quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Um Olhar Ousado sobre a Estética Vanguardista Caderno de Cultura - “O Estado de Sao Paulo” 10.10.1999


Caderno de Cultura - “O Estado de Sao Paulo”
Entrevista com Peter Bürger 10.10.1999

O professor alemão Peter Buerger, autor do polêmico "Teoria da Vanguarda", publicado em 1974, que será lançado no Brasil no ano que vem pela Ática, dá entrevista exclusiva ao "Estado"

José Galisi Filho
especial para o “Estado de Sao Paulo”
de Bremen, Alemanha

Quando Peter Bürger (1936, Hamburg) começou sua carreira no início dos anos sessenta, a crítica literária alemã ainda estava totalmente sob o ditado da “interpretação imanente”, uma variedade de New Criticism. Neste contexto, Bürger procurava uma aproximação mais racional com a literatura nos formalistas russos e na estilística de Leo Spitzer, tentando estabelecer um vínculo mais próximo entre a análise textual e uma abordagem sociológica do fato literário.
Depois do movimento estudantil em 1968, escreveu um livro sobre o surrealismo francês, que preparava terreno para seu trabalho mais difundido, “Teoria da Vanguarda” (1974), traduzido desde então em diversas línguas. De maneira esquemática, seu livro mais conhecido desenvolve duas teses: 1o.) na sociedade burguesa, a literatura funciona como uma instituição autônoma (“Instituição Arte”); 2) as vanguardas históricas podem ser interpretadas como uma tentativa de “destruir”, ou tomar de assalto esta instituição, fechada no esteticismo “fin de siècle”, e integrar seu potencial para revolucionar a vida. Este trabalho lançou os fundamentos para dois diferentes tipos de aproximação. Por um lado, um novo tipo de sociologia literária. Desenvolvendo a categoria de Instituição Literária, Peter Bürger, Christa Bürger em cooperação com seus colegas Peter Uwe Hohendal e discípulos como Hans Sanders publicaram uma série de estudos dedicados à literatura francesa do século XVII ao século XX (“The Institutions of Art”). Por outro, uma nova perspectiva sobre a teoria estética depois do colapso das esperanças revolucionárias metaforizadas nas vanguardas históricas. Em “Critica da Estética Idealista” (“Kritik der idealistischen Ästhetik”, 1983), Bürger argumenta com Habermas que as categorias da estética idealista (obra, gênio, aparência, contemplação) devem ser criticadas na separação de seu substrato racional de elementos irracionais. Mas num trabalho mais recente, “Prosa do Moderno” (“Prosa der Moderne”, 1992), Bürger retornará para uma posicionamento mais próximo de Adorno, buscando preservar o conteúdo de verdade de obras singulares da literatura contemporânea do romantismo alemão até Joyce e Beckett. Neste livro e na coletânea de ensaios escrita em parceria com Christa Bürger, “The Decline of Modernism”,1992, responde a teorias de extração pós-modernistas, argumentando que o conceito adorniano restritivo do Moderno deveria ser alargado e que um vínculo mais estreito deveria ser estabelecido entre a análise textual e a reflexão teórica. Antes de tudo, Bürger parece considerar a literatura contemporânea como uma forma de conhecimento sobre seu próprio ser e sua dificuldade de inserção no mundo.
Nos anos noventa, escreveria dois livros muito pessoais: “O Pensamento do Senhor” (“Das Denken des Herrn”, 1992), uma coletânea de ensaios sobre Bataille, Blanchot, Foucault, Derrida e Heidegger, sublinhando o pensamento anti-hegeliano nestes autores, o qual, não obstante, poderia ser interpretado em termos hegelianos como uma tentativa de retomar a figura do senhor na dialética de senhor e escravo. Já em as “Lágrimas de Odisseu” (“Die Tränen des Odysseus”, 1993), Bürger retoma a discussão teórica de Lacan, Bataille e Adorno num um viés ficional”: um grupo de intelectuais de diferentes procedências tenta finalmente chegar a um consenso com a derrocada do socialismo e da crise em que mergulhou pensamento de esquerda.
Seu último livro “O Desaparecimento do Sujeito” (“Das Verschwinden des Subjekts”, 1998), mais uma vez objeto de polêmica na imprensa diária, retoma o debate com o pós-modernismo francês, argumentando que o desaparecimento do sujeito é um dos movimentos desde o “ennui” de Pascal no século XVII.

Peter Bürger, é Professor Titular no Departamento de Romanística na Universidade de Bremen e encerrou sua carreira acadêmica neste semestre de inverno de 1998 num curso denominado “Genealogia do Moderno: de “Nietzsche a Foucault”- que acompanhei -, fornecendo-lhe o material que foi objeto desta entrevista concedida com exclusividade ao Estado de Sao Paulo. Bürger discorre sobre a recepção de seu livro mais polêmico, que está sendo lançado pela Editora Ática de São Paulo, a antropofagia de Oswald de Andrade, “as idéias fora do Lugar”, de Roberto Schwarz, e a paradoxal naturalidade das vanguardas históricas no contexto brasileiro, uma das teses mais fecundas de Antônio Cândido, que para ele, se estiver certa, faz simplesmente cair por terra a oposição entre o Realismo/Naturalismo europeu e sua contra-figura no ciclo do Surrealismo.

Seu livro “Teoria da Vanguarda” apareceu na Alemanha em 1974 e desencadeou desde então uma polêmica acalorada, que se condensou depois em um volume. Também a tradução norte-americana, que apareceu dez anos depois, foi particularmente discutida na área de Estética. Podemos até mesmo dizer que esta polêmica continua ainda hoje: [No católogo da “Documenta X”, em Kassel, o crítico de arte norte-americano Benjamin Buchloh retoma suas teses; Hal Foster dedica em “The Return fo the Real” (1996) um capítulo inteiro à “Teoria da Vanguarda”. Heinrich Klotz em seu livro “A Arte no Século 20” parte igualmente de suas teses.] O Sr. poderia resumir o contexto histórico no qual este livro surgiu, pois entre nós encontrará uma realidade social e cultural inteiramente distinta.

Peter Bürger - Quando comecei a conceber o livro no início dos anos setenta, as esperanças de uma transformação social radical na Europa, que o Maio francês de 1968 e o Movimento Estudantil haviam despertado nas novas gerações, haviam acabado de se evaporar no horizonte. O movimento estudantil havia se cindido em grupos marxistas dogmáticos, refratários ao desenvolvimento de uma ciência crítica, da mesma forma como os restos de um conceito burguês de formação cultural, que propagava a intemporalidade dos valores estéticos. Desta constelação derivava a seguinte tarefa: contra uma concepção idealista da essência da arte, seria preciso insistir não apenas na historicidade das obras de arte, mas também na historicidade de seu próprio conceito. Contra um sociologismo estético vulgar, que se limitava a derivar obras de arte de um contexto social de base imediato, era preciso, por um lado, retornar metodologicamente aos “Grundisse” de Marx e, por outro, insistir no desenvolvimento lógico imanente do sistema social da arte.

O Sr. teria uma explicação por que justamente este livro encontrou uma disseminação tão ampla e foi traduzido em tantas línguas? O Sr. me relatava que uma tradução chinesa também estava no prelo?

Peter Bürger - Evidentemente também textos teóricos conseguem desenvolver novos potenciais de significação em contextos modificados. No caso de “Teoria da Vanguarda”, isto poderia decorrer possivelmente da relação tensionada entre duas diferentes tradições da estética moderna, que se definem pelo menos claramente no campo teórico como antagônicas: de um lado o impulso vanguardista de superação da autonomia estética em práxis vital, que Walter Benjamin incorpora em suas teses sobre a arte; por outro a autonomia estética centrada em obras singulares do Moderno, cujo mais significativo representante é Adorno.

Enquanto Benjamin em seu ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (ainda que de maneira nem sempre fácil de se acompanhar) persegue o projeto de uma obra pós-aurática, ao qual se vinculam especialmente motivos brechtianos e surrealistas, Adorno, cuja crítica de juventude às fantasmagorias da música de Wagner apontava um paralelo claro com o projeto de Benjamin, não deixa qualquer dúvida, depois do retorno do exílio americano, de que o status de autonomia é a condição de possibilidade da arte na sociedade burguesa tardia. As categorias da estética idealista que Benjamim deseja revogar com um golpe de força, são novamente reabilitadas, não obstante o impulso vanguardista de superação sobreviva na categoria de ruptura. A despeito de muitos motivos comuns, dificilmente existiria oposição mais inconciliável que as teses de Benjamin sobre a obra de arte (em suas duas versões) e a “Teoria Estética” de Adorno.
A “Teoria da Vanguarda”, parece-me, busca fazer desta oposição um objeto de uma construção teórica. O livro reflete a tentativa vanguardista de introdução da arte numa práxis vital, não no sentido de que daí derive um programa estético (como Benjamin havia empreendido), mas que ele procura compreender o fracasso deste projeto.

Justamente sua tese polêmica sobre o fracasso das vanguardas históricas é violentamente refutada de todos os lados. Como o Sr compreende este “fracasso”?

Peter Bürger - Tudo depende de se pensar um conceito complexo e contraditório de fracasso, que conserve as experiências elaboradas neste processo de fracasso, bem como a consciência, que o projeto de introdução de uma estética no cotidiano - como ponto de projeção imaginário-, ainda preserve seu sentido, mesmo quando a estetização universal do cotidiano pareça já há muito ter inviabilizado este projeto.

No fracasso do ataque das vanguardas históricas à Instituição Arte, delimitam-se três momentos. 1o. O projeto histórico necessário de uma superação da arte em práxis vital que decorre do desenvolvimento lógico da arte (o problema do esteticismo), como a dinâmica de desenvolvimento da sociedade burguesa (a crise desta sociedade na Primeira Guerra Mundial); 2o. A impossibilidade de realizar este projeto sob certas condições sociais. 3o. Finalmente, o poder de resistência da própria Instituição, cuja superação histórica parece então estar na ordem do dia. O fracasso do projeto vanguardista não significaria, não obstante, um retorno às condições de partida; antes, pelo contrário, ele determinará uma mudança na Instituição Arte, que poderia ser condensado nesta fórmula: a Instituição Arte permanece, porém abalada. As categorias da estética idealista não podem mais ser simplesmente revalidadas, mas permanecem como depotenciadas.

No Brasil até o momento é conhecido sobretudo seu ensaio “O Declínio da Era Moderna” (Novos Estudos Cebrap, no. 20, março de1988). O Sr. trata da questão do material estético em Adorno, que parte de um dado ponto histórico no qual existe apenas um “único” material que esteja na dianteira de seu tempo. O Sr. demonstra em que dificuldades Adorno se enreda com o posicionamento do neoclassicismo de Stravinsky, rubricado na “Minima Moralia” como estética e politicamente reacionário, enquanto na “Filosofia da Nova Música” os mesmos procedimentos são descritos “como o jogo soberano do artista com formas pretéritas” e desta forma, mais próximos da colagem surrealista. Não teríamos deduzir então que a montagem, ou seja, “o” princípio vanguardista da arte, permaneça extraterritorial na estética adorniana? Não se esconderia nesta atitude um medo do potencial regressivo que se presume no princípio da montagem?

Peter Bürger - Deveríamos aqui estabelecer uma distinção. Na “Teoria Estética” de Adorno existe uma primorosa análise da montagem, à qual deve muito meu capítulo na “Teoria da Vanguarda”. Mas você tem razão A montagem é completamente suspeita para Adorno. E de fato porque o princípio do trabalho imanente de todas as partes da obra de arte é abandonado. A realidade crua irrompe assim na obra de arte. Naturalmente, não apenas o princípio da montagem, mas também o projeto vanguardista de introdução da arte em práxis vital é suspeito para Adorno. O veredicto: “o tempo da arte passou, trata-se de realizar seu conteúdo de verdade, que se identificou inteiramente com as condições sociais; o veredicto é totalitário, afirma-se na “Teoria Estética”.

Em oposição a Adorno o Sr. justamente em “Teoria da Vanguarda” falava de uma livre “disponibilidade de diferentes estados de materiais”. Não se abre com isso a porta ao ecletismo?

Peter Bürger - Eu não anunciei um “vale tudo”, muito pelo contrário. Procurei descrever a situação na qual se encontra o artista depois do fim das vanguardas históricas. Há diferentes materiais entre os quais o artista possa escolher. Mas esta disponibilidade não facilita de forma alguma a produção artística, muito pelo contrário, ela torna na verdade quase impossível criar uma obra de arte necessária e conseqüente de acordo com a lógica do próprio material. Um autor que reflete bem esta situação é o pintor Gehard Richter que pinta alternadamente imagens fotorealistas e imagens abstratas. Dessa forma torna-se reconhecível a situação problemática do artista em nosso presente: forjar um trabalho necessário. Isto ocorre a Richter no instante em que ele emprega sua técnica fotorealista para os mortos de Stammheim (em outubro de 1977 os líderes integrantes da primeira geração do RAF, Rote, Armee Fraktion, Fração do Exército Vermelho, foram encontrados mortos em suas celas na prisão Stammheim em Stuttgart). Richter pinta este momento negro na história da República Federal com uma técnica que dilui os contornos da imagens, que aqui se torna muito significativa do ponto de vista semântico. A forma converte-se em contéudo.

No final de seu ensaio, o Sr. menciona a “Estética da Resistência” de Peter Weiss como um dos “relevantes fenômenos da produção estética contemporânea”, com isto aponta para o emprego de técnicas realistas. Teria Peter Weiss formulado em seu romance uma “apropriação da cultura dos especialistas a partir do ponto de vista do mundo da vida” (Habermas). O Sr. vê aí uma perspectiva possível para a estética do presente?

Peter Bürger - Peter Weiss não escreveu um tratado, mas um romance. Ele descreve como jovens trabalhadores em luta contra o fascismo se apropriam da alta cultura. Eles assim procedem, entre outros motivos, para que possam usar em seu próprio cotidiano obras como o altar de Permagamon em Berlim, o “Castelo” de Kafka e “Guernica” de Picasso. Os protagonistas do romance retiram das obras de arte a força de resistência contra um inimigo onipresente. Nesta apropriação, vislumbra-se inteiramente o programa e a exigência vanguardista de união entre vida e arte. O que também Peter Weiss nos diz é que as obras da alta cultura não estão encerradas na Instiuição Arte como no “Castelo” de Kafka. Elas podem ser libertadas deste sortilégio, quando se tem coragem de se referir à própria vida. Adorno teria certamente reclamado uma falta de mediação. Eu me pergunto apenas se Weiss, com sua idéia utópica de recepção, não assumiu uma idealização que encobre o fato de que os excluídos estão excluídos sem remissão.)

Gostaria de colocar agora algumas questões que dizem respeito à relação entre a vanguarda européia com nossa cultura. O crítico literário brasileiro Antônio Cândido chamou a atenção para o fato de que as terríveis ousadias de um Picasso, um Brancussi, um Max Jacob, um Trista Tzara eram, no fundo, mais conseqüentes com nossa herança cultural que com a Europa. Aquilo que na Europa representaria uma ruptura com a tradição, poderia aqui ser um impulso para se refletir sobre o mesmo. O modernismo brasileiro faz do elemento primitivo fonte de beleza na valoração positiva da miscigenação de um país de negros e mulatos. Um expressão provocativa desta avaliação radical é o “Manifesto Antropofágico” de 1928. O Sr. conhece o texto. Como o Sr. avaliaria esta metáfora fundamentalista de nossa ortodoxia modernista?

Peter Bürger - Pelo menos entre nós o adjetivo fundamentalista tem uma conotação pejorativa. Eu não o empregaria para Oswald de Andrade. O mesmo vale para o termo ortodoxia. O “Manifesto Antropofágico” pode ser colocado ao lado dos grandes manifestos da vanguarda européia. Assim como nos manifestos dadaístas, trata-se no texto de Oswald de uma expressão de uma revolta radical contra a colonização que não terminou com a Independência política, mas que prosseguiu como uma colonização intelectual: “Tupi or not Tupi, that is the question”. A isto Oswald opõe o resto de uma cultura caríbica “uma consciência participante, uma rítmica religiosa” e uma “mentalidade pré-lógica”, bem como o sincretismo entre o catolicismo e outras culturas: “Fizemos Cristo nascer na Bahia”. Em outra passagem: “Contra o índio de tocheiro. O Índio afilhado de Maria”. Se aqui se trata de uma autocontradição provocativa, como no Dadaísmo, ou o que me parece como uma contradição, para interpretar de maneira distinta, para decidir, enfim, faltam-me elementos de contexto. [A propósito, Alfred Lorenz, um do psicanalistas mais próximos à Escola de Frankfurt em sua crítica ao Concílio Vaticano II (“O Concílio dos Bibliotecários”, 1981), descreveu os rituais e o simbolismo da Igreja latino-americana como “o espaço limitado de expressão dos oprimidos”, para a expressão de suas aspirações e formas de vida. Esta observação, que também é uma crítica a um conceito muito estreito de Esclarecimento, convenceu-me.] Mas para voltar à sua pergunta sobre a avaliação do “Manifesto Antropofágico”, talvez se pudesse dizer que “Cristo” ocupa o mesmo lugar atribuído à criança no “Primeiro Manifesto do Surrealismo”. Em ambos os textos, investe-se contra a modernização ocidental e a racionalização referida a uma Origem única, à qual não existe “nenhum” caminho de volta. O forte destes textos consistiria no reconhecimento de sua próprias aporias subjacentes.

Quando deslocamos o princípio da colagem surrealista dos centros europeus para a periferia, observa-se algo muito singular: a proximidade de elementos incompatíveis, que no contexto europeu ainda desempenha um efeito disrruptivo, perde o seu caráter de choque por duas razões: 1o. Pois esta incompatibilidade é um dado estrutural da autoconsciência das elites periféricas, cujas idéias e teorias simplesmente parecem deslocadas nesta realidade 2o. Porque a própria paisagem destes países revela-se já como uma colagem surrealista na proximidade paradoxal ente o velho e o novo produzida por uma modernização recuperadora. A conseqüência é que o princípio da representação surrealista torna-se ironicamente realista. O que o Sr deduziria disto?

Peter Bürger - Pois bem, o que se segue disto não consigo ainda vislumbrar. Poderia no momento apenas acrescentar que a estética surrealista (se for posível empregar esta abreviatura problemática, pois, em sentido estrito, não existe em absoluto algo assim) desenvolveu-se em oposição frontal à tradição originária do Realismo. Breton polemizava no “Primeiro Manifesto do Surrealismo” contra o romance naturalista, pois neste as descrições apenas reproduzem clichês (a propósito, uma observação bastante injusta, quando se pensa nos momentos surrealistas das descrições de Zola). De maneira implícita, Breton estabelece em oposição um conceito enfático de experiência. Se essa tese que você menciona estiver certa, esta oposição cai por terra nas culturas da América Latina. Os procedimentos surrealistas seriam igualmente realistas então. Acho que isto pode ser observado na literatura latino-americana. Mas isso você sabe muito melhor do que eu.)

O Sr. mencionou a colonização intelectual da América Latina. De fato, as idéias que tomamos de empréstimo da Europa no século XIX desempenharam um papel determinante na formação cultural do país. A inautenticidade já referida que dái se originou tornou-se um lugar-comum da crítica cultural brasileira. De um lado, a elite intelectual brasileira via-se confrontada com teorias e modelos que não eram originados no país cujos problemas mostravam a todo instante sua inadequação. Por outro lado, não menos problemático é o papel desempenhado pelo nacionalismo tanto de direita quanto de esquerda que propagava a renúncia ao elemento estranho da cultura internacional. O critico literário Roberto Schwarz apontou claramente este dilema estrutural em sua coletânea de ensaios (“Misplaced Ideas”, tradução de John Gledson). Como o Sr. avaliaria as teses de Roberto Schwarz?

Peter Bürger - Para poder avaliar um ensaio como “O Nacional por Subtração”, precisaria ter o conhecimento dos dados culturais, sociais e políticos do Brasil que me faltam. Posso, não obstante, opinar “como” Roberto Schwarz toma em perspectiva os problemas de seu país. O ensaio me agradou extremamente, pois ele indica um movimento do pensamento. Roberto Schwarz passa em revista as diferentes propostas para a supressão de uma vida cultural inautêntica e artificial, em suas tentativas de superar a miséria imitativa cultural, pondera as diferentes argumentações ao longo da história e aponta para seus respectivos déficits. Sobre o purismo das esquerdas como para os nacionalistas de direita, como você acabou mencionar: através da depuração do elemento não-autóctone deveria emergir uma cultura nacional. “O resíduo seria a essência do Brasil”. Mas não menos problemática, revela-se a variante pós-moderna local, apontada por Schwarz, que, imbricando-se aos sucessores de Derrida, acreditaria ter resolvido o problema desconstruindo as oposições entre Centro e Periferia, Original e Cópia. Dessa forma, se fortaleceria a autoconsciência dos intelectuais dos países subdesenvolvidos, que agora poderiam se sentir no mesmo nível que seus colegas das Metrópoles. O que até agora era cópia seria reconhecido então como desempenho criativo. Mas os fatores genéticos do subdesenvolvimento não são vencidos com este jogo verbal desconstrutivista. Roberto Schwarz enxerga na história do Brasil a criação de um Estado Nacional com base no trabalho escravo. Nestas condições, não poderia se desenvolver uma cultura nacional, que fosse a cultura de “toda” a nação: “o dolorido de uma civilização imitada não é produzido pela imitação (...) mas pela estrutura social do país”- Ora, também na Alemanha não existe nenhuma cultura nacional, que fosse a cultura de todos. A alta cultura foi desde a época de seu surgimento no período clássico-romântico uma cultura da burguesia. A participação nesta esfera estava ligada às condições de uma formação que somente os pertencentes à burguesia poderiam adquirir. A exclusão dos trabalhadores da alta cultura foi descrita com toda força por Adorno e Horkheimer na remissão ao episódio das serias na “Dialética do Esclarecimento”. Apenas Odisseu escuta o canto das sereias atado ao mastro, enquanto os demais marinheiros devem remar com a sua força física. Atualmente, não é mais preciso tapar os ouvidos dos trabalhadores com cera, pois diante deles resplandece o mundo das mercadorias, que não desperta mais qualquer nostalgia de um inteiramente Outro. Nos países avançados, aquilo que já foi uma vez a cultura é apenas mais um setor econômico entre outros. Foram-se aos bons tempos em que a sociedade burguesa ainda precisava da cultura para sua legitimação.

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José Galisi Filho é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal da União e doutorando em Germanistica na Universidade de Hannover, Alemanha.

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