quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Capital sem Freios - Entrevista com Oskar Negt (Mais!)

São Paulo, domingo, 21 de Fevereiro de 1999


O sociólogo Oskar Negt, amigo do social-democrata Gerhard Schroeder, fala sobre a crítica atual ao capitalismo

JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha, de Hannover

A vitória do social-democrata Gerhard Schroeder na Alemanha, no ano passado, coloca em primeiro plano uma geração de intelectuais egressos do célebre Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ao qual pertenceu Theodor Adorno, radicados em Hannover desde o início dos anos 70, entre os quais se destaca Oskar Negt, 64.
Professor titular do Instituto e amigo pessoal do novo chanceler, Negt é um dos autores do programa de governo na área cultural e um dos principais conselheiros de Schroeder. Nascido em Koenisgberg, cidade de Kant, Negt doutorou-se com Adorno e teve ampla militância junto ao movimento sindical nos anos 70. Sua obra mais conhecida foi escrita com o escritor e cineasta Alexander Kluge, "Eigensinn und Geschichte" ("Teimosia e História"), uma montagem cinematográfica da economia política.
Na entrevista a seguir, Negt fala à Folha sobre a adesão dos intelectuais ao programa de Schroeder e a crítica atual ao capitalismo.

Folha - Qual a função do intelectual na Alemanha de Schroeder?

Oskar Negt - Seja na "República berlinense" de Schroeder ou na "República de Bonn" de Kohl, os intelectuais têm, essencialmente, a função de estabelecer uma consciência de responsabilidade diante da totalidade social.
Vivemos hoje numa situação em que o capitalismo pela primeira vez em sua história, ora com maior, ora com menor intensidade, parece dispensar qualquer instância domesticadora, qualquer camada de proteção ou freio regulador. O Estado Nacional regulador, que administrava em sua jurisdição o lucro e a acumulação abstrata da mais-valia, está desaparecendo diante de nossos olhos. Os grandes empresários e os conglomerados deixam de pagar a tributação recolhida em nome do interesse público. Essa camada de segurança está se rompendo e, com o colapso do bloco oriental, ao qual não é mais preciso se comparar, desencadearam-se forças produtivas explosivas.
Somente agora o capital funciona exatamente na escala internacional e na velocidade descritas por Karl Marx, na sua lógica pura de acumulação e abstração, também chamada de "globalização".
Nessa situação -e não estou me referindo aqui aos países de uma modernidade recuperadora, mas sim aos países avançados-, depara-se com um problema central: esse capital e essa lógica de mercado, em tal grau de intensidade, prescindem cada vez mais da utilização da força viva de trabalho: o desemprego estrutural foge do controle, embora tal desemprego dependa também de elementos conjunturais. Hoje, em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos, na medida em que a economia se desenvolve, a força de trabalho viva torna-se supérflua.
Um estudo da Siemens recentemente publicado mostra que em dez anos a produção seria multiplicada por dez com o emprego da metade ou de um terço da força de trabalho atual. Então surge a questão central: como podemos inserir esse fenômeno em nossa rede conceitual e controlar o desemprego explosivo em massa. Esse é um ponto essencial da crítica dos intelectuais.

Folha - Com Schroeder, está novamente no poder o programa social-democrata. Quais são as chances de ele obter êxito?

Negt - Nenhum governo do mundo tem a capacidade de implantar utopias, salvo como ilusão ou completo desastre. Eu mesmo me empenhei no programa de governo, mas penso que esse governo social-democrata somente poderá implementar reformas sociais se for permeável aos movimentos de base nos sindicatos, escolas e universidades.
O ponto decisivo nessa mudança de eixo político foi tornar o clima cultural da sociedade mais favorável. Mas, se as pessoas depositam grandes expectativas em resultados imediatos, poderá haver grande frustração, pois a conjuntura internacional é desfavorável.
Embora seja amigo de Schroeder e tenha feito muito para que ele fosse eleito, nem por isso estou legitimando decisões de governo. Considero-me um intelectual político, com um recuo diante do poder e que deseja preservar um potencial crítico. Não sou da opinião de que se deva esperar tudo desse governo, precisamos mudar nossas relações e assumir cada vez mais responsabilidade pelo conjunto da sociedade.

Folha - Tal mudança política encontra uma paisagem intelectual avessa ao pensamento totalizador. Qual é o elemento vivo da crítica formulada pela Escola de Frankfurt que deve ser preservado?

Negt - A Escola de Frankfurt é um poderoso reservatório de possibilidades de atitudes e idéias, uma herdeira do humanismo renascentista na sua interdisciplinariedade, uma ferramenta poderosa do pensamento dialético.
Uma de suas linhas vem da teoria habermasiana, mas que é uma teoria exclusiva, que não tem mais muito a ver com a linha principal dos franfkurtianos.
O segundo ponto de conservação desse "núcleo de verdade" é a insistência do momento dialético do pensamento, que na escola dos epígonos de Habermas desapareceu por completo e na qual existem apenas estruturas dualistas, binárias, operando com oposições lineares entre "mundos do trabalho" e "mundos da vida".
O terceiro ponto a ser enfatizado são as linhagens e tradições que convergem nessa encruzilhada, da economia política às heranças derivadas de Kant, Hegel, Marx e Freud nas obras de Horkheimer, Neumann, Benjamin e Adorno. Essa síntese única é a identidade da pensamento frankfurtiano. Essas linhas, acredito, sempre permaneceram em nossa reflexão no instituto que criamos em Hannover, quando chegamos de Frankfurt, mas não mais em Habermas.
Habermas não pensa mais dialeticamente, recuando suas posições para as estruturas de poder do capitalismo. Nunca o capitalismo foi tão transparente em seus interesses. Nunca o poder do capital foi tão avassalador como hoje, não podemos falar sob hipótese alguma, como Habermas, do dinheiro como um meio. O dinheiro está absolutamente impregnado de relações de poder, não obstante a palavra "capitalismo" tenha estado cada vez mais presente na boca de Habermas nos últimos anos.
Para mim, a questão central continua sendo a crítica da economia política, embora o sistema tenha se "culturalizado". As forças econômicas se ocupam cada vez mais com a esfera cultural, também com consequências positivas. Mas a questão propriamente política dos focos de poder está excluída integralmente do centro da teoria habermasiana.

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José Galisi Filho é doutorando em Germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal.

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