quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Auschwitz, Altar do Capitalismo - Há Sangue na Sapatilha ou o Enigma da Liberdade* (Revista Vozes)


Heiner Müller 1

O Striptease do Humanismo

Adorno observa que sob a sentenciosidade do kantiano Schiller esconde-se aquele moço interiorano e insolente que sempre está pouco à vontade na boa sociedade 2. O esquematismo não é só notória fraqueza literária, mas mimetiza, em sua pretensão totalizante, uma brutalidade contra o pormenor e, por extensão, contra os mais fracos. Esquemas conceituais de grande latitude tendem à inflexibilidade: o Espírito absoluto exige o horror absoluto como seu sublime. No caso alemão, essa habilidade não se exercitava nas Academias, mas nas cervejarias e é produto da imitação dos franceses. Não é, à toa, prossegue Adorno, que o desejo de deduzir o mundo através da linguagem lembra em Schiller antes a tentativa de usurpar o poder que a resistência a ele. De fato, foi de salteadores que Schiller mais se ocupou, no que encarna o puro ressentimento pequeno-burguês. Naquilo que é a sensível cápsula de humanismo, em sua imitação forjada do natural, ruge a alma da besta que transformará o mundo inteiro em prisão.

Quanto mais abstratos os esquemas, mais vulneráveis são à sexualidade, aos nós cegos da imediação. A "pura ação" de Fichte; constelação fixa do imperativo categórico nada mais é que aquele sinistro olhar pervertido, antecipação do estupro "transcendental" que o Estado fascista irá impor à Europa, com a rapinagem de tesouros e a destruição (redução ao "essencial") de milhões de corpos sob a égide do desprezo, da efíciência e de um terrível amor aos grandes números. O assassinato desapaixonado é conseqüência desse espírito burocrático cujo hino é A Canção do Sino. Em Goethe, pelo menos, a sensualidade de algumas personagens femininas ainda representa uma alegoria de uma histó-ria original, mediatizada pela linguagem. Na fase de Weimar, ela encarna o pudor e a civilidade que fogem da vulgaridade burguesa, onde germina o terror jacobino.



Ifigênia e Tasso são por excelência dramas civilizatórios, e a plasticidade aristocrática do iâmbico é o momento de sociabilidade de personagens ilustrados. O desejo não é reprimido, mas sublimado. Schiller, ao contrário, torna-se prisioneiro da imediação quanto mais abstrato é, sucumbido à crueza sexual. Adorno poderia acrescentar como nota trágica que o manto de Goethe foi encontrado no campo de Buchenwald, nas proximidades de Weimar.



Se a língua do classicismo de Weimar é ersatz revolucionária, a promessa de um conceito de Humanidade total cumpriu-se inteiramente, pelo menos no sentido da Ode à Alegria do próprio Schiller segundo o mandamento pré-fascista: "quem não for capaz desta felicidade retire-se do mundo". Como nas fábulas infantis, essa retirada é o castigo de regredir ou permanecer no estágio animal. O sublime nazista reduziu a Europa a cinzas.


A dramaturgia de Heiner Müller, especialmente em sua fase tardia a partir dos anos setenta, representa uma das tentativas mais empenhadas no contexto europeu contemporâneo em denunciar a cumplicidade do pensamento esclarecido e o terrorismo de Estado. Essa aliança ganha contornos extraordinários num de seus textos mais líricos sob o pano de fundo da deutsche Misere, no nascedouro do militarismo prussiano. Em Gundling (1976)3 a difamação do Esclarecimento precipita uma curva histórica de 200 anos, num mosaico que vai da corte de Frederico II até o presente. Gundling é uma genealogia do desaprendizado do Estado prussiano na Escola das Nações desde o início de sua carreira criminosa, até o colapso do regime hitlerista, tendo Lessing por contraponto desse sonho/pesadelo.

Uma de suas cenas é particularmente exemplar. Inspirado na História da Loucura, de Michel Foucault, Müller localiza num manicômio prussiano a conexão essencial entre racionalidade e controle do mundo pulsional. Ao apresentar a seus alunos um infeliz paciente com a cinta anti-masturbatória de Daniel Schreber, o professor define a invenção como a "Escola da Liberdade", produto da racionalidade autocorretiva. "Cada um se torna sua própria Prússia"4,

prossegue o professor, a introjeção da autoridade deve excluir qualquer vestígio de espontaneidade para que o Estado se firme sobre a "paz eterna" e a "oclusão intestinal generalizada". Enquanto França e Inglaterra entregavam-se à partilha colonial do planeta, o atraso local refluía em colonização da própria população, de fato, numa "endocolonização" do rebanho interno, cujo primeiro mandamento é a deliberada repressão sexual dos camponeses. A educação que se volta contra as pulsões primárias é um dos dados mais salientes da personalidade autoritária. Em seu acabamento suicida, a própria realidade lhe é insuportável.

O movimento vertiginoso do texto mimetiza a unidade estrutural dessa linha histórica até desembocar no delírio de Lessing. Gundling se inscreve, portanto, como bem apontou um dos críticos de Müller, como uma contribuição à "história do corpo na Prússia".

Não é meu objetivo aqui discutir a particularidade da representação radicalizada do fascismo em Müller e suas diferenças em relação a Brecht. O que interessa a Müller é a sua "forma de aparição concreta", que escapou a Brecht em suas parábolas do exílio, seja por um quadro conceitual anacrônico, seja pelo distanciamento que a própria disciplina artística impôs a seus objetos, conferindo-lhes um acabamento exemplar. Num movimento de refluxo, as parábolas convertem-se em seu "segundo exílio". Na verdade, a opção pela parábola em detrimento da Lehrstück representava uma tentativa de obter uma durabilidade formal diante de uma temporalidade destrutiva. Já muito cedo, Brecht sabia que o fascismo iria perdurar. Depois de seu retorno à RDA, a concretude do "fascismo cotidiano" aparece a Brecht no Prólogo de Antígona, em 1948. Para Heiner Müller, ele representa o dado essencial de sua experiência dramatúrgica e se generaliza, para além dos limites do "núcleo germânico" de sua obra, num projeto de crítica civilizatória radical, como um ataque à própria História: "um crítico viu em minhas últimas peças um ataque à História, à concepção linear de História. Ele lia nelas a rebelião do corpo contra as idéias, ou mais precisamente, contra o impacto das idéias, notadamente da idéia de História sobre os corpos humanos. Isto é de fato aquilo a que viso em meu teatro, arremessar sobre o palco corpos em confronto às idéias. Enquanto houver idéias, haverá feridas. As idéias infligem feridas aos corpos"5. As palavras convertem-se em assassinatos, reitera Müller através da leitura de Sófocles por Hölderlin.


O peso objetivo das idéias exige o sacrifício de corpos e a estrutura dessa experiência está plasmada desde sempre na capacidade manipuladora do pensamento conceituai que tudo reduz à categoria de material. Talvez na passagem mais sinistra da Dialética do Esclarecimento, afirma-se a inutilidade do calvário da pobre cobaia, mero espécimen e exemplar fungível diante de uma racionalidade que ignora o que não seja de antemão conhecido.



"Auschwitz é o altar da racionalidade capitalista", conclui Müller, o êxtase ascético de um movimento de tecnificação progressiva do cotidiano, cujas resistências devem ser a todo custo eliminadas. Essas resistências são as minorias que exigem permanecer em sua própria velocidade. Neste século de catástrofes tecnológicas, as guerras somente foram a exarcebação do movimento que tende a excluir todos aqueles que exigem permanecer em sua própria velocidade, a velocidade biológica do humano, pois o pensamento e a reflexão somente existem à margem.

Auschwitz encarna a cegueira da totalidade, a exclusão, exclusão de todos, sem exceção. Mais cedo ou mais tarde todos acabam sendo "selecionados".

O delírio final seria a criação de câmaras de gás que dispensassem a manipulação externa, acionadas automaticamente pelo peso de suas próprias vítimas, como aquele infeliz bezerro de Santa Joana dos Matadouros, despencando pelas engrenagens abaixo. Por muito pouco não se chegou a isso.



Müller ironiza, mencionando que um francês maldoso havia dito uma vez que a grande contribuição alemã à cultura universal seria o jardim zoológico. Ora, o campo de concentração não passa de uma "variante humanista" do zoo, laboratório e teatro de horrores armado pelo Esclarecimento em sua trajetória colonial desde Ulisses. A única diferença é que os bichos não se comportavam bem.

Rudolf Ferdinand Hóss**, comandante de Auschwitz, fica
aliviado quando as câmaras de gás estacionárias põem termo ao
espetáculo de sangue dos fuzilamentos coletivos que tão mal fazia a seus soldados.

Primo Levi, um dos "homens zebras" que encontrou os primeiros pelotões russos em 27 de janeiro de 1945 na saída de Auschwitz/Birkenau via, sem ressentimento, o campo de extermínio como produto de um silogismo excludente. Na geometria feroz de seus movimentos regulares, ele nunca poderia ser compreendido no seu "em si". Ao se cristalizar como imagem de um mundo que sobreviveu à própria catástrofe, ele inviabiliza qualquer possibilidade de relato. Nele, finalmente, o corpo converte-se em abstração e neutraliza qualquer experiência autêntica da morte, que somente pode existir na escala do indivíduo.



A coreógrafa do Barba Azul de Bausch é um condensado desse estupro que se realizou em escala continental e visa a descongelar o espanto inscrito nos corpos. Os caminhos e descaminhos do desejo ganham sua expressão a meio termo entre o balé e o drama, um "novo continente". Existe uma observação de Heiner Müller sobre Ernst Jünger, este Quixote da brutalidade ascética, que definiria o problema do século, em especial da Alemanha: "antes que ele conhecesse as mulheres, já estava na guerra"6. Se a guerra representa a "grande puberdade", essa crise, que foi a modernização tardia da Alemanha e seu caminho peculiar para a revolução burguesa, com todos os seus recalques como já se percebe em Schiller, custou muito caro à Europa, com duas guerras de agressão.


Existe também uma história sobre Adorno, mencionada por Habermas em seu perfil 7, que nos ajuda a esclarecer todo o pathos de sua arquitetura conceitual. Adorno estava numa festa em Hollywood na casa do protagonista do filme Os Melhores Anos de Nossas Vidas, que havia perdido suas duas mãos na guerra. Adorno, desprevenido, estende-lhe a mão e recebe um braço metálico. Imediatamente, Chaplin traduz o horror de Adorno com uma pantomima, onde se mesclam uma sensibilidade quase infantil e o pânico, recuando diante do inumano, como no teatro de marionetes. Na rigidez e na frieza da prótese, o corpo se congela como estereótipo.

Nas valas comuns de 1945 e de nossos dias, podemos ler esse escárnio do Esclarecimento na face dos milhões de corpos convertidos em caricaturas. A ingenuidade do toque não pode suportar essa dimensão que é a própria totalidade. E é dessa ingenuidade e desses terrores que nos fala a dança de Pina Bausch.



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* Tradução: José Galisi Filho.
1. Heiner Müller Material, Texte und Kommentare. Reclam-Verlag, Leipzig, 1990, p. 55-59. Título original: Blut ist im Schuh oder Das Rätsel der Freiheit. Alusão à versão de Grimm da Gata-Borralheira. Para colocar o sapatinho uma das irmãs corta o artelho e a outra, o calcanhar. Essa amputação não aparece em muitas versões. (NT)
2. Adorno, Theodor. Trapalhadas Suábicas e Os Salteadores In: Mínima Moralia. Ática, São Paulo, p. 76-77.
3. Müller, Heiner. Leben Gundlings Friedrich von Preussen Lessings Schlaf Traum Schrei In: Herztück. Rotbuch Verlag, Berlin, 1990.
4. Id. p. 25.
5. —, Mauern In: Rotwelsch, Merve Verlag, Berlin, 1982, p. 76.
** Um dos mais cruéis chefes do campo de Auschwitz. Durante o julgamento em Nuremberg, confessa os assassinatos, descrevendo os métodos empregados. Condenado à morte, foi enforcado em 1947. Transcrevemos com horror fragmento de seu depoimento: "Além disso, nós fazíamos as vítimas acreditarem que elas estariam entrando nas câmaras para eliminar os piolhos, o que não acontecia em Tre-blinka. Nós devíamos proceder ao extermínio em segredo, mas o odor insuportável que exalava dos corpos cremados invadia as regiões ao redor. Todas as cidades ao redor sabiam que os extermínios aconteciam em Auschwitz". Em Auschwitz foram assassinados: 1,5 milhões de seres humanos, sendo 1,2 milhões de judeus (entre eles 76 mil franceses de origem judaica foram deportados de Auschwitz, dos quais somente 2.300 sobreviveram); 150 mil poloneses; 23 mil ciganos; 15 mil soviéticos. (Nota Secretária de Redação da CULTURA VOZES.)
6. —, Krieg ohne Schlacht. Leben in zweien Diktaturen. Kiepenheur & Witsch, Köhl, 1992, p. 282.
7. Habermas, Jürgen, Theodor Adorno - Pré-História da Subjetividade e Auto-Afirmação Selvagem. In: Grandes Cientistas Sociais. Ática, São Paulo, 1985, p. 139.

José Galisi Filho*


Para Pina Bausch

Quando éramos crianças, brincávamos de esconde-esconde.
Você ainda se lembra de nossas brincadeiras.
Todos se escondem, menos aquele que deve esperar
O rosto contra uma árvore ou uma parede
A mão sobre os olhos, até que o último
Tenha encontrado seu lugar, e quem e descoberto CULTURA VOZES
Deve correr mais rápido que o perseguidor:
Se chegar em primeiro lugar à árvore, está salvo.
Senão, deve permanecer no mesmo lugar sem se mexer
Como se o golpe de mão dado na árvore ou na parede
O colasse no solo como uma lápide.
Ele não deve se mexer, até que o último
seja descoberto. E o último, às vezes,
Por estar muito bem escondido, não é descoberto.
Então todos esperam petrificados
Cada um seu próprio monumento, esperando o último.
E acontece às vezes que alguém morre
E seu esconderijo não é descoberto, nenhuma
fome o faz sair de sua morte
Ela o surpreendeu quando não era a sua vez.
Os mortos não têm mais fome.
Então a ressurreição não acontece. O perseguidor
deu uma volta em torno de cada pedra quatro vezes.
Agora ele somente pode esperar
O rosto contra sua árvore ou contra a sua parede
A mão sobre os olhos, até que o mundo
tenha passado por ele. Veja como ele gira.
Ponha a mão sobre os olhos irmão.
Os outros, aqueles que o perseguidor pregou no solo
Com um golpe de mão
Contra a árvore ou a parede, porque não correram
suficientemente rápido de seu esconderijo, que não era muito seguro, e agora eles não têm
Mãos para seus olhos, pois
não devem se mexer, e seus olhos
Eles também não devem fechá-los, é a regra
Como nas pedras no cemitério, eles esperam,
Com olhos abertos, o último olhar...
(da peça Cimento) 8



2. O tempo no teatro de Pina Bausch é o tempo do conto
de fadas. A História intervém como uma pertubação, como os
mosquitos no verão. O espaço é ameaçado pela ocupação de
uma ou outra gramática, a do balé ou do drama, mas a linha de
fuga da dança o mantém contra a ameaça dessas duas ocupações. O território é um novo continente, uma ilha emergente, o produto
de uma catástrofe desconhecida (esquecida ou futura): talvez ela
esteja acontecendo neste instante enquanto a representação se
desenvolve. Um pouco desse contato imediato com a vida, que
Brecht invejava no teatro elisabetano, se restabelece.

O cinema e a televisão não fazem concorrência, eles podem ser utilizados. O conjunto é um jogo infantil.

3. Os jogadores são sobreviventes (O espectador fará talvez uma outra experiência). Eles relatam o terror da infância: João e Maria, fugindo de sua madastra, perdem-se num supermercado. A única saída talvez seja botar fogo no prédio. Enfim, foi com o fogo que tudo começou... O terror dos sentimentos: a pequena chapeuzinho vermelho encontra o lobo na discoteca, que quer comprar seu amor com o dinheiro da vovozinha morta. Talvez ela devesse aprender sua linguagem, que é a linguagem da violência e, "com a arma em punho", castrá-lo... Terror do balé: ele aparece como História coagulada: a ordem do corpo submetida a uma lei. O striptease do humanismo desnuda a raiz sangrenta da cultura.

4. Os sobreviventes têm apenas um instante. Eles celebram suas festas sobre um cabo estendido entre dois prédios que ameaçam desabar. A coreografia se inscreve na tradição das danças macabras. Entre as guerras, uma outra Idade Média. Foi a idade de ouro dos alemães: a felicidade em osmose com a morte coletiva, a igualdade diante da ampulheta é anunciadora da justiça no dia do Juízo Final. O que há de demoníaco no combate de trincheiras que Brecht travou com Hitler, e que Benjamin registrou com um espanto erudito, provém da (re)tomada desses substratos, alimenta-se desse núcleo incandescente.

5. A Idade Média de Pina Bausch: no lugar da peste, o consumo, o mais jovem dos cavaleiros do Apocalipse. A lei das séries é a lei da exclusão, o genocídio, a alta escola da estatística, o caminho quo conduz ao matadouro passa pelo banco de dados. Pode ser que a última verdade sobre o consumo seja o clarão atômico. Montamos sobre um cavalo errado e talvez a corrida já tenha acabado. Antes da liquidação, o teatro dança o inventário, os rituais desempenham o registro do caixa. Assassino, esperança das mulheres: o que está em nós, desejado e odiado, amado e violado. Perícia dos rastros das correntes de ar de Kontakthof: a parada dos zumbis, felizes vítimas da publicidade.



Dignidade do tango contra a livre escolha de sua morte. O riso se congela nos estereótipos, a insistência da repetição desmascara o tédio: a dor é a sua face, o manejo do que está sob o limiar da consciência, onde moram os desejos e temores, faz o riso e as lágrimas subversivas.

6. "Na Itália eu tinha um galo. Ele sempre ia sempre ia ao jardim dos outros e minha mãe teve que matá-lo. À noite, depois de tê-lo cozinhado, ela me disse que aquele era meu galo e que, se quisesse, não precisava comê-lo. Mas eu queria comer tudo. Eu o queria apenas para mim".


A ldade Média de Pina Bausch é aquela da Cruzada das Crianças de Brecht, com o cão perdido que é o único a saber ainda o caminho, desde que o bom Deus teve de tirar a máscara do imperativo categórico, porque ela lhe queimava a pele, e perdeu sua face diante das montanhas de sapatos, cabelos e dentes de ouro dos campos de extermínio (Talvez ele tenha ainda uma possibilidade como mulher, ícone em revistas masculinas, ou sobre os altares de peep-shows.) As crianças ainda estão a caminho: a criança que não queria se lavar no dia da visita do imperador, e a criança teimosa cuja mão sai do túmulo. Os jovens assassinos das grandes cidades americanas e as gangs de crianças nas cidades do Terceiro Mundo. Os guardas vermelhos e os anjos exterminadores do leitor de Verlaine Pol Pot.

7. Você não fará nenhuma imagem. As metamorfoses de violência no Barba Azul não são de uso doméstico ("É assim que se viola uma mulher").



O esconde-esconde é o primeiro jogo: a criança quer desaparecer. A nudez é tabu: antes do casamento o noivo não deve ver a noiva, e até o casamento há uma irritante espera. No teatro de Pina Bausch, a imagem é um espinho no olho, os corpos escrevem um texto que se recusa à publicação, à prisão da significação. A liberação das exigências do balé, que é marcado pelo estigma da servidão, que - aos olhos dos senhores de diversas criações - lhe confere um encanto análogo àquele da caça, outro hobby feudal. Sua democratização, sob a forma de revista, é uma transição, liberação dos camponeses para o trabalho na linha de produção: nos estádios, a massa se torna ornamento. A congruência do ornamento e de troféu tornase dolorosamente visível no flash de uma paródia de balé: as mulheres de Barba Azul como tapeçaria no castelo de Barba Azul. Depois do teatro sem texto, do Hamlet, de Zadek, à Orestia, de Stein, para citar apenas dois veados de ouro, diante dos quais alguém perde a audição nos momentos felizes, uma nova linguagem do teatro. Depois da grande tentativa frustrada de Gruber, com uma medíocre peça de época, de desviar o teatro para o eixo Norte-Sul, contra o público que não desejava renunciar ao odor da transpiração de seu divertimento noturno, um outro teatro da liberdade. Não nos deveria surpreender uma esfinge que nos olhasse, quando miramos a face da liberdade.

1981
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* Colaborador da CULTURA VOZES
8. Zement, 1972, baseada na adaptação do romance homônimo russo de Fedor Gladkov (N.T.).

Publicado em Cultura Vozes, No. 2, Ano 89, Volume 89, Março-Abril de 1995, p. 2-11.

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