A ressaca do fordismo
Eleições de hoje na Alemanha expõem o que a sincronia das crises no Sul, do modelo soviético e nos países centrais nos anos 80 já indicava -o Estado de Bem-Estar não passou de realização efêmera do pós-guerra
ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA
Durante muito tempo pareciam bem definidas aquelas fronteiras entre a miséria em massa e as relativas condições de bem estar coletivo. A linha demarcatória separava essencialmente o Norte do Sul do planeta. Essa constelação foi apenas, no entanto, um produto da história depois da Segunda Guerra. Nos centros capitalistas, a mobilização das indústrias fordistas desencadeou um impulso sem precedentes de ocupação em massa e acumulação de capital, vinculados à ascensão dos sindicatos e da social democracia. A “mobilização automotiva” da sociedade ia a par com a construção crescente de uma rede de seguridade social (“Welfare State”), especialmente profunda na Alemanha Ocidental e, em parte, na França. Até mesmo no espaço do liberalismo econômico tradicional anglo-saxônico, os governos trabalhistas na Grã-Bretanha e a “Grande Sociedade” do presidente Johnson, na tradição do “New Deal”, geravam novas estruturas sociais. O sociólogo alemão Ulrich Beck descreveu a ascensão social na era fordista do pós-guerra como “efeito elevador”: apesar das permanentes diferenciações sociais, a sociedade, como um todo, era catapultada num patamar superior. Os salários reais aumentavam em muitas vezes, enquanto as jornadas de trabalho, de modo inverso, declinavam constantemente. A expectativa geral de vida aumentava para todos através de um sistema médico melhorado.
Foi essa prosperidade sem precedentes do Norte que se tornou o paradigma extremamente atrativo do “desenvolvimento” para os países do Sul global. “Desenvolvimento” significava senão realizar como programa social a perspectiva de uma modernização recuperadora e industrialização em categorias capitalistas. Nisso se manifestou um paradoxo histórico, pois enquanto no Sudeste Asiático e na África ainda eclodiam as últimas guerras de descolonização, e simultaneamente, nos países já descolonizados, articulavam-se os movimentos contra a dependência econômica da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, o paradigma do desenvolvimento dos centros capitalistas era ainda, contudo, o modelo a ser trilhado. Os ex-colonizados desejavam crescer nas formas sociais dos antigos senhores.
Descolonização e esforços de independência econômicos eram determinados pelo desejo de atingir, por conta própria, a almejada prosperidade fordista e seu correlato patamar de consumo de massa, mesmo quando, a contragosto da superpotência americana, mecanismos de capitalismo de Estado em moldes sovíéticos fossem preferidos. Uma alternativa histórica para a mobilização do “trabalho abstrato” e da “riqueza abstrata”, como Marx denominara a lógica do moderno sistema de produção de mercadorias, não foi, no entanto, cogitada em nenhuma parte. Enquanto os centros capitalistas, em especial nos Estados Unidos, projetavam para fora a imagem política inimiga para os movimentos sociais do Sul, importavam-se, simultaneamente, as estruturas da reprodução capitalista: o moderno trabalho assalariado e a apenas aparente isonomia burguesa da relação entre os gêneros, bem como os padrões e a imaginação do consumo ou o modelo do “Welfare State”. Independentemente de orientação política durante a Guerra Fria, os “milagres econômicos” no Japão e, sobretudo, na Alemanha, eram tidos como os modelos secretos.
Mas a Era de Ouro fordista do pós-guerra permaneceu, no entanto, para os países pós-coloniais do Sul uma miragem. A tarefa de uma industrialização recuperadora, consumo de massa e “Welfare State” logrou apenas, por um curto período, e em formas de segunda mão. A distância que os separava dos centros já era muito grande, os custos prévios do “desenvolvimento” revelaram-se muito altos. O resultado foi um endividamento externo crescente. Quando a terceira revolução industrial da microeletrônica aposentou o fordismo, os custos operacionais e sociais da inovação aumentaram de tal forma, que não apenas os modelos de desenvolvimento nacionais do Sul quebraram, mas também a parte do socialismo de Estado do Norte não o pode mais acompanhar.
De fato, essa tendência ruinosa poderia ter se tornado claramente visível de duas maneiras: em primeiro lugar, a tentativa de imitação de formas industriais, sócio-econômicas e da Europa Ocidental e dos Estados Unidos já fracassara para a maior parte da humanidade; em segundo lugar, com o fim da União Soviética e da RDA, a crise deste tipo de sociedade já havia penetrado o Norte globalizado e também tinha que atingir seus próprios centros. Em vez disso, a expansão da crise foi apreendida exatamente de modo invertido com os óculos dos velhos antagonismos, como se o capitalismo original fosse o grande vencedor da História e todos os retardatários tivesssem que duplicar ou triplicar esforços na cópia desse modelo. Na perspectiva das regiões em colapso pela crise global, vigoravam ainda, no centro do capitalismo, aquelas supostas condições “paradisíacas” de prosperidade fordista, pelo menos se confrontadas com a própria miséria local. Mas isto era apenas uma ilusão ótica.
Na realidade, a crise da terceira revolução industrial já vinha há muito minando o corpo social do capitalismo original. Já no início dos anos oitenta, a “plena ocupação” fordista convertera-se num desemprego estrutural em massa. Através dos novos potenciais de inovação, o patamar desse desemprego estrutural aumentava de ciclo em ciclo. Rápida desativação de postos de trabalho e crescente subocupação constituem apenas o reverso da medalha de uma acumulação insuficiente de capital, do qual, em última instância, depende o “Welfare State”. A rede social expandida do “boom” fordista começara a se romper, executada através de contra-reformas neoliberais. Não é surpresa que Estados Unidos e Reino Unido, através da “Reaganomics” e do Tatcherismo, sejam seus predecessores e retornassem, dessa forma, apenas às suas respectivas tradições do mercado radical. Mas na Europa continental, essas contra-reformas encontravam ainda resistência. As origens do Estado de Bem Estar na França remontam até a Grande Revolução e, na Alemanha, às reformas sociais de Bismarck e ao período guilhermino. Ainda nos anos noventa, os modelos de Estado de Bem Estar francês e alemão, o assim chamado “capitalismo renano”, eram considerados como uma alternativa à “Revolução Neoliberal” anglo-saxônica.
O processo de crise da terceira revolução industrial supera, contudo, facilmente, todas as fronteiras nacionais, históricas e culturais. A lógica geral capitalista repousa mais fundo que qualquer “modelo” político econômico específico. Mesmo o tão caracaterístico Estado do Bem Estar Social alemão, que parecia construído para a eternidade, erodia-se irreversivelmente na era do Chanceler conservador Helmut Kohl nos anos oitenta e noventa. Nesse período, o desemprego atingia, sobretudo, as camadas menos qualificadas do mercado, pessoas de escolaridade incompleta e trabalhadores de fábrica sem formação técnica. Os benefícios sociais foram reduzidos ou eliminados apenas para a base da pirâmede social, isto é, respectivamente para aqueles sem renda, sem seguro privado, para incapacitados físicos, doentes mentais etc, mas sobretudo para mães solteiras. Através dos processos de “individualização” (Ulrich Beck) desde os anos oitenta, o núcleo familiar burguês reduzira-se, em camadas da população, a um “resíduo mãe-filho”. A nova miséria era ainda envergonhada, em primeira linha, uma miséria feminina e socialmente invisível.
Quando a coalização vermelho-verde de Schröder chegou ao comando, muitos acreditavam que o novo governo iria levar a sério as velhas reivindicações da geração 68 e deter o desmonte social ou mesmo, em parte, revertê-lo. Mas foi exatamente o contrário o que aconteceu. A coalização vermelho-verde, revelou-se, diante de renovados recordes de desemprego e sob a pressão da globalização precisamente como a vanguarda dos cortes mais radicais e extensivos já empreendidos no sistema social. Um amplo programa de medidas sob a rubrica de “Agenda 2010” foi elaborado. A espinha dorsal desse programa era o assim chamado “pacote de reformas Hartz”, que celebrizou a figura de seu mentor Peter Hartz, chefe da Comissão de Reforma. Com a entrada em vigor no início de 2005 dessa regulamentação já como “Hartz IV”, as parcelas e a duração do seguro-desemprego foram reduzidas drasticamente como nos países anglo-saxônicos e o benefício até então pago, em sua segunda fase, a saber, depois de um ano de desemprego, proporcional ao bruto do último salário, foi reduzido ao nível mais baixo da asssim chamada “ajuda social”, calculada com base num “mínimo para existência”.
Dessa forma, milhões de pessoas foram despejadas no piso da ajuda social que, no passado, era válida apenas para uma camada minoritária. Decisivo nesta novidade da reforma é que o benefício somente é pago, desde que o desempregado já tenha consumido até suas últimas reservas financeiras. A implementação desse critério serve a um sistema até agora desconhecido de controle desmoralizador. Os atingidos são obrigados a informar às autoridades, sem reservas, todas as suas relações pessoais. Exige-se inclusive a abertura das poupanças das crianças.
Para se compreeder o que esta acontecendo por aqui, seria preciso detalhar de maneira clara um pano de fundo social. O desemprego atinge a Alemanha, como em outros centros capitalistas, cada vez mais, as camadas “qualificadas”, técnicos, professores, assistentes sociais, advogados, médicos e parte do pequeno empresariado. É a derrocada da “novas classes médias”. O colpaso da nova economia em 2000 2001 e a transferência da produção de software para a Europa Central, Índia etc também sugou os especialistas em informática na corrente do abismo social. Pessoas que, no final dos anos 90, ainda sonhavam, sob o signo da economia da bolha financeira, em riqueza fácil, vêem-se, repentinamente. sem perspectivas e confrontadas com a miséria. O refluxo da acumulação capitalista atinge simultaneamente a esfera cultural: jornalistas, colaboradores, redatores de rádio, artistas, livreiros, funcionários de editoras e uma considerável parte do baixo clero acadêmico perdem sua base de existência.
E simultaneamente o desemprego crescente das camadas médias não pode mais ser amortecido socialmente pelo Estado. A administração da crise capitalista obriga a lançar mão de todas as formas de poupança privada, herança e patrimônio imobiliário, casas são leiloadas, melhores moradias têm que ser abandonadas por um aluguel mais baixo. A “gordura fordista” é consumida. Para dizer de maneira drástica: assim como no Terceiro Mundo, uma grande parte das camadas qualificadas e da inteligência vão sendo sucessivamente africanizadas. Relações precárias de trabalho, empreendimentos capengas e serviços miseráveis proliferam-se. Cada vez mais pessoas são expelidas da esfera da produção da cultura para a circulação: venda algo ou morra, esta é a divisa.
De fato, há protestos contra esse desenvolvimento, mas sem nenhuma solidarizaração geral. Ao invés disso, radicaliza-se a luta pela concorrência e defesa do próprio status. As “reformas Hartz” são elas mesmas uma expressão disso. Peter Hartz, o “spiritus rector” dessa medidas, desenvolveu sua agenda como diretor de pessoal do conglomerdado Volkswagen, como membro do Partido Social-Democrata e do sindicato IG Metall. Justamente o conglomerado Volkswagen sempre encarnou o assim chamado “Modelo Alemanha SA”, como uma integração nacional de capital financeiro, sindicatos, consumo de massas e Estado Social, tendo como base nada menos daquilo que poderia ser denominado de racismo. Não é à toa que a Volkswagen tenha sido um dos fundamentos do Nacional Socialismo hitlerista. A mobilização fordista e “automotiva” da sociedade realizava-se em nome do povo alemão e da comunidade popular do sangue como programa racista e anti-semita. Depois de 1945, esse modelo foi saneado economicamente e individualizado, sem trabalhar criticamente a história de sua fundação.
Hartz tornou-se o símbolo da demissão desse modelo ordenada “de cima”. O capital financeiro desnacionalizado perdeu sua capacidade de integração social. A classe globalizada de todos os grupos sociais, incluindo aí os próprios sindicatos, retira-se no papel de “global players”, o gereciamento das matrizes dos conglomerdados, universidades de elite e o resto daqueles que ganham melhor. As infra-estruturas são desmanteladas e limitadas a algumas regiões metropolitanas. Uma minoria reduzida da sociedade insula-se, assim como nos Estados Unidos e nas megalópolis do Terceiro Mundo, surgem também na Alemanha aquelas perigosas “No Go Areas”, de um lado, e guetos de luxo, de outro, com serviços privados de segurança, não apenas na capital Berlim. Segundo dados da Federação das Secretarias de Bem Estar, desde o início da reforma Hartz, a miséria atingiu uma tal dimensão como nunca na história alemã recente. E essa miséria, que sempre fora bem camuflada na Alemanha, começa cada vez mais a mostrar sua face: desabrigados não já não passam mais despercebidos, bem como cada vez mais crianças de rua. Por aqui, reconhecemos o pobres sobretudo pelas roupas amarrotadas e pelos dentes esburacados, já que o tratamento dentário e obturações foram cortados da lista dos benefícios cobertos do seguro médico legal.
Na França e demais países da União Européia, vão se consumando processos similares. A Alemanha, como potência econômica central, dá o ritmo, por último, até na derrocada. A miséria social e econômica tornou-se de repente na Grande crise da União Européia, cujo processo de integração parecia até há pouco irreversível. Neste ínterim, as maiorias sociais empobrecidas e ameaçadas pela miséria enxergam no forte neoliberalismo do Comissariado Europeu com sua burocracia supranacional apenas o instrumento da globalização, através do qual se destrói o bem estar. Com o grande “Não” nos referendos ao projeto de constituição da União Européia na França e na Holanda esse sentimento desafogou-se. E na Alemanha, onde o projeto não foi submetido à votação, o resultado não teria sido outro. A classe política na União Européia lamuria-se de seu “povo” insensato. Mas, na realidade, os governos nacionais procuram há tempos, cada um à sua maneira, diante das contradições, refugiar-se no velho cesto nacional. Os êxitos dos arrivistas populistas de direita dão as cores da classe política em geral, entalada entre mercado desenfreado, pretensões nacionais e a burocracia econômica da União Européia.
Lá embaixo, na base da sociedade, mostra-se na União Européia, cada vez mais, bem como acima, na administração e na política, diante dessa miséria crescente, uma forte tendência à renacionalização, que rompa com a realidade da economia global. Mas não há mais retorno para um bem estar integrado nacional para fora. O pensamento reacionário está sempre fadado ao fracasso, mas, assim como antes, ele ainda pode produzir enormes estragos. O “Não” à constituição neoliberal da União Européia não tem nenhum conteúdo libertador. Ele foi, em primeira linha, um retroceso obstinado a posições racistas e nacionalistas no mais fundo rincão do centro social. Não se trata aqui da articulação de uma resistência social geral, mas de uma luta pelas linhas de demarcação da exclusão social.
Em primeiro lugar, a classe média qualificada declinante não quer se alinhar às camadas mais baixas e rebela-se em ser degradada ao nível destas. Em segundo, a miséria nacional de todas as classes volta-se contra os estrangeiros, pessoas de outras etnias, asilantes e imigrantes. Em terceiro, justamente entre acadêmicos e técnicos qualificados, o descenso social exprime-se também como crise da identidade masculina, que neles começa a se manifestar. Em todos os domínios sociais e instituições dissemina-se um chauvinismo sexual e o “mobbing” contra mulheres está na ordem do dia.
Na Alemanha, o fantasma de Peter Hartz, como miséria ordenada, vem assombrando o país. Na linguagem cotidiana, o nome já é hoje até empregado para amedrontar as crianças, como antes a história do bicho-papão. A moral irônica nessa história é que em junho de 2005 Hartz tornou-se o centro de um escândalo de corrupção na Volkswagen, que deu ensejo a uma investigação do Ministério Público. A velha simbiose entre capital financeiro de bancos, gereciamento e caciques políticos da Baixa Saxônia, sindicatos e barões da pelegagem do conglomerado decompôs-se moralmente no processo de globalização. As investigações revelaram ente outras coisas firmas fantasmas na Índia, nas quais o chefe do conselho de empregados Volker participara, um amigo íntimo de Gehard Schröder. Houve também, além disso, prestações de contas hiperfaturadas, sem comprovantes, utilizadas para o pagamento de prostitutas de luxo no Brasil às custas do conglomerado, bem como propina e outras coisas menos palatáveis. Hartz teve de renunciar de maneira desonrosa e já vozes se levantam para redenominar as reformas neoliberais, a fim de que elas não estejam mais impregnadas pelo ódio àquele que se transformou no “Judas de Malhação” nacional.
É a velha “Alemanha SA” que vai sendo finalmente liqüidada em todas as perspectivas, pois não encontra mais fundamento na realidade da crise global da terceira revolução industrial. A reforma “Hartz” e o “Caso Volkswagen” representam apenas a matrix de um desenvolvimento geral. Mas a consciência das massa não quer se confrontar com a realidade, mas aspira nostalgicamente pelo Marco alemão e pelo velho status quo. Essa renacionalização ideológica da crise desperta os demônios do passado. A irrealidade do assim chamado modelo “Alemanha SA” conjura em seu colapso a origem do nacional socialismo hitlerista. Naturalmente o elevador da história não desce para o passado, mas, de fato, para o fim do processo de modernização e de toda a prosperidade. Os sentimentos anti-semitas e rassistas não são mais organizados pelo Estado como na Crise Mundial dos anos trinta, mas aparecem agora fragmentados e individualizados como a miséria. Nem por isso são menos perigosos.
Neste clima reacionário em vez de emancipatório contra o neoliberalismo, as fronteiras entre direita e esquerda tornam-se cada vez mais fluidas. Grande parte dos políticos de esquerda vem nadando aberta um envergonhadamente na ressaca ideológica da renacionalização. Uma dissidência de esquerda do Partido Social Democrata, sob a égide de seu antigo Chefe Oskar Lafontaine, hoje fundida na mesma chapa ao Partido do Socialismo Democrático (PDS), que, por sua vez, era a sigla redenominada do antigo Partido do Estado, o SED, da Repúplica Democrática Alemã, vem crescendo nas pesquisa de voto ano e tem boas chances nas eleições antecipadas de outono.
Mas não se sabe bem ao certo o quanto de direita existe nessa esquerda. Lafontaine, com suas investidas contra os “trabalhadores estrangeiros” (uma palavra do jargão nazista), está angariando cada vez mais votos do espectro da direita radical hostil aos estrangeiros. Segundo uma pesquisa sociológica publicada em junho de 2005, pelo menos 20% dos membros dos sindicatos pensam de maneira anti-semita e nacionalista. Aquilo que para a esquerda tradicional vem sendo denominado como o início de uma nova “luta de classes” é, em grande parte, apenas a máscara do ódio da concorrência da classe média declinante que se refugia no neochauvinismo da crise da identidade masculina e no retorno à nostalgia nacional.
Embora essas relações sejam mais que evidentes, alguns pretensos críticos radicais vêm fechando simplesmente os olhos, sob o pretexto de que hoje as coisas seriam bem diferentes, e até um jornal diário de esquerda radical exigiu, por exemplo, a “desnazificação” do debate sobre as tendências de direita na crítica e nos protestos à reforma Hartz. O assim chamado período da “desnazificação”, pretexto para um recomeço depois de 1945, foi muito mais uma espécie de faxina superficial dos velhos quadros do Partido Nacional Socialista. Mas agora o emprego desse termo visa a uma espécie de faxina dos “sentimentos sociais” contra o liberalismo de suas próprias colorações rassistas e chauvinistas, para se engajar de maneira “imediata” a uma resistência social não existente. A verdade banal de que a história não se repita é assim instrumentalizada, para subestimar as atuais tendências reacionárias na crítica social nas novas condições da crise.
O declínio da Alemanha e a crise da União Européia devem oferecer ao Sul globalizado uma imagem tenebrosa. A ilusão ótica de uma riqueza durável e de um conforto pulverizam-se. Quanto mais o Terceiro Mundo se faz visível no primeiro, torna-se cada vez mais questionável a orientação dos modelos sociais do centro capitalista. Não é mais o Norte que mostra a Sul seu modelo de desenvolvimento, mas exatemte o contrário: o Sul mostra ao Norte o futuro da crise. O mundo moderno do “trabalho abstrato” e da “riqueza abstrata” está à disposição na crise mundial do século 21. Uma nova perspectiva emancipatória para além do sistema de produções de mercadorias somente poderá ser atingida, quando as tendências bservadas em todas as partes a uma renacionalização ideológica forem radicalmente criticadas. O liberalismo obstinado das classes globalizadas, de um lado, e a nostalgia nacional das classes médias declinantes, por outro, não constituem nenhuma alternativa aceitável.
Versão integral de minha tradução publicada no caderno Mais! em 18.09.2003 sob o título de "A Ressaca do Fordismo"
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