domingo, 14 de agosto de 2011

O Fim dos Profetas - Entrevista com o Publicista e Redator de Política do “Die Zeit” Richard Herzinger* (Mais!)





“República sem Centro, um Ensaio Político” Siedler, Berlim, 2001
Entrevista com o publicista e redator de Política do “Die Zeit” Richard Herzinger

*Esta é a versão original de minha entrevista realizada com o redator de política do semanário "Die Zeit", às vésperas das eleições gerais de 2002, sobre seu trabalho ensaístico até então, editada e publicada pelo caderno Mais!, da Folha, em 07.07.2002. Conheci Richard Herzinger em Berlim, em 1992, quando fora bolsista do Instituto Goethe de São Paulo, durante meu mestrado sobre a poética do dramaturgo da ex-RDA Heiner Müller, na UNICAMP. A influência de sua dissertação e dos pontos de vista de seu então ex-orientador Horst Domdey, da Freie Universitaet Berlin, sobre meu trabalho, naquele estágio, impreganaram, definitivamente, não apenas minha visão sobre o processo de ocidentalização do país desde o Milagre Econômico, os limites e perspectivas da Reunificação, ainda incipiente com dois anos, mas, sobretudo, sobre a dinâmica peculiar dos debates intelectuais e seu “pathos” moralizante numa esfera pública que se remodelava a passos acelerados depois de 40 anos, ainda engessada sob o fantasma do fogo cruzado da propaganda ideológica, sobretudo em Berlim. Pois era a própria “normalização” mesma da vida intectual num país integrado finalmente na OTAN e na dianteira da integração européia com o então Chanceler Kohl que retirava a última máscara dos supostos intelectuais "guardiães da moral", aqui também conhecidos como "Praeceptor Germaniae". É difícil escolher qual seria o pior deles, páreo duro, mas a minha escolha recai sobre o arrogante Guenther Grass do SPD, mas isto já e uma outra história. Como se diz por aqui:„Wer zu spät kommt, den bestraft das Leben“. Traduzindo o que Gorbachev disse a Honecker: "Quem chega ou acorda tarde demais, ou perde o passo, é punido pela vida". Havia também uma guerra selvagem à porta nos Balcãs, visitei vários alojamentos de refugiados e vi coisas na TV que não chegavam ao Brasil de Collor às vésperas de ser chutado do Planalto, como, por exemplo, um raid de uma milícia sérvia numa aldeia em tempo real e, depois de abaterem seus inimigos, urinavam sobre os cadáveres em triunfo. Todos os lados desta guerra bestial eram selvagens. Eram imagens que mostravam como aqueles antigos intelectuais sabichões não tinham mais nada a dizer. Foi o início de uma profunda ruptura em meu espírito e, por que não dizer, também, de minha visão sobre a universidade e sua hierarquia, um processo que culminou no 11 de setembro e na maneira traumática e extremamente pessoal em que o experimentei. Mais do que isto, a reflexão de Herzinger representou em minha biografia, e quase 20 anos depois entre os alemães, o encontro com uma visão genuinamente liberal do que seja uma sociedade aberta, seus desafios, da imensa tarefa civilizatória e pacificadora que a hegemonia cultural americana desempenhou sobre uma parcela da intelectualidade européia desde o Plano Marschall e, sobretudo, do valor da democracia e da expressão “mundo livre”, nome de seu blog no “Die Zeit”, “Freie Welt” (http://freie.welt.de/). Pela primeira vez na vida, deixei de sentir aquele complexo “vira-latas” e provinciano da nossa esquerda local e seu medo diante da pluralidade do debate com "Weltanschauungen” distintas, igualmente válidas e antagônicas. Uma coisa é ler Max Weber sob o conforto refrigerado do debate acadêmico do sexo dos anjos, outra coisa negociar politicamente, "administrar" este antagonismo na prática. A despeito de minha visão cada vez mais endurecida e desencantada das entranhas da sociedade alemã, sobretudo nos últimos cinco anos, desde a reforma Hartz IV, não deixo de admirar e invejar a capacidade gerencial única que os alemães têm em se antecipar e prevenir o pior na sociedade, com um sistema burocrático que detecta prematuramente encadeamentos explosivos. Mas como disse, isto mudou radicalmente com a maior reforma social do pós-Guerra, o pacote conhecido como Hartz IV, sobre o qual escrevi, com o ensaísta Robert Kurz, um grande dossiê para a revista eletrônica "Tróprico" e o antigo caderno "Mais!" da Folha de São Paulo, uma espécie de ABC para os brasileiros. Ele pode ser comparado quase a um gigantesco experimento de darwinismo social. Desde então, a velocidade das mudanças sociais na Alemanha suplantou a capacidade administrativa daquilo que os alemães denominam a grande "Máquina Social" ("Die grosse soziale Maschine"), ou o JobCenter, Arbeitsamt, Departamento de Trabalho, mas sobretudo aquilo que eu, José Galisi Filho, chamo de jornalismo preguiçoso da redações brasileiras, uma mescla de fantasias acadêmicas, complexo vira-lata, já que muitos deles idealizam a Alemanha como a Disneylandia da "Cultura", "Filosofia" e "Artes", do intercâmbio e turismo acadêmicos CAPES ou DAAD, a maioria desses jornalistas viaja a convite do governo alemão para coberturas, pouco importa, nada disto descreve mais a realidade social de um país em declínio muito rápido, que inevitavelmente levará a Europa consigo. Portanto, esta conversa ocupa um lugar muito especial em minha reflexão e a considero mais atual do que na época diante da miséria, da indigência e da estagnação do presente e daquilo que poderia ser também considerado a nova "hora zero" (o mito da Stunde Null") alemã, a prórpia Reforma e as cesuras que ela radicalizou no "Mitte", no centro. Quase uma década se passou e de linha de frente e foco intelectual da Guerra Fria, o debate e as polêmicas alemãs encolheram também para o tom acanhado e moralizante da província, num pais para lá de envelhecido em seu parlamento, com dificuldades em compatibilizar sua auto-imagem e peso econômico em declínio com seu tamanho real na nova ordem internacional. Há alguns meses atrás, a revista "Spiegel" chegou à conclusão de que a coalizão precária de Angela Merkel, e a paralisia que a sustenta neste vácuo da história, representavam, sem dúvida, a “pior elite política do pós-guerra” da República Federal. E na verdade isto ainda é um eufemismo. Não se trata da já quase proverbial "mediocridade" pessoal da Chanceler (a palavra mediocridade aqui tem um sentido positivo de equilíbrio na tradição burguesa do "Aufklaerung") e de sua falta de imaginação e coragem políticas, “vazadas” recentemente nos Wikeleaks com estardalhaço e a maioria dos alemães deu de ombros. Não se trata dessa marca pessoal. Merkel é quase um subproduto involuntário de uma visão tecnocrática da “politica como vocação” do antigo SED e, se vem administrando o colapso de seu país, como se diz por aqui, em pequenas prestações, tocando sua Alemanha como uma Caixa Econômica Estadual ou "Sparkasse", ou em nosso português coloquial, empurrando com a barriga, isto não significa que a história real esteja de férias, aposentada em um ressort mediterrâneo. Na verdade, nesta altura, é até indiferente se Merkel ou um “dummie” ocupem a cadeira já ocupada por europeus legendários como Helmut Schmidt e Willy Brandt, porque nada mais impedirá o declínio inevitável da Alemanha SA, ou Deutschland AG diante da ascensão dos novos atores. O que esta em jogo é, sim, e esta é a última trincheira, o fim definitivo do “projeto europeu”, do euro e da esperança de que ainda exista sobre a superficie do planeta um último soldado do “New Deal”. Na metade de maio , o filósofo Juergen Habermas acusou pessoalmente Angela Merkel de trair este “projeto” europeu com sua miopia doméstica e uma tradição alemã que se iniciou com a “Ostpolitik” no início dos setenta para a construção da Casa Européia, como se fosse possível voltar-se para os "containers", para a velha moldura dos Estados nacionais e sequer nisto, ou seja, a dissolução do antigo sistema prevedenciário, sua coalizão demonstra competência. A Reunificação alemã fora pensada, desde o início, como um projeto europeu, na verdade, sua última chance na História, não haverá outra. O fim desta utopia é uma perda de dimensões civilizatórias ainda não mensuráveis. Merkel e Sarkozy serão, sem dúvidas, uma nota de rodapé dos livros de história, quando pensamos em Willy Brandt ou Helmut Schmidt e existem ainda reservas intelectuais neste continente para salvar este projeto. Mas o que é desolador neste momento é a arrogância e vacuidade dessas personagens. Agosto de 2011

Na eleição de 1998, Gerhard Schroeder chegou ao poder, propondo a construção de um "novo centro" político na Alemanha. Desde a criação da República Federal, em 1949, as coalizões que conquistaram o centro do eleitorado mantiveram a base de um consenso estável sobre o qual a Alemanha reencontraria seu caminho para a unidade.
É com surpresa então que o novo livro do crítico de literatura e redator de política do diário "Die Zeit", Richard Herzinger, "Republik ohne Mitte" [República sem Centro, ed. Siedler], propõe a tese de que, desde a reunificação das duas Alemanhas, em 1990, esse centro meridiano da política está vazio, e essa tomada de consciência levaria finalmente a mudanças radicais na esfera pública do país, sobretudo entre seus intelectuais.
O livro é também a síntese do pensamento de um dos mais brilhantes intelectuais da nova geração de Berlim, cuja carreira de jornalista teve como eixo um levantamento exaustivo das figuras do conservadorismo político alemão -em especial seu antiamericanismo- e começou com um trabalho acadêmico fulminante sobre o dramaturgo Heiner Müller -"Masken der Lebensrevolution" (Máscaras da Revolução, ed. Wilhelm Fink, 1992). Herzinger buscava na obra de Müller aquilo que o próprio autor apontava como as duas premissas de seu trabalho: 1) distanciar suas idéias e visão de mundo como um "material" da atualidade e descobrir, assim, qual era o seu significado político real; e 2) julgá-la sem tabus em razão disso, uma estratégia que Müller empregara sistematicamente com Brecht.
Distanciando-se de uma germanística desconstrutivista, descritiva e laudatória, que fizera da intertextualidade da obra e seus sistemas de auto-referências à tradição literária um quebra-cabeça do qual nenhuma citação escapava ilesa, Herzinger se propôs a traduzir a retórica monumental das imagens de Müller para o presente. Herzinger não acreditava que Müller tivesse superado as "premissas escatológicas" e "maniqueístas" de uma "visão de mundo" arraigada na ex-República Democrática Alemã (RDA) desde sua constituição, isto é, uma visão antiocidental que se afirmara desde a luta contra Brecht e o "formalismo" e que havia determinado a organização da esfera cultural na RDA.
Ao estalinizar o partido em todas as suas esferas no início dos anos 50, Walter Ullbricht [1893-1973, estadista alemão que foi um dos responsáveis pela criação da RDA e do Muro de Berlim" e seu grupo partiram na época para uma campanha difamatória contra a obra de Brecht e seus discípulos. E foi justamente nesse momento que a denúncia do "cosmopolitismo" representado pelo "barbarismo da cultura americana" mostrava que, tanto à esquerda quanto à direita, havia uma unidade indissolúvel na tradição alemã de recusa ao Ocidente -e, durante a Guerra Fria, à América.
De fato, Herzinger mostra, na entrevista abaixo, como Heiner Müller reaviva as principais coordenadas do complexo cultural conservador da crítica civilizatória alemã, a saber: a oposição entre cultura e civilização sob o conceito de decadência; o ressentimento contra a sociedade liberal como lugar da massificação e comercialização da alma e do espírito; e sobretudo a recusa ao Ocidente e a seu "imperialismo tecnológico", a partir da qual surge a idéia alternativa de que o socialismo deveria opor uma "outra trilha temporal" e uma qualidade mais "vital" e "orgânica". A busca incessante de Heiner Müller por um "outro" e uma "diferença" na ruptura do "continuum" benjaminiano encontraria assim os mais eminentes fantasmas românticos.
Essas posições, longe de serem "críticas", legitimariam o socialismo real no seu ocaso. O mais interessante no trabalho de Herzinger, contudo, é seu pressuposto teórico: no exato momento em que o socialismo desaparecia, ele não via mais sentido em usar as coordenadas direita ou esquerda, preferindo se servir das categorias de ocidental ou antiocidental de modo a encontrar um denominador comum diante da irracionalidade do presente: terrorismo ecológico, nova e velha direitas etc.

José Galisi Filho – Desde a reunificação, o Sr vem enfatizando a continuidade das figuras e dos afetos anti-americanos da inteligência alemã, a saber, do Ressentimento contra o Ocidente, originário da crítica romântica de início do XIX à civilização e à Decadência. Já em seu livro “Profetas dos Fins dos Tempos ou a Ofensiva dos Anti-Ocidentais: Fundamentalismo, Antiamericanismo e a Nova Direita”, 1995, o Sr. descrevia esses afetos, que uniam direita e esquerda numa zona morta marcada pelo declínio do pensamento utópico. Quais seriam, resumidamente, as figuras e os atores deste processo?

Richard Herzinger – Comecei meu trabalho acadêmico sobre Heiner Müller (“Masken der Lebensrevolutionen”, Wilhelm Fink, 1992) no início dos noventa sob de pano de fundo desta reviravolta, a saber, a questão chave do papel da Alemanha no mundo pós-Guerra Fria. Naquele momento, esta questão ainda levantava o fantasma do caminho “alternativo” da Alemanha à modernidade como “Sonderweg”, ou seja, o fascismo.

Era natural que, diante do rápido desabamento do Império Soviético, a questão alemã, o fantasma desse “Sonderweg” alemão estivesse na ordem do dia. Ninguém sabia, de fato, aonde levava aquela estrada.

A Alemanha reunificada seria integrada finalmente ao sistema cultural ocidental, liberal, ou a Alemanha iria procurar novamente um alinhamento ao Leste, como no passado a Prússia? Em outras palavras, retomaríamos o romantismo político que nos conduziu à catástrofe, ou seríamos um “Novo Centro” (“Neue Mitte”) no coração da Europa, uma ponte entre o Ocidente e o Leste? Como era natural, esta questão não tinha uma resposta clara e até hoje permanece aberta.

No passado, a centralidade da Alemanha foi um fator que acentuou suas ambições hegemônicas no interior do continente e conduziu à catástrofe do nacional-socialismo. Com a divisão do país depois da derrota e a assimilação compulsória de sua parte ocidental ao sistema de segurança da Nato com Adenauer, a República Federal iniciou um caminho democrático num sistema de valores liberal, enquanto o outro lado permanecia atrelado à hegemonia do bloco soviético.

A Alemanha se reconhece depois da Reunificação como parte constitutiva deste sistema ocidental, mas o que é o “Ocidente” depois da Reunificação, quando os blocos deixaram de existir? Até vinte anos atrás, seria muito fácil responder à questão onde ficava o Ocidente. Mas com a desnacionalização dos Estados e a globalização esta questão assume um novo significado.

Em meu trabalho acadêmico e agora como redator de política do “Die Zeit”, não compreendo o Ocidente como uma instância metafísica, substancial, isto é, algo que pudesse ser definido a priori, ou de maneira unívoca, nem tampouco uma ideologia precisa, ou seja, que o Ocidente seja idêntico a “Weltanschauung” judaico-cristã. As sociedades modernas e seculares são, pela definição weberiana, plurais e antagonísticas.

O Ocidente também não é idêntico à democracia, não obstante, a democracia parlamentar seja um de seus apanágios. Ocidente significa, para mim, antes de tudo, a liberdade de ter a própria opinião, desde que esta opinião não seja inimiga declarada da democracia.

O segredo do Ocidente é que ele coloca esta questão: como a sociedade pode organizar-se e resolver seus complexos problemas culturais, sociais e econômicos dentro das regras do jogo da liberdade, sem que o indivíduo seja aniquilado pelo domínio cego do coletivo,

como no fascismo, sem que a liberdade que temos como meta seja ameaçada, mesmo quando este coletivo se veja confrontado com uma grande ameaça, como hoje, o terrorismo internacional.

Esta é questão aberta do Ocidente, que se reconhece plural, mas que protege, antes de tudo, as minorias contra a ditadura da maioria, ou seja, apenas quando o direito do indivíduo é garantido é que existe a democracia, senão é a ditadura do coletivo.

Dito de maneira sumária, a reunificação alemã emparedou todos os esquemas tradicionais de pensamento sobre os quais se alicerçava a hegemonia tutelar de nossas elites intelectuais e pulverizou seu “centro”, ou melhor, a ilusão de um centro substancial em torno da qual elas exerciam suas prerrogativas em função de um pensamento totalizador na busca de uma centralidade atribuidora de sentido, que se traduzia, até a Reunificação, politicamente, em torno do “consenso” que fundou a República Federal desde os anos cinqüenta. As respostas intelectuais a este processo reabilitaram com toda a força a matriz, a usina de força, por assim dizer, de nossa identidade cultural: a crítica romântica à civilização que era sobretudo impregnada por afetos anti-ocidentais.

Seria quase que impossível resumir todos os matizes desta superfície cultural, mas como escrevi um trabalho acadêmico sobre ele, destacaria o exemplo de Heiner Müller, que morreu no final de 1995.

Para entender melhor o contexto em que se coloca meu trabalho, teria de fazer uma pequena digressão. Nos anos setenta, surgiu na literatura da ex-RDA o que se convencionou denominar na crítica literária da República Federal de “Mudança de Paradigma Civilizatório”.

Do nosso ponto de vista da República Federal, parecia que esta mudança temática indicava uma atitude crítica e distanciada dos autores da inteligência leal da RDA à estagnação do socialismo real, Autores como Christa Wolf, Volker Braun e, sobretudo, Heiner Müller, passaram a tematizar em ensaios, romances e peças explicitamente motivos básicos da crítica à civilização, em especial, dentro da tradição frankfurtiana. Christa Wolf via em “Kassandra” o Patriarcado como matriz do desenvolvimento catastrófico do Ocidente.


 Já em Müller, vê-se com toda a força em peças como “Filoctetes”, mas sobretudo “Gundling”, uma peça sobre Lessing e a relação entre o intelectual e o poder, uma tematização e criminalização nominal do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento”.

A minha tese, que acabou desencadando uma polêmica, é que na verdade esta “guinada” à crítica civilizatória tinha um caráter conservador, na medida em que esta inteligência leal legitimava seus privilégios, sacralizando o socialismo real, e recuando à matriz do pensamento romântico alemão. Eu procurava uma unidade mais profunda da inteligência alemã depois do regime da divisão, de fato, minha especialidade era o próprio pensamento conservador e suas figuras, que reaparecia naquele contexto com toda a força.

Müller representava a consciência de um estamento intelectual da ex-RDA, que pretendia manter a utopia de um socialismo “alternativo” depois do colapso do Partido da Unidade Socialista (SED), já que Müller era também uma, por sua vez, uma dissidência, porém “integrada”. A Reunificação alemã foi experimentada por Müller com um sentimento trágico de profunda infelicidade pessoal. Ela representava a anexação da RDA ao Ocidente, à “plutocracia” do Marco, ao “ditado” do Ocidente.

Foi um grande golpe intelectual. Era como ser ocupado por um Estado inimigo, por uma potência estrangeira, como sua autobiografia “Guerra sem Batalha” comprova. Müller repetia nesses anos que a “democracia era tediosa” para um artista, em outras palavras, a vitalidade artística dependeria da “pressão da experiência autêntica”, uma idéia benjaminiana de Müller. Ora, a democracia é tudo, menos “tediosa”, a democracia formal, que ele desprezava, era sinônima de “consumo”, do entorpecimento da sensibilidade pela indústria cultural, pois a historia do socialismo real fora feita de “sacrifícios” e agora, com a desaparecimento da RDA, desapareceria também a memória da experiência autêntica do fascismo que esta inteligência leal encarnava e ritualizava.

Mas a questão é: o que se esconde nesta visão de mundo: quase todos os topoi, com poucas exceções, de uma fantasia maniqueísta do Ocidente como barbárie civilizatória. O Ocidente, isto é, Auschwitz, representa para Müller o princípio da aceleração tecnológica, movido pelo pensamento instrumental do Entendimento kantiano, e a este princípio ele opõe, contra avalanche civilizatória, o Leste, a estepe e sua reserva territorial seriam um caminho alternativo a esta força “colonizadora”. O Esclarecimento coloniza a “Vida”, as reservas vitais da cultura.

Ora, estes temas vinculavam-se de maneira inequívoca aos motivos românticos da crítica à civilização. O Ocidente, para Müller, seria assim a “puta Babilônia” do consumo, dos dejetos das “grandes idéias”, com o fim da “experiência autêntica”, que o socialismo realmente existente supostamente representaria. Ele estilizou de tal maneira esta visão de mundo que se tornou impossível, a partir de certo ponto, dissociá-la de uma relação neurótica diante de uma realidade que o desmentia.

Há um ensaio bastante emblemático desta visão de mundo maniqueísta, “Alemanha Nenhum Lugar”, de 1991, em que se retematiza o conflito entre “Roma e Bizâncio”, o Ocidente como Novo Império Romano e o Leste como Bizâncio.

Depois da Queda do Muro, a Alemanha estaria literalmente na fronteira dos dois impérios, de duas visões de mundo, como uma fratura, uma “zona de terremotos” entre dois mundos antagônicos.



Ele sugere que Adenauer enxergava o Elba, na época a fronteira com a Zona de Ocupação Soviética, como uma “fronteira asiática”, ou seja, a criação da República Federal fora uma reação ao medo de invasão da “estepe asiática” sobre o “mundo da manufatura alemã”. Dessa maneira, o Leste começava exatamente onde os romanos haviam parado há dois mil anos.

Neste romantismo, o Ocidente é também um veneno ao espírito alemão, à sua vitalidade orgânica.

Grande parte da plasticidade das imagens de Müller decorre desta mescla e conjuração de forças vitais, que projeta uma metafísica da História, como vemos em suas peças “Mauser” e “A Missão”. Estas forças vitais se opõem à linearidade colonizadora do Esclarecimento, à sua obra civilizadora. Ao mesmo tempo, este repertório de metáforas e tiradas escatológicas que alimentava naqueles anos a contento a máquina folhetinesca da República Federal. Foi sem dúvida um papel bem desempenhado e de grande ambigüidade e todos os críticos que me jogam na cara o fato de eu utilizar as declarações e entrevistas de Müller de maneira literal fazem a mesma coisa, só que com outros própositos. O que me interessa é a visão de mundo subjacente destas declarações, e esta visão de mundo é artística e política ao mesmo tempo, como o próprio Müller se cansava de repetir.

Já Botho Strauss poderia ser visto como a variante “hedonista” desta crítica civilizatória.

Contudo, Botho Strass é um intelectual já criado num sistema democrático com laços fortes com as tradições culturais do Ocidente, com a Inglaterra e a América, ao contrário de Müller e outros intelectuais como Cristha Wolf. No final dos anos oitenta, quando a reunificação se aproximava, Strauss redescobre a Nação como um valor metafísico, ao demonstrar cada vez mais um mal-estar civilizatório diante da “Decadência” cultural do entretenimento e da cultura dos talk shows. Como dramaturgo, Strauss está impregnado do “pathos” trágico que vê o conforto e afluência que o pluralismo democrático produz como uma espécie de doença, ou seja, ele experimenta o “vazio” do centro social como a decadência dos valores substanciais e das visões de mundo tradicionais. Strauss recupera, dessa forma, a busca romântica e restaurativa da unidade perdida entre política e poesia. De fato, ele busca uma unidade imaculada e pura de uma história ainda não corrompida pelo nacional-socialismo, reabilitando politicamente o caminho romântico alemão para a modernidade, antes deste desvio. É uma tentativa curiosas de amputar da história esta parte podre que se alimentava do mesmo manancial romântico.

Strauss mergulha tão fundo neste romantismo seminal do XIX que se opõe até à tradição do “Aufklärung”, que ele passa a propagar a simbiose de liberdade individual e essência nacional como “Volksgeist”, uma comunidade autêntica de laços afetivos antes que a sociedade burguesa se estabeleça. Em outras palavras, a fantasia pré-burguesa de uma virtude e ingenuidade do indivíduo. Esta espécie Pólis “novaliana” seria organizada pelo ideal da Poesia, o Estado como poesia.

Já em Peter Handke,

temos uma variante menos refletida deste anti-ocidentalismo, em oposição ao nível de auto-reflexividade da arte de Strauss. Enquanto Bothos Strauss propõe uma espécie de sacerdócio artístico, este seria o pressuposto, pois somente na medida em que o artista se volta sobre si mesmo, ele é capaz de encarnar um ideal político, Handke engaja-se diretamente na política real como no caso da Guerra dos Balcãs. Handke engajou-se ao lado dos sérvios, idealizando o regime sérvio de Milosevic, como se este fosse a vítima da difamação da mídia ocidental.

Ele passou então a acusar a Nato

de entidade fascista e terrorista a serviço do massacre da “verdadeira identidade” do povo sérvio. E mais uma vez reaparece o fantasma romântico que já havíamos mencionado, só que transferido numa outra essência popular, ou seja, uma Sérvia ideal

como reduto autêntico de um espírito não destruído pelo consumismo ocidental.

Este seria um pressuposto romântico em Handke, mas traduzido de maneira explícita em seu engajamento à Sérvia. Além do que, e dito de maneira “neutra”, Handke é um tipo de pessoa meio impulsiva e truculenta, muita agressiva, um tremendo egocêntrico que se coloca ao lado de Milsovic para defende-lo no Tribunal Internacional de Haia contra os crimes contra a humanidade de seu regime.



José Galisi Filho – E o que mudou neste caráter anti-ocidental da inteligência depois do genocídio do 11 de setembro? As reações intelectuais foram maioritariamente histéricas, indo do espectro do delírio à acusação franca à América. O músico Stockhausen afirmou que o genocídio foi quase um “ato puro de vanguarda” em sua bestialidade. Já Grass e Martin Walser culpam a política externa norte-americana. Sloterdijk, que o Sr. denomina de “apóstolo da auto-justiça”, mal disfarça a alegria de ver a uma América bombardeada, perdendo finalmente sua invulnerabilidade. A memória das tempestades de fogo Hamburgo (Operação Gomorra) e Dresden (fevereiro de 45) é um dado profundo da identidade alemã, ainda presente na população. Diante da diante da relativa irrelevância da Europa, que papel caberia à “inteligência” alemã?

Richard Herzinger – Para minha surpresa, o 11 de Setembro mostrou finalmente, de maneira cabal, que estes sentimento de aversão ao sistema ocidental da Alemanha estão mais disseminados entre a população do que se supunha. O ressentimento intelectual é parte de um complexo de inferioridade e medo, vale a pena analisá-lo de longe. Montou-se uma verdadeira operação de guerra durante a visita de Bush a Berlim.

Até agora era este sentimento anti-ocidental de matriz romântica parecia exclusiva de intelectuais e artistas que têm a licença poética para falarem o que bem quiserem, mesmo diante do horror, mas ele não parecia ter uma expressão política tão clara. E agora, para mim, fica evidente o contrário. Este anti-americanismo é mais forte do que pensávamos. Passado um primeiro momento de choque e solidariedade popular, mais por medo, justamente como você mencionou, a memória da destruição pelo ar é um dado mal resolvido e acabado do passado- e apesar do governo de Schroeder ter sido o único que prometeu de “solidariedade ilimitada à OTAN-, esta decisão política não tem nada a ver com este profundo sentimento anti-americano na população.



Este sentimento indica duas coisas: em primeiro lugar um complexo de inferioridade de ser dominado pela América, já que a Europa não consegue definir qual é o seu papel neste novo mundo.

Mas é um sentimento ambíguo, pois nunca houve nenhuma época da história européia em que houvesse tanta liberdade e conforto, sem nenhuma guerra, com exceção da Guerra do Balcãs.

É um sentimento ambíguo, pois a Era de Ouro da Europa foi a era de Ouro da Pax Americana. Foi sob a tutela americana que nós alemães atingimos este patamar social. É um mal-estar por se beneficiar dos efeitos indiretos desta Pax, mas também diante da impotência que ele significa.

Antes de responder pela política externa alemã, Fischer enfrentava policiais

Por outro lado, este anti-americanismo traz em seu cerne um complexo de medo atávico, pois para a população este acontecimento diz respeito apenas à América, seria um fato isolado.

A população acredita que estes terroristas, que afinal saíram daqui mesmo, de Hamburgo, não vão cometer uma barbaridade destas por aqui, pois nós não temos nada a ver com eles. Por que eles atacariam nossas usinas nucleares, ou como nesta semana se afirma iriam abater um grande avião de carreira no espaço aéreo de Frankfurt? Ou seja, medo e inferioridade cominam-se neste fronte. Ou seja se permanecemos neutros, não seremos atacados, pois não temos nada a ver com eles, somos apenas alemães.

Mas no campo intelectual surgiu desde o 11 de setembro uma busca desesperada pela culpa dos americanos. Enfim, o subtexto é: “mas os americanos vinham pedindo por isto”. Enfim, eles têm de ser culpados. Esta é a razão que leva Günther Grass, Soloterdijk e Walter Jens, a maioria esmagadora da intelectualidade de maneira grotesca a pôr a culpa na América pelo que aconteceu no 11 de setembro, no “imperialismo” e na “unilateralidade” do governo de Bush que leva estes desesperados e pobres terroristas suicidas a uma reação tão radical. Ou seja, são argumentos tão frágeis que tenho certeza de não convencem nem a eles mesmos.

É como se estes terroristas fossem explorados que não tinham como reagir. Para não falar da palavra de ordem da globalização Eu particularmente fico impressionado com o que ouvi, com a falta de sensibilidade moral e intelectual de algumas de pessoas que considero inteligentes como Günther Grass. Grass lamenta que tenham morrido 3000 inocentes civis americanos, e no cálculo dele isto não e nada diante das vitimas da fome do mundo produzida pela Pax Americana. Lamento, como alemão, que Gunther Grass não tenha sequer entendido que a sociedade americana é complemente heterogênea, que ela não apóia as medidas unilaterais de seu governo, os Estados Unidos são a pátria da desobediência civil, que a população americana foi, é e sempre será isolacionista.

No WTC havia pessoas de mais de 100 nacionalidades, sobretudo nações do Terceiro Mundo, muçulmanos e muitos hindus morreram naquela fornalha de Nova Iorque. Esta cegueira diante da realidade é um forte distúrbio neurótico no qual o medo nos leva a achar argumentos, por mais absurdos que sejam e mais uma vez nos afastar do real diante de algumas fantasias. Argumentos que nos comprovem que não temos nada a ver.

José Galisi Filho – Neste sentido, para falar com o historiador Heinrich Winkler, “O Longo Caminho para o Ocidente”, ainda não se perfez na Alemanha?


Richard Herzinger - Muito longe disto. O que se vê é que em todos os debates na esfera publica por aqui é como é difícil fugir do pathos moralizante, como no debate sobre a imigração. Como é difícil para a Alemanha aceitar-se finalmente - o que já é um fato irreversível-, como uma nação nao-homogêna etnicamente. Ou seja, vivemos num tempo que Habermas definiu como a constelação pós-nacional. As nações não são e nem podem mais ser mais homogêneas etnicamente num mundo globalizado. Embora a Alemanha esteja na dianteira deste processo como o pais europeu com o maior percentual de estrangeiros, a política não consegue traduzir esta realidades num programa de ação, ficando a reboque de um eleitorado temeroso e daquelas imagens imagens originais como se estivéssemos num container isolado. É o debate recente sobre uma suposta “Leitkultur” alemã, ou seja, e traduzindo de maneira trivial: primeiro temos de germanizar este gente para uma cultura homogênea dominante alemã. É risível. Mais uma vez reaparece o espírito romântico do Volksgeist, como se ele existisse, como se tivesse existido, como imaginavam os nazistas, em algum momento da História deste país, uma “Leitkultur” alemã que pudéssemos incutir nos novos bárbaros. E neste sentido mas uma vez, os americanos, o que não deixa de ser irônico, são o suspeito numero um, pois a sociedade americana é a prova cabal de que a fantasia romântica da pureza racial não existe e sim o pluralismo, sobretudo cultural. A América é o modelo da sociedade multicultural, mas especificamente no caso da Alemanha, temos um dificuldade muito, em função desta herança romântica e do desastre que ele significou em nossa história, em aceitar que não somos mais, ou que nunca fomos “homogêneos”, isto é que não exista nenhuma origem, nem ponto de partida fora do tempo ao pudéssemos recuar nossa imaginação.

José Galisi Filho – Mas pela primeira vez em sua história, parece e existir na Alemanha uma convergência positiva de Estado e Nação, isto é, a normalidade democrática, finalmente, começa a apagar estes fantasmas e seus profetas. Por que a República de Berlim não precisaria de centro, ou o novo centro, como o Sr. afirma em seu novo livro, um ensaio político? Há muitos ponto em como entre seu argumento e o ensaio clássico de Hans Magnus Enzenberger, “Mediocridade e Loucura”, de 1984. O Sr. poderia discorrer sobre eles?

Richard Herzinger – A expressão República de Berlim surgiu no início dos noventa vinculando a expectativa de que com o retorno da capital, em oposição á provinciana Bonn, a Alemanha se tornaria novamente uma nação forte, com uma capital que representasse o centro de gravidade europeu em todos os sentidos: cultural, político e econômico, que pudesse fazer a mediação. A República de Berlim projetava no início dos noventa a promessa do Centro, do um Novo Centro, expressão que mais tarde a coalizão SPD Grün tornaria programa de governo como Schröder em 1998.

E foi justamente no momento que Berlim tornou-se novamente a capital, que se constatou finalmente o contrário, ou seja, que em vez de Berlim representar, este novo centro mediador, os conflitos explodiram com toda a força depois de décadas de um consenso harmônico e de status privilegiado que a cidade tinha durante a Guerra Fria, escondendo seus problemas reais e sua diversidade: conflitos étnicos com minorias, mas sobretudo conflitos sobre valores fundamentais como o capital genético e seu gerenciamento, ou seja, o debate sobre a produção artificial de vida. Este foi a primeiro grande debate da República de Berlim, o debate que colocou as questões essenciais do futuro Aquilo que era até anos atrás natureza tornou-se um problema muito sério com a manipulação genética implicando uma redefinição da esfera básica de direitos constitucionais do indivíduo, o cerne de qualquer democracia. A irrupção destes novos conflitos mostrou também que aquele sistema de valores que organizava a esfera pública em nosso pais nas últimas décadas não tinha mais o Centro, pois estas questões, por definição, não tem nenhuma solução ética, em princípio as questões morais colocados pelo debate genéticos são insolúveis e somente podem gerenciadas na esfera política de maneira pragmática, quando criamos compromissos. Foi isto que mudou o centro de gravidade, no meio ponto de vista, da esfera pública alemã e lhe trouxe uma nova percepção: o centro está vazio, não há nada nele, as idéias orbitam ao seu redor, as idéias morais decorrentes do problemas do avanço tecnológico, mas este lugar “mágico”, em nome do qual se proclamava o consenso e em nome do qual os intelectuais reivindicavam uma tutela moral, desapareceu e descobriu-se, assim, finalmente que só os um país normal e democrático, enfim, a Alemanha descobriu-se como uma sociedade aberta na qual a tutela destas doutrinas proféticas e românticas não atinge mais a realidade e fica cada vez mais distante. Berlim acelerou estes conflitos e a desorientação e criou um impulso modernizador fortíssimo em nossa sociedade, transformando em sociedade aberta, a saber uma sociedade das questões em aberto livre da tutela moralizante do debate.
O SPD procurou com o Novo Centro reabilitar este mito do centro forte, mas, ao proclamar isto, o SPD se pretendia representar o conjunto da sociedade, um conceito alias que tem para nos uma sugestão quase que mágica, pois ele nos induz a acreditar que exista no centro algo valores substancial a priori e na verdade, quando os aproximamos deste centro, percebemos que ele é vazio e a tarefa da política é construir, diante de cada nova situação, os compromissos que regulamentam os conflitos. A coalizão que entrou no poder com grandes expectativas transformou-se desde então no governo de administração permanente de crises. Um governo que foi de um crise a outra, sobretudo na questão dos Balcãs que mexeu com tabus sérios de nosso passado. Este conceito governo de crises não é uma censura, mas a constatação de que com as mudanças a política tornou-se uma administração regular das crises. A ilusão do Centro rompe-se de vez com a República de Berlim e agora podemos ser pragmáticos, é um impulso libertário, porque nos traz a pluralidade, as discussões e um maior espaço de liberdade, nos torna, no bom sentido do termo, liberais. Ninguém pode ocupar mais este centro.

Hans Magnus Enzensberger foi um dois primeiros a insistir na normalidade democrática do centro vazio contra o pensamento unificador e metafísico.

Em “Mediocridade e Loucura” e um elogio da normalidade emancipada de um núcleo substancial, normalidade no sentido de Enzensberger significa uma variante do Esclarecimento e do pragmatismo: é sempre possível fazer “mais alguma coisa”, sem “surpresas” e “milagres” dos grandes esquemas explicadores da sociedade como unidade homogêneo, e isto, como Enzensberger afirma, é revolucionário.

Isto quer dizer também que, ao contrário do que está no senso comum, a sociedade aberta não é dividida pelos conflitos, mas unificada por eles. São os conflitos que nos unificam, e não o contrário. Diante da pluralidade de opiniões, substratos culturais, religiosos, étnicos e de percepção e sistema de valores, estes conflitos nos tornam plurais. Não são os aparentes valores inquestionáveis desta metafísica dos grandes esquemas teóricos, que unificam a sociedade, mas a ação política real.

José Galisi Filho – Neste sentido haveria diferenças entre Stoibler, que está à frente nas pesquisas e a continuidade da coalizão de Schroeder?

Richard Herzinger – Há poucas diferenças entre ambos, diria no grau do populismo. Com Stoibler haveria certamente uma ênfase nestes dados do conservadorismo no debate imigratório ou na questão do casamento homossexual. Mas mesmo aí haveria compromissos e a administração de crises. Ambos os lados, por um lado os verdes e o SPD, por outro o CSU CDU e FPD ainda estão fundamentos ainda num consenso da velha republica Federal, ou seja de que seja possível harmonizar os interesses, quando na verdade este consenso, que fundou a Alemanha Federal, acabou para sempre. Eles procuram ainda ser os baluartes do “consenso” para manter o centro, o novo centro, tanto faz se mais à direita ou à esquerda.
Agora Stoibler procura tirar partido das promessas fracassadas deste governo de reduzir pela metade o desemprego. Não podemos estar certos se Stoibler ganhará, já que o eleitorado tem mudando muito rapidamente nestes últimos anos. Este é um aspecto interessante da política eleitoral. As mudanças de tendência do eleitorado são cada vez mais rápidas. Não há mais o centro que sempre votava num partido e no outro. Hoje as posições flutuam ao sabor das conjunturas. Sempre houve na Alemanha coalizões duradouras, a Grande Coalizão dos sessenta, o 16 anos da Era Kohl, talvez o governo de Schroeder dure apenas estes 4 anos, ninguém sabe. As pesquisas diziam ha duas semana que Stoibler seria eleito, agora, afirmam o contrário.

José Galisi Filho – A República sem Centro é também uma república de Desempregados. São 4 milhões. Não existe “direito à vadiagem na Alemanha”, afirmou Schroeder em entrevista ao Bild. O que quer dizer isto? O Sr. discorre em seus ensaio sobre uma iniciativa de desempregados berlinenses de Prenzlauer Berg de criarem um movimento e “desempregados felizes”. Como é possível ser desempregado e feliz na República Federal?

Richard Herzinger – Esta expressão populista e autoritária de Schroeder é em primeiro lugar uma difamação aos desempregados e busca desviar o ressentimento popular diante das dificuldades de financiar um sistema social. Apesar de tudo, nossos benefícios sociais ainda são um modelo no mundo, mas o financiamento deste sistema tornou-se incompatível com o novo mercado de trabalho, que cresce cada vez mais e do qual se aproveitam grupos que não precisam em absoluto de ajuda social.Nostaligia de Capitalismo e da Era de Ouro da Plena Ocupação

Justamente aqueles que mais precisam de ajuda social estão sendo atingidos diante da redução destes benefícios, enquanto certos funcionários públicos gozam de privilégios obscenos e de pensões. O ressentimento que Schroeder tenta mobilizar é real. As aberrações estão todos os dias na imprensa marrom, mas daí a difamar os desempregado com este populismo barato. Dahrendorf, um grande liberal, rebateu esta frase, dizendo. Justamente na sociedade liberal o direito à vadiagem é sagrado, o direito de não ter de trabalhar sob o chicote. Este seria um direito fundamental da sociedade liberal. Os desempegados felizes de Prenzlauer Berg, o centro da cena boêmia berlinense, .formulam, demaneira surrealista, algo muito simpático, para mim: diante do fracasso da política, podemos formular uma variante poética, um estilo de vida alternativo. Seria possível nesta sociedade altamente tecnológica e mediática viver num nicho de felicidade sem ter de trabalhar, sem se sentir culpado por ser desemrpegado, eles propõem happenings sessões de vadiagem. Se o desemprego nos leva a um tempo morto e a uma condição passiva na qual vivemos a consciência infeliz do não desempenho, por que não dar à preguiça uma força produtiva? Isto enfurece muitos que os chamam simplesmente de vagabundos, mas outros os convidam aos talk shows.

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