dossiê
LITERATURA BRASILEIRA
Uma antologia na contramão
Por José Galisi Filho
Para os professores Ligia Chiappini e Marcel Vejmelka, organizadora e tradutor da primeira reunião de textos de Antonio Candido na Alemanha, o crítico brasileiro pode ser um antídoto à predominância dos estudos culturais no país
A publicação da primeira antologia de Antonio Candido em alemão, "Literatur und Gesellschaft" ("Literatura e sociedade", Vervuert, Frankfurt am Main, 228 págs., 24 euros), organizada pela professora Ligia Chiappini, titular da cadeira de Brasilianística da Universidade Livre de Berlim, e traduzida por Marcel Vejmelka, professor adjunto da Universidade de Potsdam, é resultado de um trabalho de dois anos em colaboração com Antonio Candido e vai de encontro à diluição dos estudos brasileiros no quadro geral da América Latina nas universidades alemãs.
"No caso da literatura, o Brasil sempre foi um apêndice de Portugal, nos departamentos de Romanística das universidades, ou dos estudos hispano-americanos, nos departamentos ou institutos latino-americanos. E aí também a situação piora dia a dia, com o português fazendo parte de uma estrutura que sempre privilegia o espanhol", diz Chiappini, que vê na divulgação do método dialético de Candido, formado na estilística de Leo Sptizer e Auerbach, um antídoto a uma linha dominante de pesquisa nesses institutos, a saber, à falsa dicotomia entre estudos literários e culturais, hegemonicamente marcados pela escola americana.
Ligia Chiappini foi professora titular de teoria literária e literatura comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, onde defendeu tese de mestrado, doutorado e livre-docência com Antonio Candido. Desde 1997 está em Berlim, ocupando a cátedra de Brasilianística, única da Alemanha, a qual conquistou por concurso público feito em 1990. Entre suas publicações, destaca-se "Quando a pátria viaja", sobre Antonio Candido, que mereceu o prêmio Casa de las Américas em 1983. Ela já orientou mais de 40 teses de mestrado e doutorado, inclusive o trabalho do tradutor alemão de Antonio Candido, Marcel Vejmelka, uma análise comparativa entre Thomas Mann e Guimarães Rosa, que obteve a nota máxima há quase dois anos atrás.
A antologia de Antonio Candido é a primeira de uma série que Chiappini e Vejmelka planejam organizar com a obra de grandes intelectuais brasileiros ou que, sendo estrangeiros, produziram a maior parte de seu trabalho no Brasil, como é o caso de Otto Maria Carpeaux. De Berlim, eles falaram sobre a organização da coletânea e o estágio atual da pesquisa brasileira na República Federal.
Como foi organizada a antologia?
Lígia Chiappini - Queríamos fazer uma antologia expressiva das várias etapas da obra e de suas facetas, desde textos de intervenção mais curtos e políticos, até os mais analíticos e teóricos, que tematizassem a dialética literatura e sociedade, bem como outros sobre as relações do Brasil com a América Hispânica. Depois de uma primeira seleção, remetemos o material para Antonio Candido, que acabou sugerindo novos textos, excluindo uns e introduzindo outros e, somente então, chegamos a esta estrutura dividida em quatro blocos e um apêndice.
A relação de Antonio Candido com a cultura alemã é prematura e decisiva na constituição de seu método. A revista “Clima” denunciava a versão tupiniquim do fascismo nos anos de Estado Novo. Já no pós-guerra, ele alertava sobre o perigo de uma demonização da figura de Nietzsche na tradição. Há também um ensaio inédito sobre o diário de viagem de Ernst Jünger ao Brasil. Como você vê esta relação com os “autores malditos” da modernidade e, sobretudo, a avaliação do Holocausto, cujos horrores começavam a vir a tona nesses anos?
Chiappini - Acredito que fique evidente, não só nos textos, mas também no depoimento concedido, que registramos em vídeo, que o tempo que ele passou em Berlim, embora curto, foi fundamental para a sua visão de mundo. Até então, ele tinha uma formação muito francesa, pois seu pai viajava muito a Paris. Contudo, antes da Segunda Guerra, a família permaneceu um curto período na Alemanha. Foi então que ele se apaixonou por alguns aspectos da cultura germânica, embora sua mãe não gostasse muito dos alemães, pois os associava ao militarismo.
Como leitor precoce, ele devorou tudo que achou, freqüentou muitos museus e tornou-se muito familiar de algumas figuras da história alemã, sobretudo, Frederico II. Daí nasceu um interesse permanente, que foi se aprofundando em novas leituras. Já aos 16 anos, ele publicou um artigo no jornal de seu ginásio chamado “O Ariel”, um texto bastante pretensioso para a idade: uma análise de por que a política externa de Bismarck não tinha dado certo. O erro de Bismarck teria sido ter trocado a aliança com a Rússia por uma aliança com o Império Austro-Húngaro, já decadente. Percebemos que ele parecia muito familiarizado não apenas com Bismarck, mas também com a nobreza dessa época, que conspirava contra o Chanceler.
É muito interessante como um menino de 16 anos, num jornal de escola, propõe-se simplesmente a escrever um texto deste tipo. Antonio Candido nos autorizou a publicá-lo no apêndice, mas insistiu de que não se trata de nenhuma análise interessante ou profunda, e sim de um texto ilustrativo desse interesse precoce pela Alemanha. E realmente esse interesse precoce vai se desenvolver na juventude e maturidade, pois ele nunca mais deixou de ler e se interessar pela história alemã, apesar de não ser germanista, pelos grandes nomes da cultura alemã, sobretudo Goethe, que leu exaustivamente e do qual afirma ter formado sua visão de mundo.
Outra referência fundamental na constituição seu método analítico foi Auerbach, quando este ainda não era conhecido no Brasil. Para a leitura de Auerbach, ele foi aprender alemão. Por outro lado, foi sua militância de esquerda com uma visão na sectária da política, que lhe permitiu ter uma visão, para usar hoje uma palavra fora de moda, “dialética” de figuras como o Nietzsche, por exemplo, ou mesmo da ruptura nazista, que ele dissociava dessa matriz cultural. Sem negar a absoluta singularidade do Holocausto, ele acredita que ele poderia se repetir, dadas as mesmas condições históricas, e não como prerrogativa de uma nação.
Marcel Vejmelka - Parece-me um texto muito corajoso para a época e que se recusa a um posicionamento fácil, a saber, “estou do lado certo”. Quando se condena o Holocausto, é preciso ver que o mal está também em outras partes. É uma solução muito agradável imaginar um povo demoníaco e se eximir da própria culpa. Ele acredita que incriminar um povo para desculpar os outros não funciona. Para nós, é recompensador ler um texto deste tipo. Ele era muito polêmico há 60 anos e ainda hoje o é, sobretudo como posicionamento contra o dogmatismo da esquerda.
Como você enfrentou o desafio desta tradução?
Vejmelka - Sempre achei, desde o princípio, a linguagem de Candido extremamente clara e transparente. Portanto, a tradução em si, num primeiro momento, não parece ser difícil, porque o tradutor, como leitor, acompanha o movimento desta escrita. A dificuldade foi descobrir depois as alusões e o conhecimento implícito no texto, que não é tão aparente, pois não é uma erudição que se ostenta.
Por trás desta aparente simplicidade, estão todas as leituras e referências em segundo plano. É um estilo agradável para se ler, mas provavelmente muito difícil para se escrever, imagino. Interessante para mim é como Antonio Candido mimetiza a lógica de cada autor tratado, dando forma ao tema, na exposição de uma constelação dos problemas imanentes da forma.
Como a clareza e a concisão do método dialético irá se adaptar numa paisagem colonizada pelo descontrutivismo francês, como é a da universidade alemã?
Chiappini - O lado do clareza sempre conviveu com a obscuridade. Talvez hoje, e a partir do estruturalismo para cá, o lado da obscuridade ganhou em peso. Tenho um colega no Brasil que dizia que esta clareza seria “ideologia”. Auerbach e Marx são extremamente claros. O outro lado são Adorno e Heidegger. Os alemães costumam dizer que, se você sacudir bem o Heidegger, não sobra muita coisa, pois a obscuridade disfarça, muitas vezes, insuficiências metodológicas.
Acredito que Antonio Candido esteja entrando na Alemanha num momento de contramão e que a obscuridade não seja apenas uma questão estilística, mas pressupõe, sobretudo, uma atitude diante da teoria e da docência. O professor tem a obrigação de ser claro. Antonio Candido foi sempre um professor claro, que pensava na formação dos alunos, no sentido clássico alemão da palavra “Bildung”. O aluno, para se formar, tem de ter confiança em sua própria capacidade. Um discurso claro, embora rico e erudito, desperta no aluno a impressão de que ele é inteligente o suficiente, para, através de seu próprio esforço de leitura, chegar lá.
Esta é uma grande diferença: os discursos do crítico, do professor e do ensaísta convergem, neste caso, num respeito ao interlocutor. Há também razões históricas e diferenças estruturais neste contexto universitário.
Na Alemanha, o titular dispõe de um poder desproporcional em relação aos assistentes e goza de uma série de privilégios que, na maior parte dos casos, gera uma dependência e uma subserviência de seus assistentes, uma hierarquia muito rígida e medieval para quem está em baixo. Estamos agora passando por um processo -o que chamaria de “contramão”- em que a tônica por aqui não é a clareza, mas, muitas vezes inventar teorias, mesmo que banais, disfarçadas de novas e que, para se tornarem verossímeis, têm de ser difíceis e ininteligíveis. Não estou dizendo que todos são assim, mas é uma tendência que se presta a este tipo de coisas.
Vejmelka - Nesse sentido, vejo que a dificuldade da tradução desloca-se então do plano da língua para o contexto acadêmico alemão, teórico e filosófico, carregado realmente por terminologias e sistemas autocentrados, como no caso do idealismo. Trata-se de uma gramática filosófica difícil até para os eruditos. Talvez este leitor ideal erudito possa, num primeiro momento, se decepcionar com os textos de Candido e achá-los até mesmo banais. Mas vejo aí o mesmo problema apontado pela Lígia. Nesta proliferação de esquemas abstratos e jargões, abordagens temáticas, esquece-se muitas vezes da experiência direta com o texto literário que os ensaios de Candido nos oferecem.
Num dos cursos que dei recentemente, utilizei alguns textos da antologia. No início, meus alunos achavam que tinham lido um texto muito fácil e óbvio, mas somente depois eles começavam a perceber as outras camadas de significação e as relações de contexto. É um desafio que exige paciência. Nesse sentido, a revisão foi feita por Willi Bolle, cujos comentários foram incorporados na tradução para esclarecer certas passagens, foi um diálogo intercultural muito interessante.
Chiappini - Certamente, quem está acostumado com isto, tenda a acreditar que Antonio Candido seja muito fácil e, portanto, não seja bom, mas há muitas pessoas por aqui que não pensam desta forma e são capazes de valorizá-lo como antídoto. Além de tudo, muitos de seus texto essenciais, agora acessíveis em alemão vão de encontro ou relativizam esta tendência, sobretudo a dos estudos culturais à maneira dos americanos, como eles são praticados na Alemanha.
Walnice Galvão Bueno esteve aqui, convidada pela cátedra de Brasilianistik da Universidade Livre de Berlim e pelo DAAD, e fizemos um colóquio sobre a concorrência da mídia com a literatura e sua relação com a democracia, no qual a leitura de um texto do Candido, que está na antologia, “O direito à literatura”, revelou-se essencial, bem como um outro ensaio chamado “Estímulos à criação literária”, ainda pouco conhecido no Brasil, do qual falo na minha introdução, e que poderia ser considerado um bom exemplo, avant la lettre, do que denomino “antropological turn”. Trata-se de um texto que, a partir da antropologia, examina a questão do valor estético em concorrência com valores extra-estéticos.
Este texto deriva de um texto anterior “Os parceiros do Rio Bonito”, uma tese defendida em sociologia, mas uma tese antropológica muito nova para sua época -e agora os sociólogos e antropólogos estão valorizando muito este livro no Brasil. O texto se conecta com este livro no sentido de mostrar como que a dimensão aparentemente funcional e pragmática dos códigos alimentares nos assim chamados grupos “primitivos” contrasta com a dimensão desinteressada do simbólico.
Candido dialetiza esta dicotomia, a saber, uma literatura culta como expressão da dimensão desinteressada do juízo estético kantiano, enquanto que a poesia oral permaneceria na esfera meramente pragmática, para apontar a complementaridade de ambas as esferas, ou seja, como este pragmatismo e a funcionalidade, digamos, sócio-existencial, existe na poesia culta e vice-versa. 2
É uma análise que mostra as duas coisas de uma maneira muito nova. E o que fazem os estudos culturais? Eles pegam a literatura pela temática, pela teoria, vão buscar nela uma etnicidade definida a priori e uma série de questões e temas, que, sem dúvida, são importantes para a atualidade, mas não vêem como estes temas são formalmente tratados como um material estético, como algo já pré-formado.
Mas eu acho que, além disto, existe uma outra questão: temos hoje uma nova hegemonia das ciências sociais sobre a literatura. Paulo Lins é recebido por aqui como se fosse um sociólogo, ou até mesmo um assessor de governo para resolver os problemas da favela e nunca é indagado como resolveu o problema de um ou outro personagem, que é seu “métier”. Isto é um equívoco de nosso tempo, mas o maior equívoco é que muitos letrados estão abrindo mão de seu “métier” para se improvisarem em sociólogos e antropólogos e, portanto, não acharem mais que a questão do tratamento literário da forma seja relevante, da forma sem formalismo. Acredito que Paulo Lins tenha escrito realmente um belo romance, que tem altos e baixos, e depois fez uma versão menor e mais enxuta por solicitação das editoras, que ele mesmo acha até melhor.
Ele tem a pretensão de ser um bom escritor, cuida da forma e está empenhado em depurar seu estilo e não apenas em tematizar a favela. No entanto, quando ele vem aqui para ler ou falar do romance, lhe perguntam sempre coisas que não têm nada a ver com sua tarefa precípua de escritor. Quando se pega um poema feito pelo movimento negro e não se indaga pelo seu valor estético, estou desrespeitando este poema, estou sendo falsamente “libertária”, porque não utilizo para eles os mesmos critérios que valem para a alta cultura. Mas, mesmo que utilize critérios diferentes, tenho de buscar estes critérios, não posso simplesmente esquecer da questão estética, pois é como se estivesse dizendo que, para este tipo de poema, não vale a pena perguntar pelo estético, e o escritor negro quer ser um bom escritor.
Vejmelka - Gosto muito do livro de Paulo Lins, mas o problema da recepção na Alemanha é que o filme chegou primeiro. Ninguém quis publicar uma tradução antes. Somente quando o filme foi lançado a editora decidiu-se por uma tradução apressada da versão condensada. A imagem do filme superpõe-se à leitura do texto e tenho a impressão de que o leitor a percebe como uma “pulp fiction” e veja apenas uma violência estetizada, cheia de efeitos. Não podemos fugir do marketing cultural, mas até mesmo professores por aqui que ensinam literatura brasileira acabam aderindo a esta estratégia. Passa-se a imagem de um Brasil “exótico” e de uma violência primitiva.
O livro é fruto de um conjunto de entrevistas antropológicas, de um projeto que ele nunca pode realizar, e depois foi retocado. Como tradutor, enfrento o problema da recepção sobretudo a partir do domínio da linguagem. A história da recepção de Guimarães Rosa é um bom exemplo de como um escritor de primeira grandeza é completamente diluído neste trabalho de passagem. Guimarães, que era apaixonado pela língua alemã, que lia desde os dez anos e domina todos os níveis de linguagem e da composição musical de seus textos, desaparece nas traduções. Fez-se com Guimarães o mesmo trabalho de folclorização deste tipo de recepção.
Chiappini - Lembro-me, a propósito, de uma entrevista concedida por Candido em 2002, em que ele via na literatura uma perspectiva utópica na qual esta, ao mesmo tempo em que dá acesso ao valores da alta cultura, resgata simultaneamente a cultura popular, que se torna um conhecimento de todos. Esta utopia democrática consiste justamente na superação da distinção entre alta e baixa -embora hoje se afirme que não haja mais diferenças entre uma e outra.
Você está realizando um trabalho comparativo entre Antonio Candido e Angel Rama. Poderia falar sobre ele?
Vejmelka - Embora sejam contemporâneos, eles não pertencem à mesma geração. Rama enxergou Candido como mestre, um professor com o qual ele podia aprender muitas coisas. No inicio, Rama era um crítico sem método e fundamento teórico. Esta metodologia ele aprendeu com Candido, quando se conheceram em Montevidéu nos anos 60 e começaram uma longa amizade intelectual e uma troca de idéias.
Por outro lado, Rama foi alguém que lhe abriu os olhos para o mundo hispano-americano, cujo desconhecimento ele mesmo teve de constatar em si e tentar superar em parte este “tordesilhas cultural” que levava o Brasil e os países hispano-americanos a viverem de costas um para o outro. É um exemplo de como podem surgir projetos maiores a partir de uma amizade intelectual. A aproximação entre ambos é interessante na combinação do olhar sociológico com a perspectiva estritamente teórica.
Candido foi inicialmente sociólogo e depois tornou-se crítico literário. Rama era um oriundo das rodas literárias, conquistando depois para si disciplina teórica, que ele aprendeu com o Candido. São dois caminhos que devem hoje ser relidos nesta convergência. Temos hoje muitos conceitos abstratos e sistemas teóricos, mas falta um trabalho de texto e falta também, na escolha dos textos, um olhar crítico que se pergunte pelo valor real de uma obra literária. Procuro comparar este diálogo de 40 anos com a produção atual em termos de América Latina.
José Galisi Filho
É doutor em germanística pela Universidade de Hannover (Alemanha).
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