quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Obra do Dramaturgo se Rebela contra Superação do Presente (Ilustrada)

São Paulo, sábado, 31 de março de 2001


JOSÉ GALISI FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM HANNOVER

Há dois anos, um colóquio acadêmico no balneário britânico de Bath propunha como tema o "caso" Heiner Müller.
A expressão era ambígua e denotava seu emprego jurídico -como exemplo de um certo "processo" ou "disputa" em que estariam em conflito as várias dimensões de sua obra-, mas não deixava de indicar um certo humor britânico involuntário no sentido de declínio ou "queda", a saber, os motivos pelos quais Heiner Müller quase desaparecera da cena teatral alemã e da mídia que o cortejara como o mais dileto arauto do apocalipse estético.
Por que essa mudança tão radical na avaliação de obra tão impregnada pelo presente? Ela teria se encerrado depois de 40 anos de socialismo e depois de dez anos da queda do Muro?
Alguns críticos acreditam que Müller, como o "autor de passagem" entre as fronteiras dos dois Estados alemães, esteja "superado" historicamente. Sem a gravidade ideológica, suas peças não seriam compreensíveis para um público contemporâneo, ou mesmo irrelevantes.
A questão é que a própria obra de Müller formula, de seu interior, uma concepção dinâmica de "atualidade" que se insurge contra uma idéia de arte tão vulgar, linear e naturalista.
Nas palavras do próprio Müller, em uma carta endereçada ao diretor Martin Linzer a propósito da peça "Der Bau" (A Construção): "Se consideramos esta peça como o reflexo de um "processo de construção", ela não é representável. A distância (atitude) em relação ao material constitui a produtividade do texto. Um texto vive da contradição entre material e autor, entre o autor e a realidade".
Também para o espectador de hoje as escaramuças daquela história prussiana parecem insignificantes. Ou seja: a superfície de um material estético constitui, no que diz respeito ao horizonte de recepção, apenas a primeira camada compreensiva e pode até certo ponto ser negligenciada em seu movimento autônomo.
O "curto circuito" de Heiner Müller e sua recepção envolve, portanto, a própria idéia de presente e atualidade implícita em sua poética. Para Müller, apenas o novo é o motor da legitimidade estética, caso contrário, a arte não passa de um exercício parasitário e autoparódia.
Mas essa noção institucional de "novo", exigida pela própria engrenagem cultural, alimenta o fantasma de uma vanguarda permanente, que se confunde com a própria rotinização do choque pelo mercado. É contra essa falsa superação do presente, embutida nessa motricidade vazia, que a obra de Heiner Müller se rebela, nele arriscando a dissolução/superação de seu próprio sentido.
Se a imagem da longa marcha da tropa de choque da vanguarda já inspirou a retórica de uma comutabilidade sígnica interminável e de um desejo que não encontra forma dentro da história, de fato, são os outros que continuaram marchando e não se sabe ao certo se a tropa de frente chegou ou não ao seu destino.
Heiner Müller sabia que a imagem do movimento incessante não é a da vanguarda histórica, pelo menos, na sua autocompreensão original.
Aquilo que fora a intenção adorniana na hibernação da dialética negativa apresenta-se em Müller como uma "suspensão" da própria estética e do presente na forma de uma dialética congelada, adiando um juízo definitivo sobre sua obra e sobre o gesto negativo de seu Hamlet: "Eu não sou Hamlet".
Somente nesse sentido Müller foi "superado" historicamente.

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