anos em que permaneceu no cargo entre 1984 e 1994, racionalizaram a autoridade e seus fantasmas e ganharam um valor emblemático, pois a ideía mesma deste centro ruía para sempre no processo que conduziu à reunificação e até hoje não foi mais ocupado.

Pragmatismo Kantiano

Autocrontrole, renúncia e o rigorismo da noção de dever moral compõem em Weizsäcker uma mescla de luteranismo e kantinsmo, justamente na discrição e extrema elegância de quem se mantém sempre preso a um protocolo e à disciplina do pensamento de quem faz um uso público da Razão. Profundamente marcado pela tradição de uma família aristocrática da Suábia e pelas virtudes tradicionais de uma educação prussiana de início do século, Richard von Weizsäcker, que completou oitenta anos em abril, reúne algumas virtudes anacrônicas que simplesmente o incompatibilizam com o ritual partidário moderno, a saber, a auto-encenação e a fiedelidade permamente ao lugar-comum em torno do qual o poder se exerce em nome de uma idéia abstrata de maioria, naquele domínio weberiano da instrumentalidade adminstrativa. Se a política somente pode ser pensada hoje em função de seus processos autoregulatórios e reagentes ao problemas do mundo exterior - daí a absoluta imunidade dos políticos às exigências éticas -, Weizsäcker defende uma concepção muito substantiva de racionalidade e autonomia para caber dentro dela. O ex-presidente não é um pensador político, sequer um filósofo como seu irmão Carl Friedrich,

mas entende-se, na verdade, antes como um “pragmático” no sentido kantiano do termo. Este pragmatimo não diz respeito, de fato, ao “conteúdo” dos valores em si, pois a moralidade para Kant pressupõe sempre a liberdade na medida em que a Razão estabeleça por si aquilo que se deva obedecer no terreno da conduta. Não basta apenas apelar a esta liberdade em sentido abstrato, mas é apenas esta que atribui, em seu exercício, um conteúdo a um sistema de valores numa ética da consciência. Este deveria ser o ponto de fuga da ação política como universalização dos intereses da Razão. A confiança de Weizsäcker na capacidade do convencimento racional pelo dialógo fazem-no recusar, já de antemão, a ilusão tradicional de política como representação e delegação de interesses.



Figuras

Durante uma década, Weizscäker e Kohl formaram um dos contrapontos mais interessantes da história política republicana alemã. Foi na verdade o ex-Chanceler, nos anos sessenta, então uma jovem estrela em ascensão no CDU renano, que descobriria no brilho retórico de Weizssäker o político e moderador que poderia revigorar o coeficiente de inteligência e a combatitividade de seu partido no debate parlamentar, ampliando sua rede de influências. Foi Kohl que lançaria Weizsäcker à prefeitura de Berlin em 1981, uma cidade falida, com um desemprego recorde e problemas habitacionais de Terceiro Mundo como a ocupação ilegal de centenas de imovéis. Weizsäcker mostrou, mais uma vez, seu talento de negociador, dialogando com o amplo espectro alternativo que ia dos verdes até os grupos anarquistas, em vez de optar por uma solução policial. Mas se Kohl inciara seu primeiro mandato em 1982 com a assim chamada “virada moral” era Weizsäcker, de fato, que parecia desempenhar este papel até o final dos oitenta. Enquanto Weizsäcker revela-se um intelectual cosmopolita, Kohl parecia ser apenas um político provinciano e bisonho.

Mas foi justamente desempenhando este papel que Kohl bateria todos seus adversários, sobretudo em seu partido, sob o qual escondia-se uma sede nata de poder. Se até certo ponto Kohl e seus colaboradores incomodavam-se com a popularidade do presidente, a aceleração do relógio histórico a partir de 1987 fez simplesmente os acontecimentos correrem em sua direção, até ser consagrado como o “grande estadista” por Georg Bush. Weizsäker costuma repetir que não se pode negar a Kohl o mérito ter sabido aproveitar a “oferta da hora” e de atrelar a Reunificação alemã no processo de União Européia, mas a distância entre ambos somente aumentou nos anos finais do seu segundo mandato.

O ex-Chanceler cairia em desgraça e seria defenestrado pelo próprio partido depois do escândalo caixinhas no final do ano passado. Já com o “pragmático visionário”, Willy Brandt o contraste de personalidades tinha como pano de fundo a convergência da atuação intensiva de Weizsäcker na Ostpolitik.

Mas enquanto Brandt era oriundo de um meio operário no norte da Alemanha, Weizsäcker era proveniente de uma rica família burguesas. Brandt havia emigrado para Noruega tão logo Hilter chegara ao poder, enquanto Weizsäcker seria tenente da Wehrmacht na Rússia. Em 1946, enquanto Brandt trabalhava como jornalista para jornais escandinavos, Weizsäcker participava como assistente de defesa de seu pai em Nuremberg, Carl Ernst von Weizsäcker, por colaboração no Ministério de von Ribbentrop.

Weizsäcker, ao contrário de Brandt não ingressara na carreira política nos anos de reconstrução, mas participou do conselho executivo da Mannesmann nos anos do milgare ecoômico, até ingressar finalmente no CDU em 1954.

Comunitarismo e coragem civil

Foi justamente em 1992 no momento mais crítico da reunificação, quando o espectro da anarquia da República de Weimar estava nas ruas e criancas, mulheres e trabalhadores estrangeiros eram assassinados por jovens desocupados,

que Weizsäcker perdeu finalmente sua “modéstia” e paciência diante da classe política: “A República de Weimar não fracassou porque desde muito cedo havia muitos nazistas, mas por que durante muito tempo havia muito poucos democratas”. Dois anos antes, Weizsäcker proclamara a unidade alemã diante do Reichstag em 3 de outubro de 1990, afirmando que a Alemanha “desejava servir a paz do mundo”. Mas esta mesma Alemanha adintou-se em reconhecer a indenpedência da Eslovênia e da Croácia, sabendo que não poderia impedir a carnificina que se seguiria isto.

Diante do teatro das pulsões de uma nova subjetividade balcânica da guerra civil molecular, desatrelada finalmente de vernizes ideológicos,

diante de Maastricht, que regulamentava num mesmo anexo o trânsito de estrangeiros à criminalidade comum, uma nova forma autista de violência desafiava a soberania kantiana da Razão.
Durante uma visita aos Estados Unidos, a pátria do darwinismo social, o ex-presidente lançou um ataque a toda classe política e à estagnação do sistema partidário alemão e sua “Verdrossenheit” apatia. Diante dos novas regras do jogo da concorrência internacional, os alemães seriam as primeiras vítimas se não tivessem imaginação em reiventar a política além dos partidos. Weizsäcker exigia dos cidadãos a revigoração do sentimento da coragem civil e da ação espontânea comunitária, tentando salvar o individualismo ou a noção de sujeito corrompida por este darwinismo liberal anglo-saxônico.

Se o sistema partidário falira, existia pelo menos uma sociedade civil moralmente ativa, cujos valores poderiam e deveriam ser reabilitados. O repúdio da população ao ódio aos estrangeiros era maciço, levando milhares de pessoas às ruas das principais cidades em vigília, mas não havia mais dos políticos respostas rápidas, sequer da polícia.

Para Weizsäcker, a reunificação estava corrompendo finalmente o credo da economia social de mercado, uma conquista cujo preco os alemães nao poderiam esquecer diante de sua história sangrenta. O mal-estar generalizado pela erosão do sistema partidário unia explosivamente o sentimento de impotência individual aos novos processos de dessolidarização. Kohl e sua coalização em sua sede de poder conseguiram a proeza de elevar o desemprego estrutural à cifra de 5 milhões, um índice recorde desde a República de Weimar,

o que parecia apenas confirmar do ponto de vista prático, para a maioria silenciosa, a incapacidade da democracia parlamentar de reverter o curso de desastre. A extrema-direita juvenil crescia nos novos Bundesländer, confirmando a velha idéia de Carl Schimitt, de que a política deveria ser substituída finalmente pela polícia. Para aumentar o cinismo no início dos anos noventa, um novo termo anglo-saxônico integrava-se ao vocabulário político: o “politicamente correto”, mas a própria sociedade civil ao qual Weizsäcker apelava não encontrava mais substância para o renascimento de uma cultura política, abalada por escândalos financeiros e pelos custos fiscais de uma Reunificação que fracassava moralmente.
Retomando uma declaração de Hans Maguns Enzensberger, Jürgen Habermas afirmava que depois da Reunificação alemã uma “segunda mentira” vinha novamente à tona, cuja origem fora lançada nos anos de Adenauer: o fato que “todos os alemães eram democratas”.

Mas era justamente esta apatia “Verdrossenheit” com a política que dava a Alemanha justamente, segundo Habemas, a idéia de ser novamente um país “normal”.


Weizsäcker dava exemplos, ia aos alojamentos de estrangeiros, escolas, asilos, conversava e ouvia pacientemente. Depois do bárbaro de uma família turca em Solingen, 1993,

Weizscäcker viaja à Turquia, onde acompanhou em lágrimas o enterro. A despedida do antigo Estado e sua tutela moral deixava claro que não havia mais modelos e, neste sentido, assumir o motor da unidade européia de Kolh parecia um slogan cínico e vazio. O que se via nestes anos era muito menos a articulação de novas forças políticas, do que a prórpia divisão do espectro conservador, que culminaria com a avasaladora vitória de Schröder e da coalizão SPD Verdes em 1998.
Em novembro de 1992, em Berlin, durante uma demonstração contra o ódio aos estrangeiros, Weizsäcker é apedrejado em seu palanque por manifestantes de extrema-direita, que não mais se intimidavam sequer com a polícia e gritavam em coro: “A Alemanha para os alemães”.

Weizsäcker responde categórico e soberano: “Não, o artigo número um da Constituição alemã não afirma que a honra do alemão e intocavél, mas a honra do Homem. A Alemanha não é um tijolo, mas uma palavra que vive em nosso coração. Esta é a nação de Goethe e Kant, esta é a Alemanha que brilha em nosso coração”. O patriotismo de Weizsäcker parecia ser a tradução de um “sentimento íntimo” de ser alemão, para falar com Machado de Assis, que não é a fatalidade de falar uma língua, nem tampouco pertencer a um lugar, mas que é a prova mais acabada da universidalide do projeto da Razão. A Alemanha espiritual de Weizsäcker não é uma fatalidade, mas antes uma tarefa, que somente uma concepção orgânica de cultura e formação poderiam resgatar.
Weizsäcker sempre teve um relação muito estreita com artistas da vanguarda e nunca escondeu sua paixão pela filamônica. Joseph Beuys, e em especial, Heiner Müller foram reconhecidos pelo ex-presidente como modelos de uma liberdade estética que poucos artistas do presente atingiram. Müller, o filho rebelde da ex-RDA fora um artista da consciência dialecerada alemã, e Beuys, ex- piloto da Lutwaffe, pretendia estender o território estético à política ao declarar que todos éramos artistas.

“A capacidade de enxergar a verdade nos olhos”

No centro da trajetória de Weizsäcker como presidente está o seu célebre discurso sobre os 40 anos da capitulação incondicional do Terceiro Reich.

Desde Theodor Heuss,

o primeiro presidente da República Federal em 1949, esta data sintetizava a ambigüidade moral de um país fundado sobre ruínas. Heuss afirmava que o “paradoxo da História” estava justamente no fato de que a “redenção” significava também o “extermínio” da Alemnha como nação. E esta ambigüidade projetava imaginariamente também o mito de uma suposta “hora zero” na qual se bloqueva o trabalho efetivo da culpa e da reminsciência. Heinrich Böll resumiria muito bem este paradoxo na forma da “espera de uma liberdade” que vem, paradoxalmente, do “próprio inimigo”. A libertação era também uma derrota militar, na verdade, uma capitulação.

Depois de décadas de oscilação entre os clichês de uma culpa genérica ou do recalque e esquecimento, Weizsäcker tratará do tema em 1985 com soberania: “Nós temos a capacidade de ver a verdade nos olhos”. Nunca em toda a história política da Alemanha federal, um representante de Estado utilizará uma retórica tão inequívoca no reconhecimento da culpa pelos crimes do passado nazista, bem como procurará uma historicização do Terceiro Reich, sem ceder, num único instante, à sua completa peculiariade como tirania em resposta ao revisionisnmo de Ernst Nolte e da Polêmica dos Historiadores. Três verdades desconfortáveis articulavam o argumento de Weizsäscker, que teriam, sobretudo, um efeito inquietante na Alemanha reuinificada: a prioridade do motivo da libertação, a dificuldade em enumerar todas as vítimas do nacional-socialismo e devolver aos próprios alemães o direito à prórpia memória confiscada, e, por último, uma avaliação crítica da tema colaboração civil e pela individualização da culpa: “O 8 de maio é a data de nossa libertação... Mas não devemos nos esquecer que as causas deste descaminho da história alemã não estão no fim, mas sim no início, no 30 de janeiro de 1933”. O discurso teve um efeito estrondoso, sobretudo no exterior, e sua ressonância foi resultado, em parte, de um incidente diplomático.

A recente viagem de Reagan à Europa terminara num escândalo com a visita ao cemitério de Bitburg, no qual Kohl planejava um novo gesto de “reconciliação” com os americanos, semelhante ao do ano anterior ao dar a mão a Mitterand em Verdun.

A imprensa americana já bombardeava de antemão esta tentativa, pois se sabia sabia que naquele cemitério estavam enterrados vários SS, com os quais não pdoeria haver qualquer reconciliação. Nos quarenta e cinco minutos que Weizsäcker utilizou para lê-lo, algo mudava para sempre na autoconsciência da República Federal diante de si e do mundo.

Maioridade intelectual

Discreto e cerimonioso, Weizsäcker recebeu “República” em seu escritório no centro da capital alemã, em frente ao Museu Pérgamon, no dia 4 de julho, Dia da Independência americana. A conversa estendeu-se por quase duas horas. Weizsäcker considerou legítimas de “um ponto de vista estético”, algumas das colocações que fizera, mas lembrou-me, outras vezes que ficaria cirscunscrito apenas às “regras do debate racional”, se quisesse ideologizar algumas de minhas posições “radicais”. Confessou-me, no fim, que tinha, no fundo de seu seu coração muitos coisas contra o capitalismo e sobretudo contra a “hegemonia solitária” americana, que se acreditava ainda “invulnerável”. No final, entregou-me um exemplar das memórias de seu amigo Axel von Bussche, que conspirara com Stauffenberg para eliminar o Führer.

Bussche acreditava que, em função da sorte um tanto suspeita de Hitler, que sobrevivera já a uma dezena de golpes, somente um lance suicida seria capaz de ter êxio, mas é ferido em combate semanas antes. O atentado fracassou na tarde de 20 de julho de 1944. Antes de sairmos da sala, aponta-nos para uma pequena estátua de Kant sobre a prateleia: “o homem é responsável por sua própria minoridade intelectual”, afirma.

José Galisi Filho

REPÚBLICA - Lutero afirmou certa vez que mesmo se o mundo pertencesse inteiramente ao demônio, entao nao haveria mais motivo para termos medo e, assim, haveria ainda uma chance para a graça.

Neste entretempo, o mundo tornou-se inteiramente capital e para onde se olhe, enxergamos apenas as leis abstratas do mercado. Para o economista britânico John Gray, o capitalismo atual tornou-se quase que uma “religião civil mundial” americana. Já historiadores como o americano Luttwak denominam este estágio produtivo das forças do livre-mercado de “turbocapitalismo”. O “Segundo Fausto” de Goethe, encenado por Peter Stein na Expo 2000 de Hannover, revela-nos um megaempreendedor, quase um “Fusionierer”, que opera nas bolsas do mundo a mescla entre real e irreal, numa empreitada que começa, ironicamente, com a reforma financeira de um pequeno Estado, até ganhar a forma final do “imperialismo da subjetivade moderna” no teatro do mundo.



Ora, se o capitalimo é uma religião civil, a quem pertence ou deveria pertencer o privilégio da graça hoje, pois, ao que tudo indica, este jogo exclui, do ponto de vista lógico, todos seus participantes e já está de antemão decidido, como na célebre aposta com o demônio.

Richard von Weizsäcker - O que você está me colocando não é uma questão, mas já uma interpretação do mundo com acentos críticos perspicazes - que reputo interessantes -, mas com muitos dos quais também não posso concordar, e também nem estaria, tampouco, na posição de avaliar em seu conjunto.

Não acredito, por exemplo, que o mundo tenha se tornado apenas e tão somente Capital. O mundo é muito mais do que aquilo que corresponde às raízes e às finalidades do Capital. Nós não desejamos e não viveremos nunca sob um domínio exclusivo do Capital. A tentativa de fazer do capitalismo uma forma de religião acabada está destinada a fracassar. Recomendaria atenção com o conceito de religião civil.

Também na avaliação do americanos meu acento recairia em outro ponto. Sem dúvida, eles se prescreveram uma fórmula econômica capitalista, que, em seus abusos, poderia ser denominada também de turbocapitalismo. A maneira e a forma pela qual os americanos se apresentam no mundo é uma mistura muito peculiar.

Por um lado, eles perseguem, naturalmente, interesses materiais e políticos globais bastante concretos. Isto não deveria ser uma surpresa. Sua própria história e tradição constitucional os vocacionam igualmente à democracia e ao respeito de direitos humanos. Certamente, eles também infringem freqüentemente estes objetivos e fundamentos. Da mesma maneira, eles também se entendem como missionários globais em relação a estes objetivos. Isto é, em princípio legítimo, embora degenere muitas vezes na presunção, na arrogância.

Você fala em privilégio da graça. Não consigo entender muito bem esta afirmação. A graça não é um privilégio. Sua questão principia com uma citação de Lutero. A afirmação central de Lutero é que a prova da salvação vem apenas da graça de Deus. A graça é definida justamente pelo fato de que ela não é um privilégio, nem tampouco que a mereçamos ou não, ou mesmo possamos reivindicá-la, senão que o homem está destinado aos desígnios insondáveis da misericórdia de Deus.

A globalização estende-se em todos os domínios da ciência e da técnica, trazendo em si a precedência dos interesse econômicos e de seus riscos ecológicos. Este processo ocorre praticamente sem um espaço legal e moral previamente definido. Considero como a mais urgente tarefa do presente a criação, passo a passo, de um espaço moral e legal para esta globalização. Não desejamos e não devemos nos submeter a uma religião civil e, desta maneira, condenar a maioria da humanidade à miséria e ao desaparecimento.

REPÚBLICA - Os movimentos das fusões de capital sequer parecem arranhar política, ou por aquilo que ela ainda imagina regular. Não seria talvez uma grande ingenuidade dos políticos atuais da Terceira Via acreditar que será possível combinar, nem que em tese, a economia social de mercado com o jogo implacável da nova concorrência? Como o Sr. vê a retórica da “Terceira Via”, justamente levando em conta o seu percurso de empresário antes de chegar a política em 1969?

Richard von Weizsäcker - Temos de reconhecer inicialmente que numa democracia parlamentar luta-se por uma maioria que se espera conquistar na centro do potencial dos eleitores. Desta forma, os partidos acabam se deparando, em sua concorrência pela maioria nos países industrializados da Europa, num problema bastante semelhante: por um lado, um país deve procurar preservar sua capacidade concorrencial numa sociedade mundializada e sem fronteiras.

Contudo, não se pode manter esta capacidade quando os altos custos de nossos produtos, de fato, seus custos sociais não podem ser assimilados neste mercado mundial. Por outro lado, pertence à tarefa central de um governo manter a coesão social e restabelecê-la quando esta se desagrega Trazer a um denominador comum estes dois objetivos conflitantes é a tarefa mais urgente de nosso tempo.

Não se deve e não se pode sacrificar esta coesão e os fundamentos materiais da sociedade em nome da competitividade no mercado mundial. Desta forma, não se pode erigi-la em medida única de todas as decisões políticas, deixando à própria sorte, como vítimas sociais, aqueles que não atendem às condições de seu jogo.

Este é um campo de tensões clássico da política entre dois objetivos contraditórios. A busca deste novo caminho vem sendo designada recentemente como Terceira Via”. Esta não deveria ser absolutamente pura retórica. Há bons e mais exemplos da “Terceira Via”.

REPÚBLICA – Neste contexto, o Sr.se refere freqüentemente à aporia básica das máquinas partidárias, sempre às voltas entre estes pólos da “sede de poder” (“Machtversessenheit”) e “da amnésia do poder” (“Machtvergessenheit”), uma vez em que este é assegurado. O centro médio dos partidos na Alemanha parece ter implodido nos últimos dez anos e suas bases sociais mostram-se esgotadas. Para onde caminha este sistema e como romper com este movimento pendular?

Richard von Weizsäcker - A situação da Alemanha neste aspecto não se distancia radicalmente das demais democracias parlamentares européias. A luta pela maioria no processo eleitoral é impregnada por esta sede de poder, que se inscreve na estrutura mesma dos partidos. Mas uma vez atingido o poder por esta maioria, esquece-se freqüentemente de assumi-lo com responsabilidade, pois a este pertence também assumir objetivos incômodos de longo prazo. Considere, neste contexto, o atual debate sobre a reforma previdenciária aqui na Alemanha. É muito fácil enganar os eleitores com afirmações tranquilizadoras sobre a segurança e a quimera da manutenção de um patamar de renda em algumas décadas, justamente quando os responsáveis por estas decisões não estiverem mais lá. Não se trata aqui da próxima eleição estadual ou federal, mas dos efeitos destas decisões em trinta ou cinqüenta anos, não obstante, estas decisões produzam, a cuto prazo, muitos incômodos, custos onerosos, mas também novos pontos de vista. Deveria pertencer ao exercício do poder a coragem de tomar decisões de longo prazo. E isto, infelizmente, não ocorre com muita freqüência.

REPÚBLICA - O Sr. anunciou em 03 de outubro de 1990 a Unidade Alemã na União Européia. Dez anos depois, o que vemos é ainda a ênfase no interesse nacional e Brüssel como uma instância muito distante da autoconsciência do cidadão comum. Com o Chanceler Schröder, os interesses nacionais parecem cada vez mais transparentes na União e a fatalidade deste sobrepeso alemão ainda produz uma retórica chauvinista entre muitos vizinhos. Como o Sr. vê e União Européia dez anos depois de Maastricht, neste balanço de interesses nacionais ainda divergentes às vésperas do Euro?

Richard von Weizsäcker - Não compartilho de suas preocupações. Os alemães dispõem, de fato, de uma maioria demográfica, mas não de um sobrepeso no caminho da unificação européia. Não há de forma alguma objetivos chauvinistas que possamos levar a sério, ou também apenas uma retórica.

Certo é que estamos diante de objetivos extremamente ambiciosos. Por um lado, as instituições devem ser fortalecidas para que os atuais quinze membros da União Européia possam aprender a resolver seus problemas em pareceria. Por outro lado, não podemos perder a oportunidade de assimilar todos os países europeus que se reconheçam nos princípios da democracia e no respeito ao Estado de Direito. Não se trata de uma ampliação, mas antes do acabamento da Europa, e estes objetivos são extremamente ambiciosos.

Esta será uma Europa federativa de estados nacionais. Não podemos abdicar da idéia de nação. Mas deveríamos, num tempo de globalização, aprender a falar com uma única voz. Que no curso das negociações atuais Schröder defenda os interesses nacionais alemães é sua tarefa legítima. Da mesma forma, não existe na vontade de nosso governo qualquer dúvida no sentido de empreender, com todas suas energias - sobretudo com nossos vizinhos franceses -, todos os esforços necessários para levar a cabo a União. A forma e pela qual Schröder fala sobre estas chances é muito mais sóbria, muito menos impregnada de acentos emocionas que seus predecessores. Muito pelo contrário, nela vejo um progresso no sentido da União.

REPÚBLICA - Hölderlin dedicou uma vez o prólogo de “Hipérion” ao “amor dos alemães”. O que significa ser alemão hoje e quem deve ser alemão em sentido legal?

Richard von Weizsäcker - Hölderlin pertence a um tempo no qual não existia ainda uma nação política alemã. Não obstante, com seus contemporâneos, ele procurarava dar forma à necessidade de uma nação cultural alemã.

Erigiu-se, naquela época, um teatro nacional alemão, no qual a língua alemã procurava afirmar-se. Lessing, Schiller, Goethe, Jean Paul e também Hölderlin pertencem a este impulso formador. Neste sentido, os poetas, bem como também Hölderlin, poderiam falar naquela época de “amor dos alemães” à sua cultura, ou às suas raízes culturais.

Neste entretempo a história avançou desde “Hyperion”. As nações levaram a cabo seus processos de formação. Os italianos e os alemães foram os últimos a atingir sua unidade política. Segui-se a isto um nacionalismo devastador. Sua pior conseqüência foi que naquela época combinou-se este amor à Alemanha à recusa e até mesmo ao ódio ao país vizinho.

Pagamos muito caro pelos erros nefastos deste nacionalismo. Hoje estamos a caminho da unificação da Europa. As fronteiras estão abertas. Os antigas regras de cidadania estão superadas. Novas regras para os fluxos migratórios são necessárias. Podemos e devemos aprender a vincular este amor ao país com a faculdade e a vontade de assimilar e acolher, com generosidade, homens de diferentes tradições, religiões e concepções de mundo e etnias em nosso meio. Temos de aprender, sem medo, a sermos diferentes. Aquele que contribui nesta tarefa deve e pode se sentir alemão e amar seu páis. Estas são exigências bastante distintas do tempo de Hölderlin.

REPÚBLICA - No centro de sua trajetória está o famoso “Discurso sobre o 8 de Maio”, de 1985, por ocasião dos quarenta anos da Capitulação Incondicional. Este discurso é um divisor de águas na relação dos alemães com sua memória. Na verdade, o que estava em jogo não eram os argumentos históricos empregados, já conhecidos, mas a maneira nova pela qual ele revidava os clichês morais da culpa, colocando-se frontalmente contra a visão revisionista do passado e contra a famosa “Polêmica dos Historiadores”.

O discurso é, do ponto de vista estilístico, uma combinação de dois gêneros literários: a peroração e confissão. Peroração nos sentido do momento e do lugar em que esta verdade apresenta-se ao coletivo, mas confissão no sentido da culpa que se assume em nome deste coletivo no chamado nominal de quase todos elas. Neste sentido, o Sr. faz um uso bastante herético desta “verdade” e de suas versões, que muda inteiramente de sentido depois do discurso, naquela capacidade de “ver a verdade nos olhos”. O Sr. se refere a data não como uma derrota militar, mas como uma “libertação da tirania”, o que inverte tudo. O Sr. Poderia recompor para nós aquele contexto?

Richard von Weizsäcker - Sua interpretação do discurso de 8 de maio é, evidentemente, seu direito exclusivo. Mas para mim não mas não se trata de um cargo de pregador quando se é eleito para uma tarefa política. Também, em função de minhas convicções religiosas, não falaria, neste contexto, de uma pregação, ou mesmo de uma qualidade herética de proferir uma verdade. Sem dúvida, meu discurso teve o caráter de um testemunho político, histórico e moral. Nem todos se alegram com o que afirmei. Aquele que leva a sério o passado, deve abdicar de agradar a todos. Este passado foi duro e pesa bastante. Culpa ou inocência são sempre individuais. Mas somos todos responsáveis pelas conseqüências e pela maneiria como nos relacionamos com este passado.

REPÚBLICA - Se o golpe da aristocracia da generalidade tivesse êxito contra Hitler, como que seria possível explicar Auschwitz para os Aliados? Seu amigo Axel von Busche colocara-se a disposição de Stauffenberg

para um atentado suicida contra o Führer. O Sr. mesmo quebrou seu juramento de soldado uma vez ao atirar no retrato do Führer em solidariedade à sua companhia. Como explicar esta tragédia do obediência da generalidade e como vinculá-la à resistência espontânea e civil do cidadão comum e do exemplo da “weisse Rose”?

Richard von Weizsäcker - Quatro semanas antes do 20 de julho de 1944 - não me lembro exatamente da data, mas estava a par dos planos em linhas gerais de como o atendo seria conduzido-, tive uma longa e penosa conversa, com meus irmãos mais velhos e um amigo comum. Meus irmãos me lembraram da legenda da “punhalada pelas costas” da Primeira Guerra. Na Primeira Guerra, havia na Alemanha um sentimento de que a Revolução em casa levara à derrota militar, um erro de avaliação terrível ! Minha opinião em 1944 era outra. Quando se levava em conta quantas vidas inocentes se perdiam a cada dia, entre a população civil, nos campos de extermínio e nos frontes, se alguém pudesse interromper esta carnificina diária com um golpe certeiro, então seria absolutamente indiferente passar-se por traidor ou herói para a maioria da poupulação, ou quebrar o juramento de soldado, ou se nos julgassem para a História como os autores de uma outra “punhalada pelas costas”, como aquela de 1918 . Era muito mais importante dar um ponto final a tudo aquilo. E quando se tem bem claro que entre 20 de julho de 1944 e o fim da guerra morreram muito mais pessoas que nos quatro anos anteriores, então fica claro que fracassamos e até hoje culpados por isto.

REPÚBLICA - Em oposição ao cargo de nosso presidente, Fernando Henrique Cardoso, um acadêmico de carreira no poder há seis anos, o seu mandato tinha a aura de uma certa impotência. O que um intelectual pode, de fato, no poder? Como o Sr. vê esta aliança? Na peça sobre o intelectual “Gundling” de Heiner Müller, que o Sr. preza, Frederico refere-se a Voltaire como a Laranja que poderia ser esmagada na mão do Monarca: a laranja prussiana.

Richard von Weizsäcker - Se Gundling foi o que hoje podemos chamar de intelectual, não desejo opinar. De qualquer maneira, não podemos comparar nem de longe o papel do intelectual em nossa democracia com aquele que ele desempenha na monarquia absolutista.

Minha preocupação é que os nosso intelectuais mantêm-se distantes das grandes questões de nosso tempo. Na França, por exemplo, ou mesmo na América Latina seu papel é maior.

O problema principal do presente tem a ver com a falta de orientação para os homens, que vivemos numa liberdade garantida constitucionalmente, mas sempre fracassamos em permanecer nesta liberdade. E o problema da presidência entre nós não é que ela seja desprovida de competência e poder. Sua tarefa é contribuir para que as questões certas e, se possível, também as respostas a elas na busca de orientação e que aprendamos a compreender o vínculo indissolúvel entre a liberdade e a responsabilidade.

Revista "República" outubro de 2000 - Ano 4 - No.48

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