segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O Eros do Processo (Mais!)


O EROS DO PROCESSO

AUTOR DA BIOGRAFIA "OS ANOS DO CONHECIMENTO", O ALEMÃO REINER STACH FALA DA RELAÇÃO "PROBLEMÁTICA" DE KAFKA COM OS JUDEUS E DE SUA VISÃO DA MULHER COMO MEDIADORA DA JUSTIÇA

A fascinação por Kafka decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo


JOSÉ GALISI FILHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE HANNOVER (ALEMANHA)

Numa conferência pronunciada no Fórum Cultural Austríaco em 28/ 4/04, intitulada "O Fim das Lendas", o biógrafo de Franz Kafka (1883-1924) Reiner Stach dizia: "Não preciso apontar o enorme abismo entre aquilo que o nome de Kafka significava duas gerações atrás e o que representa hoje. Kafka era, nos anos 1960, uma supernova literária, seu trabalho era discutido com paixão e até mesmo se tornou uma fonte de esperança política".
"Hoje, em contrapartida, Kafka é uma estrela, uma espécie de figura pop. Os originais escritos com sua caneta se tornaram objeto de culto, cuja propriedade poucos podem se permitir. Surgiu até mesmo uma espécie de turismo literário em todos os lugares que freqüentou, cercados por uma aura que quase nada mais tem a ver com o nome do indivíduo histórico e representam muito mais um conceito, uma marca comparável às de Mozart, Einstein ou Marilyn Monroe."
Há mais de 13 anos, Stach se ocupa pacientemente em desmontar as lendas do edifício literário desse clássico moderno.
E o segundo volume de sua enorme biografia, "Die Jahre der Erkenntnis" (Os Anos do Conhecimento, ed. Fischer, 726 págs., 29,90, R$ 73), concentra-se na fase final da carreira do autor, entre 1915 e 1924, marcada pela doença, pela guerra e pelo desmoronamento de suas relações.
"A guerra arruinou sua vida", reconhece. Mas, em contrapartida, a experiência profissional direta de Kafka -ele trabalhou com seguros à época- com a nova dimensão tecnológica do conflito, a guerra total com armas químicas e a legião de mutilados a ser administrada pelos Estados-maiores no front doméstico se transfigurou, em sua escrita, em uma opção pela parábola e por um depuramento formal extremos.
Para Stach, Kafka foi, de fato, o único escritor do idioma alemão à época a perceber a essência do mundo administrado emergente.
Sua biografia pode ser lida como um romance em aberto, no qual nos confrontamos com todas as virtualidades de decisão que não se tornaram realidade na vida de Kafka.
De Hamburgo, o autor concedeu uma entrevista à Folha, de que seguem abaixo os melhores trechos.

FOLHA - Uma das principais lendas desconstruídas em sua biografia é a de que Kafka teria se recolhido a um mundo de fantasias privadas, enquanto a velha Europa desmoronava sob a Primeira Guerra. De que modo a experiência da guerra se espelha em sua obra?

REINER STACH - Kafka não escreveu nenhum texto tematizando diretamente a guerra, nenhuma narração em que a guerra seja pano de fundo. Proliferou, depois da guerra, uma "literatura de trincheiras" dos retornados do front, mas ele não podia [escrever isso], pois não viveu a guerra como soldado.
Essa experiência se espelha na forma, não no plano temático. Até 1916 seus textos apresentavam uma dimensão lúdica, um gozo na construção de situações fantásticas, ele jogava com a literatura, como em "A Metamorfose", por exemplo.
Vemos aí um enorme prazer na narrativa de uma situação absurda, na exploração e na construção diferenciada de uma lógica fantasmagórica até seus limites. Ele procurava, por assim dizer, desdobrar essa fantasia inicial em todas as suas possibilidades.
A guerra lhe tirou esse prazer lúdico da literatura. Até a escrita de "O Castelo", ainda irão transcorrer oito anos de intervalo, mas não vemos mais nesse período nenhuma cena construída, apenas parábolas curtas. Kafka deixa de ser um "narrador": torna-se escritor, mas não mais um narrador.

FOLHA - Seria possível afirmar que essa "nova aparição", esses homens mutilados com membros protéticos, já constitui, em si, a caricatura de um ser humano e que a opção pela parábola parte de uma imagem real, que em si já é uma redução?

STACH - Sim, mas o que é mais importante é que não se trata, nesse contexto, do destino individual, mas sim coletivo, das massas emergentes, derivado da nova relação com a máquina.
A máquina torna-se mais importante que o indivíduo.
Essa relação se alterou para sempre com o emprego de armas químicas, com as novas linhas de produção e com a simbiose entre o front doméstico e o campo de batalha na "mobilização total" de recursos humanos e materiais.
Surge, na época, o novo conceito da "batalha de material".
A superioridade do material decide a guerra -esse era o ditado. Havia até o conceito de "homem-material". Os homens se tornam apenas uma engrenagem, entre muitos outros recursos, numa luta industrial. Kafka experimentou as conseqüências desse estranhamento completo em sua profissão, todos os dias. Ele foi o único escritor em língua alemã, à época, que viu esse processo.
Em outras palavras, eles não viram, como Kafka, a guerra na sua dimensão "administrada".
Outros escritores, como Egon Kirsch, viveram a experiência do front, mas enxergavam apenas uma parte desse novo maquinário e não seu lado decisivo: o front doméstico.
Kafka era amigo de Kirsch, que vivenciou massacres terríveis no front, mas não dispunha de um conceito de que a guerra se transformara radicalmente na administração das massas civis, com a participação, na retaguarda, de mulheres e escritórios de administração de apólices de seguros.
Daí surgiu também o conceito de guerra total, depois operacionalizado pelos nazistas.
Nesse sentido, não se trata de fantasias pessoais, embora a lenda afirme que Kafka era um neurótico que padecia de fantasias compulsivas e perdera o contato com a realidade.
Trata-se de uma perversão pública, e não privada. Ele compreendeu a guerra não como flagelo, mas como perversão coletiva, uma perversão real, organizada e administrada.

FOLHA - A que conhecimento o sr. se refere no título de seu novo livro?

STACH - Até a Primeira Guerra, o conhecimento não era provavelmente o mais importante para Kafka, mas sim a tomada de decisões corretas: casar, constituir família ou tornar-se escritor e deixar o emprego.
E essas opções, que estavam em aberto até 1914, foram se reduzindo, não apenas em razão da eclosão da guerra, mas também da doença [Kafka morreu de tuberculose].
Houve nesse entretempo uma fase em que ele não escreveu muito, entre 1915 e 1916.
Então, a partir do final de 1917, delineia-se em seu percurso uma outra forma de literatura. Seus textos tornam-se cada vez mais abstratos e parabólicos e visam, em sua concisão extrema, uma certa forma de conhecimento, que ele atinge entre os anos de 1917 e 1919: a constatação de que tem de viver com o que lhe sobrou.
Não há mais sentido em forjar novas opões, mas sim em fazer o balanço daquele saldo e viver com uma certa dignidade.
Esse conhecimento significa que, em outras palavras, ele precisa de uma atitude estóica, uma atitude transfigurada em seus textos, como um ponto alto da forma que é o romance inacabado "O Castelo".
Trata-se de um "estoicismo da forma", uma clareza que decorre não da resignação ou do desespero, mas do realismo sobre as opções ainda disponíveis. Pode-se falar das próprias perdas sem desespero.

FOLHA - O sr. cita no início do livro o ensaio de Cynthia Ozick "The Impossibility of Being Kafka" (A Impossibilidade de Ser Kafka). Não haveria uma contradição entre sua pretensão literária de escrever uma biografia romanceada, que presentifica e mergulha em cada cena dessa vida?

STACH - Toda biografia que pretenda abranger substancialmente seu objeto não pode deixar de ter uma pretensão literária. Nenhuma biografia cronológica pode ser bem-sucedida.
Não se pode, como biógrafo, descrever a vida de alguém como se fosse um encadeamento causal.
Quando retrato Kafka numa determinada passagem de sua vida, tenho de incluir todas as possibilidades sobre como ele poderia ter tomado determinada decisão. Caso contrário, não se entende a decisão.
Faço uma analogia: se você tiver de descrever como jornalista uma audiência e descrever apenas o que foi dito pelo acusado ou pelo juiz, os leitores não entenderão o que se passou, pois não conhecem as regras processuais.
Quando o acusado afirma algo, é preciso levar em conta quais outras opções ele dispunha naquela dada situação processual. Sem essas opções, não há como avaliar o procedimento da defesa.

FOLHA - A relação de medo e prazer com a herança judaica em Kafka é extremamente complexa.

STACH - O problema é que Kafka se sentia extremamente atraído pela cultura e pela identidade judaicas, mas a relação com os judeus reais que conhecia, a maioria em Praga, é problemática -até os desprezava. Numa carta, afirma: "É tenebroso sempre precisar da polícia para fazer valer seus interesses". Ele sempre se expressou de maneira agressiva contra os judeus que não sabiam o que queriam e sempre chamavam a polícia quando se sentiam ameaçados, definindo-se como vítimas.
Quando falo em vítima, falo no sentido negativo da vítima.
Ele imaginava, com o sionismo, uma definição positiva da identidade judaica.
Mas não existe nenhuma passagem em que se queixe do anti-semitismo -algo como "nós, os judeus, somos sempre perseguidos"-, mas há muitas passagens em que se refere de maneira extremamente desabonadora aos próprios judeus que se definem como vítimas e que procuram tirar partido disso. Ele tinha nojo dessa atitude.
É muito difícil, depois do Holocausto, contextualizar essa posição, mas Kafka não podia imaginar a dimensão que o anti-semitismo organizado atingiria na década seguinte.
Que o anti-semitismo existisse, isso lhe parecia evidente, mas, para ele, se tratava de restabelecer a dignidade.
Kafka gostaria que os judeus reconquistassem a própria iniciativa, e isso lhe parecia o ponto central do movimento sionista. Mas também ironizava sua ideologização e, sobretudo, as disputas internas.

FOLHA - A guerra cortou o contato de Kafka com sua noiva, Felice Bauer, mas o sr. lança um novo olhar sobre esse relacionamento...

STACH - O que pude conseguir a partir do contato com a família é que Felice Bauer, na verdade, omitiu e silenciou para Kafka muitas informações decisivas sobre sua família, para protegê-la dele.
Certamente, ela não tinha nenhuma confiança em Kafka.
A história da família dela era um catálogo de catástrofes.
Havia na família uma irmã com um filho ilegítimo que teve de ser escondido da avó.
Felice tinha um irmão que roubara a firma em que trabalhara e, para não terminar na cadeia, teve de fugir para os Estados Unidos.
Ela pagou a fuga com o dinheiro aparentemente destinado ao casamento com Kafka.
Pagou a passagem e ainda enviou dinheiro -na verdade, quase todas as suas economias.
Ele percebeu, é claro, que ela lhe escondia muitos detalhes, mas, cada vez que ele perguntava sobre isso, ela silenciava ou lançava mão de subterfúgios.
Ela simplesmente mentia, e Kafka não conseguia compreender. Ele lhe dizia: "Você pode enganar seus pais, mas não a mim".
É interessante em sua obra o papel das mulheres como instâncias mediadoras da Justiça, como em "O Processo", em que são passagens ou portas entre as várias instâncias, dizem meias-verdades. Nesse romance, Kafka erotizou o próprio processo.

FOLHA - O sr. compara a imaginação de Kafka a um "cinema permanente". O que significa isso?

STACH - Essa imaginação cinematográfica você encontrará em muitas passagens como, por exemplo, na "Carta ao Pai": "Seria como se você ocupasse todo o mundo com seu corpo e sobrassem para mim apenas os espaços que ele não sombreia".
Há aqui uma típica fantasmagoria, não do menino, mas do adulto Kafka. Ele quer dizer algo de importante, mas encontra apenas uma imagem -uma imagem muito boa, por sinal.
Esse é um exemplo da maneira como ele pensa com imagens. Vemos também nos "Diários" como pensava intensivamente com imagens elegantes.
São metáforas que reaparecem nos romances e parábolas.
Kafka tinha que lutar constantemente com esse fluxo de imagens -o que também era um fardo.
Ele mesmo escreveu nos "Diários": "Tudo me faz pensar imediatamente". Se observa alguém na rua, esse instantâneo se desdobra numa reflexão de meia hora: como é sua família, como a pessoa se comportaria ao retornar para casa etc.

FOLHA - Para dizer com Adorno, ele fixa aquele momento mimético pré-discursivo da linguagem -o gesto?

STACH - Sim, o gesto é decisivo na linguagem. Ele descreveu o encontro com várias pessoas antes da guerra em seus "Diários", em um contexto em que não usa palavras, mas apenas a pantomima.
Ele descreve um encontro com Max Brod, em que este abotoa e desabotoa o paletó de tão nervoso, e como os judeus orientais encantavam as mulheres, mas não há nenhum conteúdo discursivo.

FOLHA - O conjunto do legado privado de Max Brod ainda não é totalmente acessível. Quais foram suas dificuldades com esse material?

STACH - É uma história complicada. Ele é muito vasto, entre 15 mil e 20 mil cartas, não apenas endereçadas a Kafka, mas a interlocutores famosos, como escritores, jornalistas etc.
Existem também diários não publicados e alguns cadernos de notas que datam de 1901, antes que ele conhecesse Kafka, e um outro caderno já a partir do início da relação, no qual provavelmente se encontrem muitas informações inéditas da fase juvenil de Kafka.
Na verdade, seu legado está dividido entre Zurique [na Suíça] e Tel Aviv [em Israel].
O problema é que todos os documentos em Tel Aviv se encontram numa residência particular há décadas, e os herdeiros desejam vendê-lo, mas o Arquivo Nacional de Jerusalém se pronunciou para que não deixem Israel.
O Arquivo Nacional de Marbach [Alemanha] mostrou também interesse em adquirir parte do arquivo. Isso poderá se transformar numa disputa judicial, mas até agora esse legado de propriedade particular, depositado num quarto repleto de papéis em Tel Aviv, está indisponível.

FOLHA - O que é verdadeiro na lenda de que Kafka pretendia destinar todos seus escritos ao fogo?

STACH - É uma meia verdade.
Há duas folhas nas quais Kafka solicita que os textos inacabados em suas gavetas fossem incinerados.
E, na medida do possível, Brod deveria recuperar as cartas que estavam com Felice e outras pessoas. Mas trata-se apenas dos documentos privados e dos fragmentos.
Kafka não levantava nenhuma objeção aos textos já publicados, como, por exemplo, o último volume de "O Artista da Fome" -ele desejava que fosse publicado de qualquer maneira. O testamento refere-se apenas aos textos inacabados. E Brod retrucou, dizendo que não poderia fazer isso.

FOLHA - O que permaneceria, além das lendas, como o traço mais moderno e realista de sua obra?

STACH - A administração das massas. Com a web, os governos passam a acumular cada vez mais dados privados em tempo real. É uma forma de controle jamais imaginada antes. A fascinação por Kafka decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo.
Foi uma experiência que superou desde o início os limites da língua alemã até se tornar um lugar-comum da condição absurda moderna, do estar entregue a mecanismos de controle invisíveis.
Os movimentos especulativos da Bolsas nos mostram todos os dias, com uma clareza assombrosa, como decisões baseadas em detalhes aparentemente racionais potencializam uma reação irracional.
O acesso e o acúmulo de dados privados dos cidadãos podem ser justificados pelos governos como decisões racionais, mas a soma dessas decisões leva a uma rede fora de controle até dos próprios governos e que se volta contra seu controle.

Mais!, Folha, 10.08.2008

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