domingo, 14 de agosto de 2011

O colapso alemão (Trópico)

entrevista
EUROPA


O colapso alemão
Por José Galisi Filho

Em "A decadência de uma superstar", Gabor Steingart analisa a crise de uma das maiores economias do planeta


Vista de fora, a economia social alemã, como não se cansa de repetir o chanceler Gerhard Schröder, parece ainda despertar inveja por oferecer "ruas limpas e seguras". Contudo, essa percepção é sintomática da fragilidade do olhar político em reconhecer apenas acomodações de superfície do processo econômico.

Com um índice recorde de mais de 5 milhões de desempregados, o maior do pós-Segunda Guerra, um endividamento público de 1,4 trilhões de euros, um crescimento anual em média de 1,4% desde 1995, um recorde de falências desde 2002, um aumento incontrolável do mercado informal de trabalho em função dos custos adicionais da ocupação regular (em média 40%), já quase em torno de 17% do PIB, mas sobretudo uma retração alarmante do investimento público deste PIB em pesquisa e inovação tecnológica (em torno de 2,5%), transformando um país exportador de patentes num importador de tecnologia em muitos setores _com tudo isso, a Alemanha já está na zona do rebaixamento econômico dos países mais desenvolvidos. E ainda viu, nos últimos cinco anos, sua população que vive abaixo do limite da pobreza crescer de 12,1% a 13,5%.

No centro da União Européia, a estagnação da economia alemã torna-se um fator de instabilidade crescente para o continente, colocando em xeque a alternativa social-democrata do governo atual aos desafios da globalização. Sela também o colapso da coalização governamental feita em maio nas eleições da Renânia-Vestfália, base eleitoral na qual o SPD (Partido Social-Democrata, de Schröder) governou por 40 anos e também do ex-parque industrial do país no Ruhr, o que obrigou o chanceler a antecipar as eleições parlamentares federais para 18 de setembro, um ano antes do fim de seu mandato.

"O que vemos na camada de superfície é apenas a cristalização de um bem-estar aparente, produto de 50 anos de um modelo que não existe mais, mas no interior de nossa economia processa-se um desastre irreversível", diz o jornalista Gabor Steingart, chefe do escritório da revista "Spiegel" em Berlim. Gabor acredita que a Alemanha padeça de uma auto-hipnose coletiva e necessita urgentemente da perspectiva de um “geólogo economista” para despertar de sua letargia.

Em seu livro "A decadência de uma superstar" (Abstieg eines Superstars, Piper Verlag, 8,90 euros), ele convida o leitor a uma viagem ao centro incandescente desse modelo, estabelecendo uma cronologia de sua ascensão e de seu declínio, dos anos de ouro do milagre, entre 1950 e 1970, quando a economia alemã cresceu 107%, quadruplicando salários, até o despertar para o pesadelo da globalização. As clássicas aporias performativas do Estado de Bem-Estar são traduzidas em seu argumento com grande plasticidade e uma farta estatística.

O motor do crescimento é o núcleo de inovação capaz de gerar empregos produtivos que garantam a competitividade internacional. Contudo, muito além desse centro de energia, formam-se camadas e mais camadas de clientela social (pessoas que precisam da ajuda do Estado para viver), em função da própria intensificação tecnológica, que expande o desemprego estrutural. É justamente a relação entre este núcleo e suas camadas que se alterou de maneira definitiva, acentuando as distâncias entre um e outro desde os anos 70, quando a Alemanha perdeu o passo do processo com os dois choques do petróleo e a internacionalização dos mercados financeiros.

A matemática é simples: 5 milhões de desempregados, 20 milhões de pensionistas, 3 milhões vivendo de ajuda social, um terço da população ativa respondendo por 70% da geração da riqueza. Mas a metáfora da "superstar" contém uma ironia, não tão evidente ao leitor estrangeiro, pois alude, sobretudo, a uma deterioração qualitativa da indústria do entretenimento televisivo nos últimos anos, e mesmo da mediatização populista da política, desde a mudança da capital para Berlim, espelhando a nova miséria social cada vez mais difícil de ser ocultada.

O livro de Steingart tornou-se um best-seller e um objeto de controvérsia política, sobretudo depois do golpe de misericórdia no sistema previdenciário alemão, a espinha dorsal desse "modelo" desde a década de 50, o pacote conhecido como "Hartz IV", um dos núcleos da assim chamada "Agenda 2010". Ironicamente, Peter Hartz, um dos antigos membros da alta cúpula da Volkswagen, diretor de Recursos Humanos do conglomerado e consultor próximo de Schröder, teve de renunciar, depois de um escândalo envolvendo até mesmo prostitutas brasileiras.

Na prática, a equiparação do seguro de desemprego de longa data à ajuda social mínima, empurrou, do dia para a noite, milhões de desempregados abaixo da linha da miséria, acelerando ainda mais o declínio.

A democracia social alemã, que até então parecia uma alternativa ao modelo anglo-saxão, adotou, para descobrir se o beneficiário da ajuda social não dispõe ainda de recursos próprios para se manter, métodos que lembram a Gestapo: violação da proteção de dados pessoais, prerrogativa de interrogatórios íntimos, a obrigação de aceitar qualquer trabalho, independente das condições, violando direitos adquiridos, acordos coletivos ou "tarifários", o que, na prática, retirou dos Departamentos de Trabalho qualquer competência efetiva de recolocação a médio ou longo prazo, desencadeando protestos em massa, sobretudo no Leste, onde o desemprego atinge em muitos dos novos Estados até 30% da população ativa. "A Alemanha ainda é um país rico, mas em declínio evidente", afirma Steingart na entrevista a seguir.

O modelo "Alemanha S.A." foi desenvolvido no passado para uma economia nacional, industrializada, com plena ocupação e altas taxas de desenvolvimento econômico. Essa sociedade não existe mais, e a sobretaxação, hoje, em razão da concorrência internacional, é uma desvantagem. Economias nacionais deixaram de existir. Entretanto, o governo alemão procura ainda salvar esse "modelo" e não reformá-lo. O sr. oferece várias indicações de que a Alemanha já se encontra do lado perdedor da globalização e parece não mais reagir às suas demandas. Como o fator trabalho poderia ser finalmente desonerado de seus "custos secundários"?

Gabor Steingart: A força de trabalho tornou-se, no curso do processo de globalização acelerada, uma mercadoria totalmente normal. Sua qualidade e preço são comparados pelos investidores internacionais como o carvão, aço e fosfato. A Alemanha, que desde o fim da Segunda Guerra financiou o seu Estado de Bem-Estar Social com, em média, 40% sobre o valor nominal do trabalho, tem, dessa forma, um problema gigantesco diante de si. As contribuições sociais operam como um imposto punitivo sobre o trabalho e, em conseqüência disso, o trabalho simplesmente industrial está abandonando o país.

Os investidores empregam a mão-de-obra barata industrial na China, Índia e Europa Oriental, o que conduziu a um índice recorde de desemprego, o maior do pós-guerra. Em muitas regiões do Leste e na parte ocidental um terço da população ativa já está desempregado. Estamos vivendo no interior da economia um verdadeiro efeito "meltdown" de seu centro produtivo. Há anos, perdemos por dia aproximadamente 1.500 empregos de período integral, apesar da política reformista do governo.

Para mudar essa situação dramática, seria preciso, em primeiro lugar, desonerar o trabalho de seus impostos punitivos. O Estado Social deve deixar o trabalhador em paz, para que ele possa continuar a viver empregado e não engrossar a fila do Departamento de Trabalho.

Assim como em muitos outros Estados _por exemplo, nos países escandinavos_, a parte social deve ser financiada, no futuro, através de impostos regulares. Isso teria uma outra vantagem: todos participariam de maneira equilibrada no financiamento do Estado Social, proprietários de imóveis, acionistas, herdeiros e o teto dos pensionistas. Pode parecer impopular, mas é mais razoável do que a inércia deste "ir tocando adiante" dos últimos governos, que significa a eliminação dos postos de trabalho de milhões.

Com a externalização e a erosão daquilo que o sr. denomina "o núcleo real da produtividade econômica", a Alemanha acabou se tornando campeã mundial na exportação de postos de trabalho. Por que o produto bruto interno do país, que deveria ser um índice confiável de seu desempenho econômico, não reproduz mais esse processo que o sr. descreve?

Steingart: A Alemanha é vice-campeã mundial de exportações, depois dos Estados Unidos. Nosso êxito nos mercados estrangeiros nos mostra que o país ainda é uma das forças vitais: firmas inovadoras, competitivas e com sólida estrutura administrativa. Mas o preço pelo vice-título é o encarecimento crescente do trabalho humano. A participação das importações em nossas exportações quase que duplicou nos últimos anos, o que não significa outra coisa que a substituição do trabalho interno pelo estrangeiro.

O êxito nas exportações deve-se também à conjuntura do dólar fraco em relação ao euro. Para a força de trabalho, contudo, esse balanço é menos favorável. O nosso produto social bruto, que deveria espelhar a soma de todas as ações econômicas, não fornece mais igualmente uma informação confiável sobre a situação real da Alemanha.

Todas as dívidas públicas são adicionadas ao produto social, como se se tratasse de investimentos. Na realidade, nossos índices de crescimento estão no vermelho há uma década. Portanto, esse aparente "crescimento" é o do endividamento público e, se subtrairmos desse índice os créditos bancários, então veremos que a verdadeira economia alemã está encolhendo.

Depois da derrocada deste governo na última eleição na Renânia Vestfália, em maio, o Partido Social-Democrata, lançou mão de um debate demagógico sobre a "crítica ao capitalismo". O chefe do Partido, Franz Münterfering, alertou sobre o perigo de uma "total economização" e caracterizou as cúpulas dos conglomerados alemães como "gafanhotos da globalização". Os instrumentos de política econômica ofereceriam ainda um amortecedor contra o desenvolvimento das forças de mercado?

Steingart: Uma política inteligente procura retardar esses processos que, no momento, atuam de maneira particularmente destrutiva no centro das maioria das economias ocidentais. Deduzindo a estratégia eleitoral do debate, temos de partir da análise do processo econômico real. Não podemos, por exemplo, ter um interesse objetivo em ver a base de nosso parque industrial ser erodida a cada dia, pois, sem indústria, não existem, a longo prazo, serviços.

A política deveria, portanto, desonerar o fator trabalho e reconfigurar o sistema tributário, de maneira que também as importações sejam oneradas. O imposto de circulação de mercadorias é um instrumento à disposição para operar esse refinanciamento. Todos devem contribuir, também os produtos dos chineses, de Taiwan e da Polônia se encarecem.

Uma segunda parte de uma estratégia política deveria ser a duplicação dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Se o trabalho simplesmente industrial é expatriado, pois seus custos adicionais reduzem a margem de manobra de competividade, então o trabalho altamente qualificado deve ser expandido. Com esta dupla estratégia, teríamos mais fôlego para respirar na base da pirâmide de ocupação e ganharíamos simultaneamente mais oxigênio em seu topo. Dessa maneira, seria possível reverter o processo a médio prazo.

Em seu argumento, o sr. destaca o erro estrutural da reforma previdenciária do chanceler Konrad Adenauer, em 1957, durante os anos de ouro do milagre econômico, uma bomba temporal, que não levou em conta o futuro colapso demográfico do país. Por que o sistema previdenciário alemão estaria condenado ao fracasso?

Steingart: Adenauer estabeleceu o que foi denominado "o contrato das gerações" como fundamento do sistema previdenciário, um contrato que era válido apenas entre a geração de seu presente e a de seus pais. Ter filhos permanecia, contudo, uma questão privada, ou dito de outra maneira: a questão mais importante para a sobrevivência do sistema previdenciário, para os futuros trabalhadores e contribuintes, não foi considerada, apesar das fortes críticas dentro de sua fração.A taxa de natalidade declinante das duas décadas seguintes determinou um envelhecimento gradual da sociedade. Desde o ano de meu nascimento, 1962, até hoje, a taxa de nascimento por ano reduziu-se à metade. Podemos dizer, hoje, que este sistema foi o erro capital do assim chamado "modelo alemão". A isso acrescente-se que um dos seus fundamentos era a situação de exceção do milagre econômico, ou seja, um período sem guerra, recessão ou inflação, no qual se construiu todo o Estado Social. Ele estava vinculado ao trabalho assalariado industrial, isto é, às forças motrizes do núcleo econômico desse modelo, que hoje, reduzido a um terço da população ativa, carrega nas costas a tarefa de financiar a securidade de 82,5 milhões de alemães.

Hans Magnus Enzensberger, em seu ensaio "Mediocridade e Loucura", em 1988, apontava, ironicamente, os desempenhos desta sociedade como medianos. Lendo retrospectivamente o texto à sombra do golpe de misericórida no sistema previdenciário, uma passagem ganha novo sentido: "Milhões de perdedores ficam às margens das exigências deste paraíso. A rigidez com que são excluídos é o reverso da medalha da tolerância. As vítimas já não são mais o que eram antes". Tratava-se, para ele, de uma "normalidade subnormal", a saber, uma aporia do modelo do Estado de Bem-Estar, quando o fim do crescimento perde a capacidade de integrar a clientela social. Existe alguma uma alternativa a essa situação?

Steingart: Em função do colapso desse sistema previdenciário, depois de décadas, de um desemprego estrutural maciço, existe, de fato, na Alemanha uma forma de exclusão social muito "rígida", através da qual a perda de função leva as pessoas a viver, contra sua vontade, sem trabalho, sem dinheiro, uma existência esvaziada de significados. Mas todos aqueles que deslizam, compulsoriamente, para a clientela social desejam e têm o direito, pelo menos segundo o princípio de isonomia no qual o sistema se baseia, de retornar a uma existência normal.

Essa questão é social e politicamente dramática e uma catástrofe econômica. Aqueles que são excluídos da esfera produtiva passam do ativo para o passivo do balanço e sua dependência e distância do núcleo produtivo da economia, que encolhe, vai se tornando cada vez maior. A sociedade decretou para elas uma perda de função. Temos de deter este processo se pretendermos melhorar ainda nossa sociedade.

A "normalidade subnormal" consiste no fato de que a inércia do conformismo levou muitos a aceitar esta divisão da sociedade em duas partes como uma lei da natureza no processo de globalização, e não como expressão do fracasso do Estado, pois, em última instância, a naturalização do desemprego faz dos “ejetados” no abismo social um índice estatístico a ser administrado. Mas, se pensarmos a questão politicamente, já que não podemos corrigir as leis da natureza, aí então temos uma chance de melhorar a vida dessas pessoas.

Como o sr. avalia a tese de Ulrich Beck sobre a "brasilianização do Ocidente"?

Steingart: Beck se refere à precarização das relações de trabalho, ao trabalho autônomo, às empresas de um único funcionário, a trabalhos de empreitada. Isso só vem aumentando e não para alegria dos atingidos. Não desejo desacreditar esta tese. A época do trabalho de uma vida para todos acabou e, quanto mais nos acomodarmos a esta nova realidade, mais suportável ela será. O velho mundo do trabalho desaparece de nossa vida como a máquina a vapor e o telégrafo. Não há mais retorno ao regime de plena ocupação.

A reunificação da Alemanha criou um sistema único de transferências, através do qual a reconstrução da parte leste significou uma desmontagem acelerada da parte ocidental. Em 15 anos de unidade, fluíram mais de 1.250 trilhões de euros para os novos Estados e ambas as partes se reencontram, agora, em seu declínio. Essa convergência não aponta mais para uma ruptura global do sistema de produção, como argumenta Robert Kurz em seu "Colapso da Modernização"?

Steingart: Não iria tão longe. A Alemanha ainda é um país rico, mas em declínio evidente. A transferência de nosso já onerado sistema social para o Leste acelerou esse processo. Mas isso não é motivo de desespero, e sim uma razão para agir. Uma classe política mais responsável poderia reverter esse proceso de maneira enérgica e rápida.

José Galisi Filho
É doutor em germanística pela Universidade de Hannover (Alemanha).

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