sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Europa, Ano Zero - Entrevista com o Historiador Heinrich August Winkler (Mais!)


São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003


O historiador alemão Heinrich August Winkler afirma que o unilateralismo da era Bush é um "perigo" para o Ocidente e diz que o continente precisa agir de forma clara e imediata

José Galisi Filho
especial para a Folha , de Berlim


Ao contrário dos franceses, os alemães, desde Adenauer [chanceler de 1949 a 1963], mantiveram uma fidelidade incondicional aos interesses militares americanos no centro do continente durante a Guerra Fria. Depois da Queda do Muro, em 1989, a primeira administração Bush reconhecia na Alemanha reunificada uma "parceria na liderança" sob a égide da Otan [aliança militar ocidental, liderada pelos EUA]. O democrata Clinton tomava a economia social alemã como modelo em sua campanha eleitoral em 1992, e, finalmente, a participação militar alemã em Kosovo em 1999, a primeira no exterior desde a Segunda Guerra Mundial, consolidou aparentemente um sistema de defesa transatlântico que viria abaixo depois do 11 de Setembro. A história dessa amizade chegou ao fim depois da intervenção americana no Iraque e da última campanha eleitoral alemã em setembro passado, que reelegeu o chanceler Gerhard Schroeder. A posição irredutível da Alemanha em não participar do conflito precipitou, nos últimos meses, uma guerra diplomática entre Berlim e Washington numa escalada de desaforos e constrangimentos, reanimando ressentimentos adormecidos entre americanos e alemães, que pareciam superados havia muito no pós-guerra. As águias de Bush não apenas definiram um "eixo do mal", mas, escudados pela imprensa republicana, reservaram aos franceses e alemães o rótulo de "eixo da covardia" ("New York Post"). No auge dessa ofensiva verbal, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld desdenhou a "Velha Europa" diante da "Realpolitik" de Washington. Na esteira dessa guerra, as respostas intelectuais ainda parecem ofuscadas pelo pragmatismo da Doutrina Bush [conjunto de diretrizes unilaterais de política externa, anunciadas em 2002 pelo governo dos EUA, que enfatizam sobretudo a necessidade de agir preventivamente contra Estados hostis e grupos terroristas, mesmo sem apoio internacional], que pretende levar até as últimas consequências um projeto hegemônico que já ameaça os europeus. "A Doutrina Bush é um ato revolucionário, do qual os europeus ainda não perceberam as consequências." Essa é o opinião do mais importante historiador alemão da atualidade, Heinrich August Winkler, autor do tratado em dois volumes "O Longo Caminho para o Ocidente" (C.H. Beck Verlag, 2000), que descreve a normalização da Alemanha no sistema ocidental no pós-guerra numa perspectiva social-democrata. Winkler é professor titular da cadeira de história contemporânea na Universidade Humboldt, em Berlim, e recebeu o Mais! para discutir o futuro da parceria transatlântica e os limites da posição européia.

"O Longo Caminho para o Ocidente", é um dos livros de cabeceira do chanceler Gerhard Schroeder. Que tipo de conselho o chanceler lhe pede neste instante?

Não sou conselheiro do chanceler, mas, como historiador, me dou por satisfeito com o fato de que Schroeder, bem como políticos de outros partidos, tenha se ocupado com esses dois volumes e que exista, em razão disso, um consenso de que a Alemanha reunificada se integrou à cultura política do Ocidente liberal -a saber, que deu continuidade àquela da antiga República de Bonn. Isso significaria, fundamentalmente, um entendimento da ação política concreta com base no dissenso e na pluralidade de opiniões. A questão do Iraque, portanto, nesse sentido, não seria, na verdade, um problema que diz respeito a valores ocidentais, mas antes à rejeição da premissa mesma dessa noção de democracia representativa no plano das instituições do direito internacional nos últimos 50 anos: intervenções militares legítimas, respaldadas pelo Conselho de Segurança da ONU. Em minha perspectiva, pertence, em primeiro lugar, à cultura do Ocidente a defesa e o desenvolvimento das instituições do direito internacional e o fortalecimento da ONU, e, nesse sentido, existe no momento um dissenso substantivo entre o governo americano e os europeus.

O que significa o Ocidente hoje diante da impotência da Europa?

O Ocidente é uma idéia normativa que se desenvolveu ao longo de séculos pela distinção primordial entre a violência secular e espiritual desde a baixa Idade Média até meados do século 18, como expressão lógica da racionalização e secularização das esferas de existência. Ele é, portanto, a definição daquilo que é constitutivo em nossa cultura, como o pluralismo e a legitimidade da democracia formal. Existiam já no cristianismo traços dessa diferenciação, mas o específico desse desenvolvimento em relação a outros sistemas culturais é a constituição de uma normatividade a partir da diferenciação entre as esferas política e religiosa. Talvez o publicista italiano Angelo Bolaffi tenha razão quando afirma que não existe "o" Ocidente, mas uma pluralidade de Ocidentes e tradições jurídicas que partem dessa distinção e, pelo menos hoje, duas formas: uma americana e outra européia.

Para a Doutrina Bush esse pluralismo parece ser mais uma das "velhas idéias" européias. O envenenamento das relações entre a Alemanha e os EUA atingiu o ponto mais crítico desde o fim da Segunda Guerra. Seria possível ainda um desarmamento retórico neste governo?

Encontramo-nos, sem dúvida, numa fase aguda de definição do diálogo transatlântico em que, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, colocam-se as questões essenciais para o futuro dessa parceria desde a criação da Otan em 1949. Isso deveria ser uma vantagem, e não um convite, à ação unilateral. A assim chamada Comunidade da Pacto Atlântico é, neste momento, mais uma abstração do que uma realidade diante da Doutrina Bush, que se reserva o direito especial a guerras preventivas. Essa doutrina foi uma rescisão unilateral da Carta das Nações Unidas -uma resposta a séculos de guerras de agressão e uma das grandes conquistas do direito internacional desde a Idade Moderna. É um paradoxo desse desenvolvimento que justamente o poder militar americano, que garantiu a estabilidade desse princípio durante a Guerra Fria, o descarte de modo sumário. A Doutrina Bush, formulada em 20 de setembro de 2002, foi um ato "revolucionário" em sua violência e do qual os europeus ainda não tomaram plena consciência. Trata-se agora, portanto, de recuperar o eixo de um diálogo sobre o futuro do direito internacional, do fortalecimento e reforma da ONU e da definição de um novo conceito de defesa diante do novo terrorismo internacional, em que ambas as partes deveriam estar dispostas a colaborar. O governo americano deverá ainda chegar à conclusão de que a Europa é seu mais importante parceiro a longo prazo. A Europa, por sua vez, deveria levar mais a sério a ameaça do terrorismo internacional e redefinir um conceito de defesa continental, que já vem sendo trabalhado hoje, e não concentrar-se apenas no incremento de seus efetivos militares. Somente dessa forma o "projeto Europa" terá uma chance no sentido de restabelecer a unidade da aliança transatlântica.

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O antiamericanismo está
disseminado no resto do
mundo, não só
na Alemanha; mas não acho
que ele seja tão intenso como
se afirma

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Tanto Schroeder quanto Bush vieram da província para o centro do poder sem nenhuma experiência em política internacional e fazem desta um instrumento de política interna. Bush tomou o ataque de Schroeder à intervenção no Iraque durante a última campanha eleitoral como questão pessoal. Como o sr. vê essa constelação de acentos pessoais numa questão-chave para o futuro da aliança transatlântica?

De uma perspectiva histórica a longo prazo, prefiro acreditar que isso será apenas uma mera nota de rodapé nesse diálogo. Acentos pessoais não são duradouros nessa escala, mas seria particularmente desastroso para essa relação se as idiossincrasias de políticos e intelectuais persistirem não naquilo que nos vincula, mas no que nos diferencia.

E por que então o sentimento antiamericano é particularmente tão disseminado em intelectuais e em vastas camadas da população?

O antiamericanismo está disseminado no resto do mundo, não apenas na Alemanha. Não acho que ele seja tão intenso como se afirma. Existe, sim, na Alemanha uma esquerda tradicional anticapitalista, com sua tradicional imagem de inimiga dos EUA. Há também na Alemanha uma direita radical e nacionalista contra a americanização de nosso cotidiano. Ambas são minorias inexpressivas do espectro político, pois o nosso cotidiano é americanizado. Acredito que o movimento da sociedade civil parte, na verdade, da distinção de que o governo Bush não representa a sociedade americana como um todo. Aqueles que afirmam que os protestos em massa contra a Guerra do Iraque são expressões desse antiamericanismo se enganam, pois se trata de um sentimento legítimo pela violação clara do direito internacional por parte da administração Bush. A maneira pela qual o governo americano tratou seus parceiros e a ONU é inaceitável, perigosa e exige de nós, europeus, respostas claras e imediatas.

O historiador inglês Eric Hobsbawm afirmou recentemente que os EUA se vêem na posição única de consolidar, finalmente, um projeto hegemônico duradouro no século 21 por meio da divisão e enfraquecimento dos parceiros. O que significa essa hegemonia a longo prazo?


A teoria e a prática do unilateralismo americano colocam em xeque de maneira radical o princípio de uma "comunidade de interesse ocidentais". Um Ocidente que acredita poder prescindir de seus valores normativos não é mais um Ocidente em sua definição. Há, de fato, nos pensadores neoconservadores, nas assim chamadas "águias", um projeto de hegemonia "think tanks", que já estava em gestação desde a primeira administração Bush e atingiu sua massa crítica depois do 11 de Setembro. Trata-se da clássica divisa dos antigos impérios: "Dividir para imperar". Caberia então à Europa insistir nesse conceito normativo de Ocidente como uma contradição em si, independentemente de ela poder ou não refrear, agora, esse impulso, assumindo o papel de defesa do direito internacional pelo multilateralismo, sem excluir a possibilidade de intervenções humanitárias. Os europeus deveriam se empenhar em incrementar o diálogo com as forças políticas multilaterais da sociedade americana e desenvolver, simultaneamente, uma estratégia de autodefesa que os torne menos dependentes dos EUA. Normalmente, a vitória militar significa uma vitória política. Os EUA ganharam o conflito militar, mas não ainda do ponto de vista político, se é possível afirmar que ganharão. As objeções européias à intervenção americana não foram apenas normativas do ponto de vista do direito internacional, pela falta de legitimação do Conselho de Segurança, mas em razão da realidade. Os neoconservadores de Washington imaginam poder criar no Oriente Médio um cinturão democrático, o que, para nós, europeus, é uma visão anacrônica e irreal. O cálculo desse cenário pós-guerra dos conservadores parte da premissa de uma "ocidentalização" da região, o que para nós é apenas um "wishfull thinking". A idéia de um Iraque como um dominó democrático é uma grande ilusão, pois as forças políticas locais dominantes não são os políticos exilados, mas os fundamentalistas xiitas. Se eles tomaram o poder em uma eleição livre, esse cálculo fracassa. Mas esse cálculo também fracassa se os americanos adiarem a constituição de um governo democrático. Os americanos não podem correr o risco de aceitar um vitória dessas forças. O mais provável seria então um efeito dominó xiita reverso. E, se essa estratégia fracassar, nós, europeus, não temos motivos para sarcasmo, pois esse enfraquecimento da posição americana também seria perigoso para nós. Portanto, trata-se de reencontrar, dentro da aliança atlântica, um eixo de identidade.

Quais são então as fronteiras culturais da expansão da União Européia?

A Europa está impregnada de sentimentos culturais comuns e também tradições jurídicas de séculos de conflitos, cujo ápice foram as duas últimas guerras mundiais. A expansão da "Europa dos 25 países" somente será possível se essa pertinência tiver um núcleo de identidade cultural. Essa Europa poderá ter a chance de desenvolver um cultura política ocidental da democracia. Essas chances não existem, no meu ponto de vista, na perspectiva de uma Turquia, em que a constituição de um Estado moderno somente foi possível por meio da ação militar no século 20 e, mesmo hoje, é garantida por essas forças. Isso não existe em nenhuma das outras democracias ocidentais. Portanto, não vejo como a Turquia pode ser integrada, nesse sentido, à Europa unificada. Não se trata apenas da ampliação de um espaço econômico, mas de diferenciação de cultura política. No que diz respeito à Rússia, valeria o mesmo princípio do déficit de cultura política, mas também o de desproporção espacial. Não consigo imaginar uma Europa unificada que se estenda até Vladivostok. Ela não ofereceria uma sentimento de identidade. Assim, há limites claros nesse processo de expansão.

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José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha.

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