sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Ocidente Brasileiro - Entrevista com o Sociólogo Ulrich Beck (Mais!)

São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999


Funcionária limpa réplica gigante de teclado de computador em feira na Alemanha

Para o sociólogo Ulrich Beck, a brasilização ou feminilização do trabalho é o futuro do Ocidente na atual Sociedade Global de Risco
Sociedade de risco


JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha, em Munique

"O futuro da Sociedade do Trabalho já pode ser observado no Brasil. A indesejável consequência da utopia neoliberal do livre mercado é a "brasilização" do Ocidente", afirma o sociólogo alemão Ulrich Beck, 55, na abertura de seu último livro, "O Admirável Mundo Novo do Trabalho". Beck é chefe do Instituto de Sociologia da Universidade de Munique e professor titular na London School of Economics, dirigida por Anthony Giddens. O volume, publicado na Alemanha ("Schöne neue Arbeistwelt", Campus, 36 marcos), lança uma plataforma conceitual para políticas de combate ao desemprego em massa na Europa.
A tese da "brasilização do Ocidente" é o fio condutor de uma análise sobre o fim da própria sociedade do trabalho e do pleno emprego, apontando para uma ruptura no interior do processo de modernização. A metáfora de Beck não se aplica diretamente ao contexto brasileiro, mas procura repensar a identidade européia dilacerada entre limpeza étnica, fundamentalismos e desemprego explosivo, que não se consegue mais administrar politicamente.
Beck aponta um dado alarmante: em dez anos ou menos, apenas um entre dois trabalhadores hoje ocupados na Alemanha terá uma vaga durável assegurada, e o outro trabalhará em "condições brasileiras", ou seja, à margem de qualquer sistema previdenciário, como "nômade" ou fantasma do mundo do trabalho.
As crescentes flexibilização e erosão do trabalho regulamentar são também compreendidas por Beck como uma "feminilização", termo sinônimo de brasilização.
"Estamos convivendo com dois modelos de pleno emprego, os quais devem ser distinguidos com muito cuidado", explica Beck. "Um é o do Estado de Bem-Estar Social, modelo que previa, além do pleno emprego, seguridade social, plano de carreira para a classe média e estabilidade no trabalho. O outro modelo é o que chamamos de emprego frágil ou flexível, que implica carga horária variável, atividades de meio turno e contratos temporários, nos quais as pessoas desempenham vários tipos de trabalho ao mesmo tempo. As mulheres sempre trabalharam desse modo ao longo da história, e assim trabalha a maioria das pessoas nos países "subdesenvolvidos". É o que nós, ocidentais, poderíamos chamar de feminilização ou brasilização do trabalho. Tal como aconteceu com a família, a exceção está se tornando regra. Por que aceitamos a pluralização da família, mas não a do trabalho?"
A análise desenvolvida em "O Admirável Mundo Novo do Trabalho" pressupõe o que se convencionou chamar de paradigma da Modernização Reflexiva e o conceito de Sociedade de Risco, categorias criadas por Beck e Giddens para designar a internacionalização crescente dos riscos e interdependências do novo sistema mundial. Se o Primeiro Moderno estava centrado no Estado nacional regulador, no desenvolvimento econômico, na linearidade dos conflitos de classe e na burocratização, o Segundo Moderno nasce sob o signo da erosão da sociedade do trabalho e do pleno emprego.
O que Beck afirma é que o Brasil é o modelo por excelência da Sociedade de Risco, uma imagem que permite uma aproximação mais precisa com uma realidade mundial em rápida transformação, o que não é mais possível dentro da "gaiola conceitual" do pensamento europeu, ainda impregnado pela linearidade do Primeiro Moderno.
Uma ressalva importante, enfatizada por Beck: o "teorema da brasilização" não deve servir a uma nova forma, invertida, de "universalismo", não menos ilusório, e restabelecer uma tendência geral de desenvolvimento da modernização, dessa vez apoiado na informalização do trabalho. Segundo ele, isso seria um equívoco gritante, pois os contextos da Europa e da América Latina determinam sentidos completamente distintos para o trabalho informal.

especial para a Folha, em Munique

Leia a seguir a entrevista de Ulrich Beck à Folha, realizada no Instituto de Sociologia da Universidade de Munique.


Folha - O que o sr. entende por "brasilização" do Ocidente? Por que não dizer "mexicanização" ou "argentinização" do Ocidente?

Ulrich Beck - Por brasilização do Ocidente penso em primeiro lugar numa imagem-chave de uma mudança: de que o Primeiro Mundo, e sobretudo a Europa, não mais determina automaticamente os fins da modernização, mas que, simultânea e paralelamente, países do Segundo Mundo ou países como o Brasil determinariam agora os fins do novo processo de mundialização. Isso se aplica a muitos campos, como o da sociedade do trabalho, conforme a tese que desenvolvi no centro do meu último livro, mas se revela ainda em muitos outros setores. Naquele campo, observamos na Europa e nos EUA uma nova dominância dos setores informais e da economia informal, fenômeno com que o pesado Estado ocidental regulador tem enormes dificuldades de se relacionar. A flexibilização e a pluralização do trabalho contradizem frontalmente a imagem do regime de plena ocupação do trabalho, e, nesse processo, está embutida uma revolução latente para a qual não temos ainda nenhuma resposta apropriada.
Minha proposta, à qual vinculo o conceito de brasilização, é que devemos nos despedir finalmente da enorme arrogância e auto-estima ocidentais e olhar com atenção para o que está acontecendo em outros países. Nesse caso, poderíamos perguntar, como você aponta com razão, por que eu teria escolhido exatamente o Brasil e não o México ou a Argentina. Poderíamos também apontar a Índia ou países de outros continentes para analisar esse mesmo processo.
Há três anos estive no Brasil, e essa experiência foi decisiva para mim. Ainda estou com a impressão de que nenhum outro país no mundo colocou de tal maneira em xeque minha autocompreensão como "cientista social europeu estabelecido", como se essa frágil suposição pudesse nos proteger do novo. A quem quisesse se despedir dessas certezas européias, eu sugeriria ir urgentemente ao Brasil.

Folha - A sua avaliação da brasilização parece ser positiva e coerente com o modelo da Sociedade do Risco. Mas quais são as vantagens de se brasilizar o Ocidente?

Beck - Sim, ela é positiva e pretende indicar outros fenômenos que não pertençam apenas ao campo do trabalho. Por isso o Brasil é paradigmático como nenhum outro país. O que os europeus também podem aprender com o Brasil é a relação com as diferenças étnicas, a necessidade de aceitar e relacionar-se com as essas diferenciações, com as quais, na Alemanha ou em outros países europeus, temos ainda sérias dificuldades e -me corrija se eu estiver idealizando o Brasil- a relação com esta "soberania múltipla", que a Europa não dá mais mostra de administrar, uma identidade européia que não abrangeria mais apenas os Estados nacionais, como a Alemanha e Reino Unido, que ainda pretendem dar prioridade a sua soberania, em vez de redistribuí-la entre os novos Estados europeus.
Ou seja, o Brasil é modelo de muitos aspectos que eu julgo de importância decisiva para a compreensão da Segunda Modernidade, cujos elementos parecem impregnar mais países da assim chamada "modernização recuperadora" do que aqueles que estão no centro do moderno.

Folha - Se o Brasil, como sr. afirma em seu livro, é a "desordem do progresso" ou "o fim de um modelo universal do Moderno" e, portanto, da utopia da sociedade do trabalho, ele seria então paradoxalmente, em sua tese, o futuro do passado e de outros "caminhos do moderno": passado de uma utopia da sociedade do trabalho e futuro do modelo liberal que hoje dá as regras do jogo. Não lhe parece contraditório esse esquema?

Beck - Acho essa figura de um "futuro do passado" muito pertinente. Ela diz respeito a uma tese que formulei sem saber. Temos de tomar cuidado para não cair numa idealização invertida. Formulei essa tese num contexto europeu e ela não fala diretamente do Brasil, mas da Europa, e procura quebrar alguns preconceitos.
Em primeiro lugar, o que acho central é a idéia de que possamos ainda conservar no futuro a política do nosso Estado de Bem-estar Social e a democracia, nessas bases. Considero essa uma das maiores ficções da Nova Esquerda e da política da Terceira Via, tal como ela se revela diferentemente em chefes de governo como Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schröder. Todos os três sabem muito bem, cada um a seu modo, que o pleno emprego, em sentido tradicional, tornou-se uma ficção no capitalismo digitalizado. Mas eles são heróis tão "populistas" de seus partidos políticos, digamos, chegaram ao poder tendo por retaguarda um fundamento tão populista, que lhes é vedado dizer a verdade aos trabalhadores.
Poderíamos dizer de maneira mais incisiva que os políticos -ou a política desses três chefes de Estado- são feitos de um oportunismo com "face humana". Devemos superar a ficção do regime de plena ocupação do trabalho no Ocidente e temos de nos perguntar como a democracia pode ser fundamentada, de maneira renovada, além do pleno emprego, revitalizada nas malhas do cotidiano. Temos de acrescentar que essa questão central, que se coloca na Europa e também em outros lugares -se meu diagnóstico estiver correto-, não teve até agora uma resposta única e linear, nem mesmo no Brasil. Nessa medida, penso a brasilização do Ocidente como uma situação descritiva que opera uma aproximação mais nítida com um novo horizonte desconhecido, em lugar de referir-se a objetos que já foram descritos no passado. Contudo, fique claro, a brasilização é apenas a imagem dessa aproximação e não pode ainda retratar o futuro da democracia e da sociedade do trabalho.
Deixe-me formular a questão a partir de um outro ponto de vista, ou seja, a partir da distinção entre a Primeira e a Segunda Modernidade. O problema da brasilização é a diferença entre a Primeira e a Segunda Modernidade. A Primeira Modernidade era essencialmente organizada, por Estados nacionais, em sociedades "containers" -a idéia de que a sociedade pudesse ser organizada como recipientes do Estado, com esferas que pudessem ser dispostas em compartimentos estanques.
Em segundo lugar, ela decorria da suposição de uma identidade coletiva de classes ou grupos étnicos a partir de uma cultura homogênea e religiosa, que possibilitava uma organização política compatível. Em terceiro lugar, o que já discutimos, baseava-se na sociedade de pleno emprego, ao menos como idéia-guia. E em quarto lugar, por fim, assentava-se na idéia de uma natureza incessantemente explorável como pressuposto do crescimento econômico contínuo. Contra essa idéia-guia, ou os princípios básicos da Primeira Modernidade, radicalizou-se agora na dinâmica imanente da modernização um curto-circuito nesses quatro processos, que os colocam em xeque sistematicamente e apontam para a sua superação.
Em primeiro lugar, na globalização entendida em sentido econômico, mas também em sentido político e social. Com isso, rompe-se a idéia dos "containers" sociais, cujos domínios agora se interpenetram. Em segundo lugar, a individualização do interior da sociedade torna problemática a idéia de uma identidade coletiva em classes ou etnias que possam ser reduzidas a um denominador comum ou traduzidas politicamente pelos partidos; dessa forma, elas dificilmente ainda encontram validade numa democracia parlamentar.
Daí, e paralelamente a isso, temos uma revolução nos papéis sexuais e nas relações entre homens e mulheres no cotidiano, no campo profissional e na política, numa modificação radical dos papéis tradicionais entre os gêneros. Finalmente, em função da crise ecológica aguda, houve uma ampliação do conceito de natureza, de modo que não se pode mais partir do princípio de que os recursos naturais para a produção estejam disponíveis sem questionamento.
Na verdade, trata-se do contrário: com a destruição global da natureza, desenvolve-se um novo tipo de desafio para a Segunda Modernidade, que eu denominei de a Sociedade de Risco. O problema principal da Segunda Modernidade é que todos os países, de uma maneira ou de outra, encontram-se simultaneamente diante desse desafio. Ou seja, as soluções políticas e econômicas dependem antes de tudo de uma perspectiva da imbricação global desses problemas e dessa simultaneidade.Precisamos quebrar a gaiola conceitual da sociedade de pleno emprego, para a qual a identidade só se constitui do trabalho regulamentar

Folha - O sr. propõe como idéia central o "trabalho civil remunerado com dinheiro civil". O que significa exatamente isso?

Beck - O Brasil desafia a imaginação sociológica como um laboratório único, no qual nossas certezas se desfazem. A metáfora da brasilização busca traduzir esse movimento, esse dinamismo no qual não existe mais um sentido preferencial para o moderno. Certamente as tarefas da Primeira Modernidade ainda são uma pauta necessária para os milhões de excluídos no Brasil, mas a Segunda Modernidade é a simultaneidade do risco global, e os problemas se traduzem nessa escala, como prova a desagregação da sociedade do trabalho e a universalização do desemprego.
O modelo de trabalho civil tenta reconhecer todos os desempenhos criativos que se destinem à comunidade local, mas que se traduz também num espaço transnacional. Ele é apenas uma dentre as muitas instituições que temos de conceber para o futuro, pois trata-se inicialmente de uma experiência, que não se sabe ao certo aonde conduzirá.
A idéia de trabalho civil também é um modelo de aproximação, uma plataforma que leve os homens a reencontrar sua criatividade e a produzir o novo, na escala de suas existências individuais, passo a passo, no seu pequeno círculo, forjando as respostas a esse gigantesco desafio da Segunda Modernidade. O fato é que precisamos, por um lado, romper a gaiola conceitual da sociedade de pleno emprego, ou seja, de que a identidade apenas se constitui da seguridade social e por meio do trabalho regulamentar, e, por outro, refundar a democracia no cotidiano. Em vez de financiar o desemprego, como hoje dita a falta de imaginação burocrática, é preciso fortalecer a sociedade política dos indivíduos.

Folha - Mas, como lhe pergunta o ministro alemão do Trabalho, Walter Riester, seria possível romper o círculo vicioso da fixação nos valores da sociedade do trabalho com um simples apelo?

Beck - Se o ministro do Trabalho recoloca essa questão é porque o trabalho regulamentar é também o meio de controle social, uma forma de controle do Estado sobre o cidadão, pois o moderno legitimou também relações de poder na democracia. A questão que se coloca é como os homens estruturam seu tempo quando esse tempo não pode mais ser preenchido pelo trabalho regulamentado, como essa jurisdição do trabalho pode ser renovada no momento em que a sociedade do trabalho começa a ser superada. Quando se deseja dar o próximo passo para o trabalho civil e romper a prisão da sociedade do trabalho, temos de ver exatamente o que está acontecendo na sociedade. Ao lado do trabalho regulamentado, abre-se um leque de outras atividades. Quando consideramos como os homens ocupam seu tempo, percebemos que o trabalho regulamentado desempenha um papel cada vez menor.

Folha - Para o chanceler alemão Jochska Fischer, seu amigo, a globalização se define como um salto tecnológico que reduz os custos do capital e das transferências financeiras a quase zero, dada a instantaneidade de circulação à velocidade da luz. O valor de capital não se afere mais em marcos ou dólares, mas em bits e bytes. Ora, essa incongruência entre o espaço econômico e o espaço de jurisdição estatal exige de países como o Brasil uma estratégia seletiva de integração no mercado global pela regionalização, pelo Mercosul. Ou, como afirma o presidente Fernando Henrique Cardoso, nesta etapa do capital globalizado a pergunta é "para quem?" no lugar de "para quê?". FHC não espera mais a resposta dos teóricos, mas de uma prática que ele chama de a "mãe de todas as teorias". Como o sr. avalia essa estratégia?

Beck - Comecemos com a perspectiva da globalização e tentarei me colocar na perspectiva do Brasil. Não sei se conseguiria traduzi-la, mas posso tentar. Inicialmente, por meio da globalização econômica, da velocidade espantosa dos fluxos financeiros pelo mundo, os impostos estatais despencam drasticamente, o Estado se desnacionaliza e vê evaporar sua soberania econômica.
Nesse intervalo, as decisões estratégicas que dizem respeito a um país não se processam mais nos gabinetes de governo, mas sim em instâncias anônimas da economia globalizada, não mais de um ponto de vista político, mas de acordo com a lógica abstrata dos interesses desses atores. Não acredito numa estratégia conspiratória de um ou outro conglomerado para subjugar regiões ou países, mas na passagem de uma Primeira para uma Segunda Modernidade -de um Estado nacional e sua soberania econômica para a desarticulação desse Estado e a desterritorialização de sua economia.
Se quiséssemos traduzir a coisa de uma maneira irônica, diríamos que na Primeira Modernidade o Estado, os sindicatos e a economia brincavam de peteca. Então a economia ganhou de presente uma bicicleta e abandonou o território. Assim, Estado e sindicatos têm de chamar a mamãe. Quando o Estado se encontra nessa desorientação, trata-se então de redefinir a política em sentido transnacional, de certa forma, aprender a economia e redefinir a política nesse outro patamar. Isso começa quando os atores políticos, indo além do jogo diplomático habitual, interagem diretamente em rede para estabelecer um espaço de negociação que interfira no Estado nacional.
Venho enfatizando essa idéia na mídia: os partidos políticos devem se tornar atores transnacionais, estabelecendo e trocando diretamente com outros partidos estratégias políticas além desse espaço nacional, como um contrapeso a esses atores econômicos livres no mercado global. Para a Europa, essa idéia é central. Mas isso vale também para a América Latina, o Mercosul e a Ásia.
Não será possível uma sociedade política mundial em que todos os países possam se representar com o mesmo peso, mas, por intermédio da regionalização, esse papel pode ser acentuado como contrapeso político à economia globalizada e aos atores econômicos hegemônicos desse espaço regional.
Ou seja, é preciso criar nesses espaços regionais condições de negociações que coíbam a especulação desenfreada e aumentem a arrecadação de impostos de seus Estados, garantindo um sistema de seguridade comum diante da universalização do risco, e até muitas vezes uma política protecionista para defender seus interesses e fortalecer sua identidade.
Essa é uma resposta política à economia globalizada. Isso não deve ser confundido com a tentativa de desatrelar-se desse mercado global, o que tampouco é possível, mas se trata de desenvolver as próprias forças. Poderíamos falar do Mercosul como uma espécie de "diamante sul-americano" que se desenvolvesse como uma alternativa especial para o mercado mundial, cujas forças regionais de seus inestimáveis recursos humanos e naturais, representadas e fortalecidas politicamente, tornam-se um centro dessa região.
Prezo particularmente seu presidente, pois é o único presidente que conheço que é sociólogo e cujos textos li com muita atenção. Mas ele tem razão, e ao mesmo tempo não tem, quando afirma que se deve esquecer aquilo que ele escreveu. Pois a iniciativa para uma política radical de regionalização não dispensa mais a teoria, ou a "mãe das teorias", muito pelo contrário. Tanto políticos quanto teóricos têm de ter fantasia, imaginação sociológica. Eles precisam de fantasia, e não é na praxis, mas na teoria, que ela se forja.

Folha - Não lhe parece problemático falar de "sociedade civil mundial" quando a Alemanha nem sequer concede a cidadania civil a seus trabalhadores estrangeiros, recusando-lhes um passaporte?


Beck - Estou muito insatisfeito com o fato de que a coalização não tenha mantido o projeto original que a levou ao poder para a questão da dupla cidadania. Para a Alemanha e para a Europa, esse teria sido um passo decisivo para chegarmos a uma sociedade civil mundial. Para a Alemanha, em especial, esse é o reconhecimento da "múltipla soberania". Temo também que na Segunda Modernidade surjam novas confrontações antes amortizadas.
Por um lado, temos sinais de uma importante cosmopolitização da sociedade. Por outro, uma reação violenta das identidades ameaçadas pela aceleração econômica. Numa pequena cidade da Baviera temos mais de 20 línguas em uma escola básica, e o número dos habitantes binacionais aumenta rapidamente. São 10% da população, e esse número tende a ser maior nos próximos anos.
O número de trabalhadores estrangeiros em conglomerados multinacionais também cresce rapidamente. A presença de outras religiões é cada vez mais observável no cotidiano. Por outro lado, observamos que muitos cidadãos de outros repertórios culturais que vivem entre nós também não desejam mais se integrar como antes, do modo como lhes era exigido. Eles desejam preservar sua identidade. Isso vale para muitos binacionais turcos ou alemães de origem grega, bem como para outros grupos. Tudo isso rompe com o paradigma de uma identidade étnica do Estado nacional.
Para voltar à sua pergunta sobre uma mudança de estatuto jurídico para uma sociedade civil mundial, sob a fachada da sociedade atual, processa-se uma contra-reação ao esvaziamento das identidades tradicionais. Temos também os inimigos da sociedade mundial aberta. Nesse processo são revitalizadas identidades étnicas, e antigos ódios raciais ganham um novo significado, grupos forjam para si uma história imaginária e fictícia. Se o futuro estará impregnado por uma crescente cosmopolitização da sociedade, simultaneamente revitalizará novos racismos e nacionalismos.

Folha - O sr. poderia falar um pouco sobre sua parceria intelectual com Anthony Giddens?

Beck - Tony e eu somos grandes amigos, não há ninguém com quem eu tenha me afinado tão bem intelectualmente, num grande intercâmbio nos anos 90. Procuramos desenvolver, de maneira diferenciada, o paradigma da modernização reflexiva ou da Segunda Modernidade. Temos que pensar a renovação da política de maneira radical. E nisso Tony Giddens vem contribuindo bastante como conselheiro de Blair e como diretor da London School of Economics.

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José Galisi Filho é doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes).

QUEM É BECK

Ulrich Beck nasceu em 1944. Estudou sociologia, ciência política e psicologia na Universidade de Munique. Entre seus principais trabalhos estão "A Sociedade do Risco - A Caminho de um Outro Moderno" ("Risikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Moderne", 1986), que se tornou um best seller acadêmico, e "A Descoberta do Político - Por uma Teoria da Modernização Reflexiva" ("Die Erfindung des Politischen - Zu einer Theorie der reflexiver Modernisierung", 1993).
Em parceria com Elisabeth Beck-Gernsheim, escreveu o "O Caos Completamente Normal do Amor" ("Das Ganz Normale Chaos der Liebe", 1990), um conjunto de ensaios sobre o afeto e os conflitos de gênero sexual dentro da Sociedade de Risco, uma ecologia do amor no pós-Guerra Fria. Beck dirige e edita a "Biblioteca da Segunda Modernidade" na editora Suhrkamp, da qual também participa Anthony Giddens.
No Brasil, foi publicado o seu livro "Modernização Reflexiva - Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna", escrito em parceria com Giddens e Scott Lash. Dele, a editora Paz e Terra estará lançando nos próximos meses o ensaio "O Que É Globalização".

O QUE SÃO

Sociedade de Risco - É a contrapartida do fato de a sociedade industrial ter se tornado obsoleta. Os riscos gerados pelo próprio desenvolvimento do capitalismo lançam problemas, como o desemprego estrutural e o controle das armas nucleares e do meio ambiente, que as velhas instituições têm dificuldade de absorver. Nesse ambiente de incertezas, cada vez mais distantes das instituições que davam segurança à sociedade industrial -família, classes sociais etc.-, as pessoas sofrem uma individualização forçada, tendo que tomar decisões cotidianas que implicam risco pessoal. Por outro lado, isso causa o surgimento de uma multiplicidade de opiniões sobre os mais variados assuntos, o que caracteriza a Sociedade de Risco também como uma sociedade autocrítica.
Modernização reflexiva - Trata-se de um processo contínuo, imperceptível, quase autônomo de mudança que afeta as bases da sociedade industrial. Nada mais restou ao capitalismo senão transformar a sociedade industrial, forjada por ele próprio no passado. As pessoas tendem a dar valor às antigas certezas da sociedade industrial, enquanto a realidade não cessa de alterar esses dados. Assim, há momentos em que os indivíduos têm que decidir entre uma convicção do passado, como a idéia de direitos trabalhistas rígidos, e a realidade transformada, como a "flexibilização" do trabalho. Esse confronto bilateral entre as convicções herdadas e as novas formas sociais confere a essa modernização o caráter "reflexivo".

CONDIÇÕES BRASILEIRAS

"Num país semi-industrializado como o Brasil, o número de trabalhadores assalariados com contrato regular de trabalho é apenas uma minoria dos ativos economicamente. A maioria trabalha sob condições extremamente precárias. As pessoas são vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, prestadores de serviço de toda a espécie ou "nômades do trabalho", que se viram de todas as maneiras nas mais variadas formas de atividades ou negócios. Como mostra o desenvolvimento emergente nas assim chamadas sociedades "altamente" desenvolvidas da plena ocupação, a "multiatividade" -até agora uma marca particularmente indicativa do trabalho feminino no Ocidente- não é apenas um "saldo residual" pré-moderno, mas uma variante que se alastra rapidamente nas tardias sociedades do trabalho no Ocidente (...). O desenvolvimento na Alemanha acompanha o desenvolvimento de outras sociedades. Nos anos 60, apenas 1/10 dos ocupados pertencia a este grupo precário. Nos anos 70, já eram 1/5, nos anos 80, 1/4, e nos anos 90, 1/3. Se a velocidade desse processo se mantiver, e muitos dados corroboram essa hipótese, em apenas dez anos só um em cada trabalhador hoje ocupado terá uma vaga durável assegurada, enquanto a outra parte trabalhará em "condições brasileiras"."

SOCIEDADE DE RISCO

O pensador da Terceira Via rejeita a idéia de Beck e diz que não há escapatória à imprevisibilidade política e econômica do mundo atual

Giddens rejeita a brasilização

ROGÉRIO PACHECO JORDÃO
especial para Folha, em Londres

O Ocidente estaria se brasilizando? Para o sociólogo Anthony Giddens, 61, diretor da London School of Economics and Political Science e um dos teóricos da chamada Terceira Via, a resposta é não. Para ele, a expressão "brasilização", usada para designar sociedades que geram desigualdades, tem um sentido pejorativo -e não serve como modelo. "Não acredito que o que está acontecendo nos países ocidentais seja uma mudança de rota na direção de uma situação como a brasileira", diz Giddens, em entrevista à Folha.
Esse talvez seja um dos poucos pontos de discordância entre ele e seu colega alemão Ulrich Beck, sociólogo com quem publicou, em 1994, o livro "Modernização Reflexiva". Ambos dividem conceitos importantes, como o da Sociedade de Risco, e idéias como sociedade civil mundial e democracia transnacional. Idéias essas que, para Giddens, constituem algumas chaves de entrada para uma nova forma de fazer política dentro de um mundo, como ele gosta de dizer, de transformações. Ou globalizado.
Autor de mais de 30 livros, as atenções de Giddens no momento estão voltadas para o entendimento do fenômeno da globalização. "As mudanças afetam todos os aspectos de nossas vidas. E não importa se você mora em uma favela do Rio ou no bairro de Mayfair, em Londres", diz.
É dentro desse contexto amplo que ele fala da idéia do risco. "Essa noção aparentemente simples desvenda algumas das características mais básicas do mundo em que vivemos atualmente", disse recentemente em uma palestra em Hong Kong. Ele explica que a palavra "risco" pode ser originária do português ou do espanhol no século 16 ou 17, ligada à aventura das navegações. Giddens trabalha com a idéia de "riscos produzidos" ("manufactured risks"). O que distingue o risco existente na sociedade globalizada dos riscos existentes no passado é que, agora, não temos antecedentes históricos que nos digam o que fazer diante deles. São os riscos que advêm, por exemplo, de transformações genéticas ou climáticas, mas também de mudanças na estrutura da família, do casamento.
Globalização, risco, tradição, família e democracia parecem estar no foco do pensamento de Giddens atualmente. A discussão desses conceitos foi tema de uma série de palestras feitas por Giddens entre março e abril deste ano em Londres, Nova Delhi, Hong Kong e Washington.
Como traduzir tudo isso para a política ou como traduzir isso para os governos - inclusive para o de seu amigo Tony Blair, do qual ele não se importa de ser chamado de "guru"- é a tarefa da Terceira Via, segundo ele. "Acho que as pessoas ainda não entenderam que o significado da Terceira Via vai além de ser um caminho alternativo entre a tradicional social democracia e o neoliberalismo. Trata-se na verdade de dar uma resposta a todas essas mudanças", diz.

especial para a Folha, em Londres

Leia a seguir a entrevista do sociólogo Anthony Giddens, feita em seu escritório na London School of Economics, em Londres.


Folha - O sociólogo alemão Ulrich Beck, em seu último livro, usa a expressão "brasilização do Ocidente" como uma imagem da transição para o que ele chama de Segunda Modernidade. Ele enfatiza aspectos da sociedade brasileira, como a informalidade do mundo do trabalho, nessa comparação. O sr. acha que essa é uma imagem pertinente?

Anthony Giddens - Acho que não. Em geral eu concordo com o que Ulrich diz, mas não nesse caso. Essa idéia de "brasilização" relacionada ao Ocidente vem sendo usada há 25 anos. Eu não acho que seja de muita utilidade. Não acredito que o que está acontecendo nos países ocidentais seja uma mudança de rota na direção de uma situação como a brasileira. Não vejo utilidade nessa idéia. Se isso significa que as desigualdades estão aumentando, por exemplo, eu não acho que seja verdade. O Brasil tem um problema estrutural de desigualdade que nenhum país europeu vai atingir.

Folha - Em que sentido a expressão "brasilização" vem sendo usada?

Giddens - Para se referir a sociedades que estão gerando muita desigualdade social e marginalização dos mais pobres, além de uma certa inabilidade para controlar a situação. Em geral é usada em sentido pejorativo. Acho que há muitas coisas interessantes sobre o Brasil. A maioria dos sociólogos europeus e americanos que usa esta expressão o faz em sentido pejorativo, com uma noção de que, de alguma maneira, o Ocidente estaria regredindo para um tipo de sociedade com a qual eles gostariam de evitar se assemelhar. Essa é outra razão para eu não usar essa expressão.

Folha - Beck a usa também como uma imagem relacionada à convivência com a diversidade cultural que existe no Brasil -e que pode servir como exemplo a países europeus como a Alemanha, por exemplo.

Giddens - A Alemanha com certeza precisa mudar seu conceito de cidadania, porque a Alemanha é basicamente uma sociedade de imigrantes que se recusa a aceitar-se como tal. Uma sociedade multicultural que se enxerga como uma sociedade de cultura única. No Brasil, por outro lado, manter a sociedade integrada dentro deste multiculturalismo que marca o país é um grande feito.

Folha - Mas há também uma idéia de que países menos desenvolvidos podem servir de exemplo para nações mais ricas. O sr. acha isso possível?

Giddens - Em princípio pode ser possível. Em um mundo globalizado, muitos dos problemas que afetam os países mais e menos desenvolvidos são os mesmos. Todos precisamos de um mercado global mais estável. Todos precisamos de instituições que nos dêem proteção. A questão de pobres e ricos não é uma questão que você simplesmente pode esquecer, mesmo se você vive em um país próspero. Na maioria dos países ricos há pessoas sem-teto, morando nas ruas. Qualquer coisa que aconteça no Brasil no que diz respeito a esse problema pode ser relevante para outros países. No meu livro eu uso o exemplo de desenvolvimento comunitário no Brasil (refere-se a experiências no Ceará analisadas por Judith Tendler no livro "Bom Governo nos Trópicos", Editora Revan). Outros países enfrentam esses problemas. Eu sou favorável à colaboração. Quando você vive em um mundo globalizado, a troca entre o que se produz no meio acadêmico e comunidades políticas, por exemplo, faz parte da solução de problemas.

Folha - Mas como países que não são do chamado Primeiro Mundo entrariam nesta troca?

Giddens - O Brasil não está fora desse tipo de discurso porque não interessa quão rico ou pobre você seja: existe algum tipo de acesso à sociedade de informação. Grupos de intelectuais lêem a mesma literatura. Gostaria de enfatizar que todos nós estamos engajados em um diálogo. Eu acho que isso é uma grande mudança com relação a dez ou 15 anos atrás.

Folha - O sr. disse recentemente numa palestra que a imprevisibilidade do mundo globalizado é estrutural. A crise asiática era imprevisível, assim como ninguém sabe ao certo as consequências da manipulação genética de alimentos, por exemplo. Por que o caráter estrutural?

Giddens - Não seria correto dizer que o mundo hoje é menos previsível do que era antes. A diferença agora é que enfrentamos situações de risco que outras gerações não tiveram que enfrentar. Esses novos riscos foram construídos ou pelo impacto da ciência e tecnologia nas nossas vidas, incluindo nossos corpos, ou por profundas mudanças na estrutura da sociedade. O impacto da globalização cria cenários de risco onde não temos experiências anteriores que nos orientem sobre o que fazer diante deles. Isso vai desde a vida pessoal, como as estruturas do casamento e da família -que estão mudando- , até a economia global e outras incertezas associadas à invasão da ciência e da tecnologia em praticamente todos os aspectos do que fazemos. É isso que quero dizer quando afirmo que a imprevisibilidade é estrutural. No sentido de que ela integra, para o bem ou para o mal, o mundo em que vivemos hoje. Não há escapatória. É estrutural também no sentido de que uma reversão ao passado não é concebível.

Folha - Como devemos lidar com um mundo em que a imprevisibilidade é estrutural?


Giddens - Para conviver com isso temos que encontrar um novo tipo de equilíbrio entre o risco e a segurança. Se você pensar em respostas políticas para esse problema, você precisa pensar em governos ativos, tentando dar segurança para as pessoas. Isso só vai acontecer se houver uma compreensão sofisticada das novas situações de incerteza. Se essa compreensão não existir, você vai tentar se adaptar a elas usando maneiras antigas, mas não vai funcionar.

Folha - Como assim?


Giddens - Um bom exemplo disso na Inglaterra foi o que aconteceu durante o aparecimento da "síndrome da vaca louca". Em situações como essa, o governo sempre quer dizer o que é seguro e o que não é. O governo da época (Thatcher) cometeu o erro de dizer que comer carne era seguro. O governo atual cometeu o erro de dizer que comer comida geneticamente modificada é seguro. Ninguém sabe se é seguro ou não. Se se quer administrar essas situações, é preciso entender o significado dessas situações de risco e do papel da ciência e da tecnologia.

Folha - O sr. está dizendo que é preciso haver controle governamental?

Giddens - Tem que ter. É preciso uma resposta a essas situações. Não podem ser respostas individuais. São necessárias não apenas respostas nacionais, mas globais.

Folha - O sr. relacionaria essa idéia do risco ao "triunfo final" do capitalismo, no sentido de que o risco faz parte da lógica desse sistema?

Giddens - Se eu usar a expressão "triunfo final", estarei cometendo um erro. Tudo o que posso dizer é que no momento ninguém consegue enxergar uma alternativa à sociedade de mercado global. Nesse sentido, risco e capitalismo se relacionam, porque as inovações científicas e tecnológicas são muitas vezes impulsionadas ou por interesses de grandes companhias, ou por interesses de mercado.

Folha - Em seu último livro, o sr. lembra que os 20 países mais ricos do planeta vêm experimentando um avanço constante de prosperidade desde 1980. Por outro lado, 30% da população mundial vive na linha de pobreza. O sr. acha que o risco e a imprevisibilidade afetam da mesma maneira o cidadão em São Paulo e em Londres?

Giddens - Em muitos sentidos, todos enfrentam os novos riscos. É preciso entender que é uma situação totalmente nova e não importa se você mora em uma favela no Rio ou no bairro de Mayfair, em Londres. Mas, quando falamos dos setores empobrecidos do planeta, temos muitas vezes uma situação de duplo risco. Há os novos riscos associados ao mundo globalizado e também os riscos que chamo de antigos -aqueles associados à falta de saneamento, à falta de educação adequada, à falta de atendimento de saúde. O Estado de Bem-Estar Social tende a proteger o cidadão desse segundo tipo de risco.

Folha - A Terceira Via quer superar o Estado de Bem-Estar Social. Mas como isso se daria em países como o Brasil, onde o Estado de Bem-Estar Social nunca funcionou de fato?

Giddens - Há muitos países que não têm um Estado de Bem-Estar Social. Talvez a questão seja construir instituições de bem-estar social. É difícil fazer isso em um país que ainda tem grandes disparidades sociais. O Brasil tem, dependendo da metodologia que você usar, o maior índice de desigualdade do mundo. Por outro lado, as tradicionais estruturas de bem-estar social nos países ocidentais, apesar de terem alcançado muitas coisas, trazem consigo uma série de problemas. Essas estruturas produziram contradições que as levaram a se tornar obsoletas diante das novas incertezas e outras mudanças.
Países que não implementaram sistemas de bem-estar social em um certo sentido podem se aproveitar disso, porque eles não têm que confrontar interesses já cristalizados em países que têm estes sistemas. Portugal, onde eu estive recentemente, pode ser um bom exemplo disso. Os portugueses estão tentando construir um sistema de bem-estar social mais eficaz -e o fato de eles terem tido instituições de bem-estar mais frágeis, em um certo sentido, ajuda. A Alemanha, que tem um sistema de bem-estar social muito sólido, é um país onde as mudanças são muito difíceis. Quem recebe o benefício o trata como um direito natural.

Folha - Voltando à questão da imprevisibilidade e do risco, como o sr. analisa a atual ordem internacional? Teria sido possível imaginar, dois anos atrás, que aviões B-52 estariam bombardeando Belgrado? Quais são as regras dessa nova ordem?

Giddens - A guerra no Kosovo, se é que podemos chamar o que está acontecendo exatamente de uma guerra, teria levado alguns anos atrás a uma guerra mundial ou a um conflito europeu de grandes proporções. O fato de que é muito improvável que isso ocorra agora é uma amostra da transformação da ordem internacional. A princípio, as nações hoje em dia podem trabalhar de maneira mais cooperativa do que no passado. Em um certo sentido, o Kosovo pode ser um teste para isso, apesar das coisas horríveis que estão acontecendo lá. Se os chineses e os russos concordarem em integrar forças internacionais, isso vai ser um passo importante para o fim definitivo da Guerra Fria.
A nova ordem internacional precisa ser entendida dentro de um contexto em que as relações entre os países estão mudando. A natureza da soberania nacional está mudando por conta do impacto das forças globalizantes. A própria estrutura da guerra tende a mudar. O conflito no Kosovo é um conflito entre Estados que estão desintegrando, muito mais do que uma guerra entre Estados-nações. Há novas possibilidades para se forjar novas instituições transnacionais, para enfrentar problemas globais. Eu sou muito favorável a isso. Isso incluiria reformar o papel das Nações Unidas, mas também a elaboração de instrumentos para se administrar com mais eficácia a economia mundial e a inauguração de formas transnacionais de democratização. Essas não são mais utopias em um mundo integrado, em que há técnicas avançadas de comunicação.

Folha - O sr. acredita que essa guerra também traduz interesses hegemônicos dos Estados Unidos? O que conta não é a tecnologia militar americana?

Giddens - Conta e não conta. É possível ver as limitações disso no Kosovo. A força militar dos Estados Unidos não autoriza os EUA a governar a sociedade mundial. A aliança militar dos EUA era muito mais influente durante a Guerra Fria do que é hoje. Eu não sou antiamericano. Acho que se você vai fazer qualquer coisa em uma esfera global, você precisa ter os EUA envolvidos. Portanto é importante ter um governo de centro-esquerda nos EUA. Em parte, eles cometem erros porque o poder das grandes corporações é muito grande. As grandes corporações americanas têm seus interesses. No entanto, sem os americanos você não chega a lugar algum.

Folha - Por quê?


Giddens - Você precisa de uma liderança liberal norte-americana que seja tanto quanto possível direcionada a uma agenda global, digamos, decente. O importante é tentar puxar os americanos para os objetivos a que eu estava me referindo antes (democracia transnacional, instrumentos de administração da economia mundial mais efetivos etc.). O mundo seria bem pior se os governos americanos fizessem aquilo que a direita nos Estados Unidos quer, que é o isolamento.
A direita americana quer abrir mão de qualquer papel de liderança global. De toda forma, é claro que uma liderança liberal norte-americana vem misturada a uma série de interesses materiais e de americanização da cultura mundial. É um quadro confuso. Acho que é importante para a esquerda não ser contra as grandes corporações como se elas fossem as vilãs. Governos já fizeram muito mais mal do que estas grandes corporações -e muitos governos fizeram coisas bem piores que qualquer governo norte-americano.

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Rogério Pacheco Jordão é jornalista e mestrando em política comparada na London School of Economics and Political Science.

QUEM É


Anthony Giddens (1938) - É um dos mais importantes sociólogos da Europa. Dirige a London School of Economics, fundada em 1895, e é amigo pessoal do primeiro-ministro inglês Tony Blair. Nos últimos anos, ficou conhecido internacionalmente ao ser associado às idéias da Terceira Via -alternativa político-institucional distinta da social-democracia tradicional e do neoliberalismo.
Sobre esse assunto, Giddens lançou há pouco tempo "A Terceira Via" (ed. Record). Também estão publicadas no Brasil suas obras "A Transformação da Intimidade", "As Consequências da Modernidade", "Modernização Reflexiva" (ed. Unesp) e "A Constituição da Sociedade" (ed. Martins Fontes), entre outros.

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