quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Clássico Moderno - Entrevista com Siegfried Unseld (Ilustrada)


São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2000

FEIRA DE FRANKFURT
Suhrkamp comemora Jubileu em Frankfurt

A editora fundada por Peter Suhrkamp em 1950, depois de uma separação judicial da Fischer, nasceu de uma "rebelião" de escritores, como Thomas Mann e Bertolt Brecht

JOSÉ GALISI FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE FRANKFURT

A Suhrkamp comemora nesta Feira de Livros de Frankfurt, que começa hoje, seu jubileu. A editora fundada por Peter Suhrkamp em 1950, depois de uma separação judicial da Fischer, nasceu de uma "rebelião" de escritores.
Thomas Mann e o espólio de Kafka ficariam na Fischer, enquanto Hermann Hesse e Bertolt Brecht e mais 33 escritores formariam a espinha dorsal da nova editora. Foi Hermann Hesse também quem angariou recursos financeiros na Suíça para a formação da nova sociedade. É célebre a carta de Brecht a Peter Suhrkamp: "Caro Peter, sob quaisquer circunstâncias, gostaria de permanecer na editora que você dirige. Seu, Bertolt Brecht".
Depois da morte de Peter Suhrkamp em 1959, Siegfried Unseld assumia a direção da casa, na qual permanece até hoje. Unseld, 75, é uma legenda do mercado editorial alemão e sua figura mais impregnante no pós-guerra.
O segredo de sua fórmula de sucesso editorial, herdada do fundador, que seria a marca distintiva da Suhrkamp nas décadas seguintes, era não se concentrar na edição do livro, mas no próprio autor. "Unseld é um editor único, cujo amor patológico pela literatura fazem-no uma figura particularmente sensível às necessidades de um escritor", afirma Hans Magnus Enzensberger.
Essa sensibilidade, aliada ao talento impulsivo de um empreendedor, descobriria e construiria quase toda a constelação literária alemã do pós-guerra, a começar pelo próprio Enzensberger, conselheiro editorial da casa durante anos, bem como Peter Handke, Martin Walser, Uwe Johnson, Peter Weiss, Max Frisch, Thomas Bernhard, além da organização de uma biblioteca básica do clássico moderno como Brecht, Samuel Beckett e Eliot.
A Suhrkamp foi, de fato, a locomotiva da renovação literária da República Federal, tornando-se um ícone de uma cultura aristocrática de esquerda. Foi a Suhrkamp também que deu forma sistemática e institucional ao ensaísmo da Escola de Frankfurt, nascida à margem da Universidade no Instituto de Pesquisa Social, no pré-guerra, com Adorno, Marcuse e Benjamin. Unseld dispõe de um faro nato para descobrir novos talentos. Nos anos 80, a Suhrkamp investiria no "boom" do continente literário latino-americano.


Siegfried Unseld falou com exclusividade à Folha sobre sua carreira à frente da editora e sobre seu futuro.

Folha - O sr. parece ser como editor aquilo de que o futebol alemão mais precisa neste momento: um bom técnico. Como o sr. se entende como editor?

Siegfried Unseld - (Risos) Nós perseguimos a divisa de Beckett: prosseguir sempre, de maneira cada vez mais precisa, intensa e criativa. Assim como meu amigo Peter Handke ("O Medo do Goleiro diante do Pênalti") afirma em relação à literatura": temos de jogar o "jogo decisivo", avaliar com cada vez mais precisão e elevar cada vez mais o nosso patamar.
A Suhrkamp tem por linha editorial não pensar apenas em termos de um livro, mas de uma obra. Foi a partir desse princípio que elaboramos nossas várias bibliotecas. É na organização dessas séries que se lê com mais precisão a vontade de uma editora.
A peculiaridade da profissão de editor consiste no fato de que ele disponha de um impulso em formar algo espiritual, mas lhe faltem os órgãos para configurar imediatamente sua vontade.
Ele deve, portanto, suscitar em outros que disponham desses órgãos, como poetas, artistas e escritores, a capacidade em dar forma espiritual a esse impulso; essa é, de fato, sua produtividade. Faz parte desta profissão tanto o espírito de renúncia quanto a capacidade de ação. Sua atividade consiste em afirmar essa vontade, na medida em que permita a objetivação do talento artístico.

Folha- A história da Suhrkamp identifica-se à própria teoria crítica frankfurtiana da sociedade. O sr. poderia falar dessa imbricação?


Unseld - Peter Suhrkamp não era um homem ligado à teoria. Ele nunca negou suas origens camponesas e disso derivava também um pouco daquela sua desconfiança. O próprio Adorno mencionou uma vez como seu verdadeiro pano de fundo o elemento telúrico como nostalgia. Mas Peter Suhrkamp não era um leitor de Adorno, cujos conselhos, não obstante, prezava bastante, não menos que sua amizade com Gerschom Scholem. Ambos tiveram sobre ele uma enorme influência insistindo no valor da obra de Walter Benjamin, depois de sua pré-história aventurosa.
E foi Peter Suhrkamp quem realizou essa idéia movido por uma enorme obstinação e tenacidade, mesmo quando a realização dessa idéia ultrapassava as forças materiais da editora, mesmo quando esse empreendimento colocava até mesmo em xeque a própria viabilidade da editora, assim como depois a retradução integral de Marcel Proust. Mas Walter Benjamim era simplesmente o maior. "Infância Berlinense", que é uma das mais belas autobiografias do século 20 e igualmente um texto chave do moderno, foi o primeiro a ser publicado.
No outono de 1955, são lançados então os dois volumes dos "Escritos", organizados por Adorno e Gretel com a colaboração de Friedrich Podsy. Uma verdadeira sensação. Vinte anos depois, Benjamim já figurava entre os maiores teóricos do moderno. Hannah Arendt afirmou uma vez: "A amizade entre Benjamim e Brecht é única, porque nela se encontram o mais importante lírico alemão deste século com seu mais importante crítico".
Foi o crítico George Steiner, em 1973, no suplemento literário do "The New York Times", quem cunhou a expressão "cultura Suhrkamp" para definir um fenômeno cultural. A expressão referia-se originalmente a uma camada intelectual e literária dominante na Alemanha. Nas palavras de Steiner, a Suhrkamp, em razão de sua visão cultural e sensibilidade editorial, acabou criando um padrão para uma cultura filosófica moderna. Nesse sentido, na medida em que a Suhrkamp trazia novas vozes filosóficas a um público cada vez maior, preenchendo as prateleiras de cada estante com os intelectuais judeus que o nazismo quis banir, ela prestava um inestimável serviço à cultura filosófica contemporânea e à sua internacionalização. Habermas e eu nos conhecemos no início dos 60 na Frankfurt da Escola de Frankfurt de então. Criamos juntos a coleção Teoria. Ele se tornou meu conselheiro e amigo e, dessa amizade, um conselheiro mais íntimo. Não descobrimos apenas clássicos, mas novos autores.

Folha - Um das fórmulas deste sucesso foi o trabalho de equipe junto a seus conselheiros. Quais foram os mais marcantes para o sr.?

Unseld - Desde o começo, estive sempre rodeado de conselheiros com grandes qualidades editoriais. Martin Walser e Hans Magnus Enzensberger, que se tornaram depois colaboradores extremamente dinâmicos. Walser, como chefe da seção de teatro, e Enzensberger, como "lektor" (conselheiro). Um pouco depois, meu amigo Uwe Johnson também participaria desse círculo como meu conselheiro íntimo. Juntos com esses três autores, a Suhrkamp cresceu. Todos os finais de tarde, discutíamos os acontecimentos do dia na Alemanha e no mundo.

Folha - A Suhrkamp descobriria mais tarde o continente latino-americano e protagonizaria o "boom" desses escritores no mercado europeu nos 80.

Unseld - A literatura latino-americana tem um lugar muito especial em nosso coração. O nosso catálogo reúne 250 títulos. Além da incrível força dinâmica e da beleza dessa literatura, há dois motivos especiais para essa afinidade. De um lado, meu amigo Michi Strausfeld, que é para nós o ouvido e as antenas do continente e no domínio hispânico, e, por outro, tive uma experiência chave que me aproximou dela. No começo de 1970, Michi Strausfeld apresentou-me ao autor cubano Alejo Carpentier. Nós o visitamos na embaixada cubana em Paris, onde ele era conselheiro cultural. Aquele homem enorme, um homem de Estado, começou logo com um discurso: "Você se chama Siegfried. Por que vocês alemães não prezam mais suas origens literárias como a saga de Siegfried nos "Nibelungos'". Passada a primeira irritação, apontei para o abuso que os nazistas fizeram dessa cultura de heróis e fiquei ainda mais irritado quando ele me afirmou: "O que esse patife do Hitler tinha a ver com a grandeza dos "Nibelungos'". Então o autor cubano citou em alemão os primeiros versos da epopéia em alemão medieval. Encontrei-me muitas vezes com autores e intelectuais de grande sensibilidade política. Penso em Dámaso Alonso, Juan Carlos Onetti, para não silenciar sobre o incomparável Octavio Paz, Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa.

Folha - Como será a "cultura Suhrkamp" na Internet?

Unseld - Mesmo que o computador ainda venha a colonizar nossa imaginação vital com o fascínio de sua inteligência mecânica nesses abismos do ciberespaço, nós continuaremos, enquanto espécie, a nos definir somente pelo conceito de liberdade e transcendência. Não permitiremos que a genética ou mesmo modelos de horror de uma inteligência artificial dissolvam a definição de homem e humanismo.

Folha - Qual será o futuro da Suhrkamp diante de conglomerados como a Bertelsmann?

Unseld - Preservaremos nossa linha editorial, devemos e permaneceremos sempre independentes e não nos dissolveremos em conglomerados. Vou destinar minha cota na sociedade, bem como o montante que ainda devo receber, a uma fundação com meu nome, de cujo conselho participarão autores e livreiros que zelem pela "cultura Suhrkamp" e permaneçam fiel a seus princípios.

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