quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A Zona dos Sentimentos - Entrevista com o Cineasta Alexander Kluge (Mais!)

São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001



_________________________
O cineasta e ensaísta
Alexander Kluge discute o
pensamento de Theodor
Adorno e Heiner Müller e
fala do livro que
acaba de lançar na Alemanha
___________________________

Os sentimentos, por definição, são anti-realistas, pois os homens constroem sempre uma contra-imagem da realidade, ou seja, contra a superstição de que a realidade seja "realista"; considero a realidade como uma construção sintética de relações de poder da faculdade da imaginação
José Galisi Filho
especial para a Folha

É quase impossível, à primeira vista, distinguir a linha divisória entre o cineasta, o romancista, o teórico e o produtor de televisão Alexander Kluge. Para Jürgen Habermas, ele representa um dos últimos artistas da vanguarda histórica que ainda buscam os "resíduos utópicos" no projeto moderno.
Foi Theodor Adorno (1903-1969) quem convenceu o jovem doutor em direito no fim dos anos 50 de que o cinema poderia ser um caminho mais promissor para sua imaginação dialética. Kluge trabalhou inicialmente como assistente de Fritz Lang (1890-1976) entre 1958 e 59. Em 1960, produziria o documentário "Brutalidade em Pedra, a Eternidade do Ontem", sobre os delírios arquitetônicos de Albert Speer e, em 1962, assinaria o "Manifesto de Oberhausen", que declarava a morte dos cinema "dos pais", inaugurando na então Alemanha Ocidental o cinema de autor, ainda sob a dominância da nouvelle vague de Godard.
Kluge sempre permaneceu fiel ao seu método, no qual não existe nenhuma diferença entre a montagem literária e a cinematográfica, pela síntese de "imagens dialéticas", como comentou certa vez Adorno em uma carta a Walter Benjamin de 2 de agosto de 1935. A realidade já se oferece ao olhar do cineasta como uma montagem que deve ser implodida pela desmoralização do que lhe parece mais caro: seu lastro documental. A reorganização desse "material" opera pela justaposição e pela "citação" de fragmentos originários de sua camada mais superficial, na forma de um protocolo judicial detalhado, sem uma linha narrativa hierárquica.
O cinema representaria assim, como sempre afirmou Kluge, uma "sonda" exploratória dessas camadas mais densas do material histórico. O diferencial semântico que deriva desse deslocamento permite-lhe assim uma alternância entre abstração estética e a visualização de um "plano" do cotidiano, organizando na porosidade desse material a soberania da faculdade da imaginação.
Nesse sentido, suas "contra-histórias" não oferecem nenhuma moral sob o lema de seu terceiro longa-metragem: "No Perigo e na Má Sorte, Traz o Meio-Termo a Morte", uma variante do princípio do aprendizado histórico contido nas "Teses" de Walter Benjamin. "Vidas" (1962) e "O Poder dos Sentimentos" (1983) são exemplos narrativos da imaginação sintética de Kluge. Já no plano da teoria, "História e Obstinação", 1981, em parceria com Oskar Negt, reorganiza a economia política sob a égide da faculdade da imaginação no sentido de uma montagem cinematográfica. Alexander Kluge concedeu de sua casa em Munique a entrevista a seguir.

Dez anos após o fim da União Soviética são lançados esses dois volumes de quase 2.000 páginas ("Crônica dos Sentimentos"). Hans Magnus Enzensberger observou certa vez o senhor não é um "narrador insensível". Quais são os "sentimentos" dessa cartografia?

O fim desse gigantesco império liberou energias criativas formidáveis que estavam até então congeladas e se abrem como um amplo território à nossa imaginação. Sentimentos não significam, nesse contexto, a instrumentalização sentimental ou comercial dos afetos. Como sabemos, a idéia de sentimento foi de tal maneira estilizada pelo século 19, seja como clímax romanesco ou ponto de descobertas, seja como impulso caótico, que se torna difícil dissociá-la desses clichês. Inicialmente trata-se de aprender esses afetos, mapeá-los na história de nosso corpo, de nossa faculdade imaginativa. Por exemplo, o sentido de equilíbrio, que somente experimentamos quando o perdemos. Quando se considera, por exemplo, o funcionamento do músculo do riso. Então podemos afirmar que essa zona da qual se originam tais sentimentos é uma instância que parece ter permanecido livre da colonização das demais.
Os homens aprenderam historicamente a dividir seu corpo em dois territórios: o baixo e o alto corporal. O pulmão, o espírito, os pensamentos e a dimensão da virtualidade orientam-se para cima, enquanto existiria uma zona de guerrilha entre esse alto e esse baixo que não obedece à jurisdição de nenhuma das duas. Essa é a zona corporal dos sentimentos, um território mais antigo que a própria linguagem discursiva, por exemplo. Por meio de alguns movimentos respiratórios, podemos produzir o riso. Esse riso é arcaico. A soma dessas reações, não apenas dos afetos ou dos sentimentos em termos do sentimentalismo, dizem, na verdade, respeito à própria distinção entre o corpo e o espírito. Trata-se da produção em massa das faculdades, é a zona dos sentimentos.

Grande parte desse material resulta da manipulação de documentos históricos, produzindo uma espécie de ficção científica de uma meta-história precisa e fantástica ao mesmo tempo. Que espécie de "realismo" é esse?

Uma parte considerável desse material do presente não é imediatamente dramatizável, salvo por meio dessa zona intermediária. Os sentimentos, por definição, são anti-realistas, pois os homens constroem sempre uma contra-imagem da realidade, ou seja, contra a superstição de que a realidade seja "realista". Esse é um dos pensamentos-chave de meu trabalho ao longo das últimas décadas. Considero a realidade como uma construção sintética de relações de poder da faculdade da imaginação. A realidade, nesse sentido, pelo menos, não é realidade no mesmo presente de nossa existência.
Quando imagino o objeto "Brasil", por exemplo, ele se apresenta como a somatória de todos os afetos, paixões destes últimos 500 anos de sua história. Essas imagens são reais. Alexander von Humboldt (1769-1859) empreendeu uma longa viagem de reconhecimento por lá, mas essas impressões não são reais para o presente. O anti-realismo dos sentimentos é uma realidade experimentada em cada um de nós a todo momento, não precisamos "descobri-la", pois ela se inscreve mesmo na atividade espontânea da imaginação. A imaginação sempre recua quando não pode suportar ou elaborar imediatamente um objeto da realidade e, dessa forma, ela já opera uma crítica prática.
Os homens geralmente se enganam redondamente quando aceitam a "realidade" como dada. Mas aceitá-la também na sua múltipla determinação contraditória seria no cotidiano impraticável, portanto estamos revestidos de diversas camadas de defesa. Como advogado não poderia me conduzir pela minha fantasia, mas como escritor estou habilitado a produzir os "contra-objetos". E, desde que os homens existem, eles relatam sempre contra a realidade quando escrevem a própria história. Esse é o núcleo de toda a historiografia. Poderíamos comparar a realidade à figura de um monarca. A soberania dele somente existe quando seus súditos a reconhecem.

O seu primeiro contato com a produção cinematográfica no final dos anos 50 ocorreu por meio da mediação de Adorno. Como ele se deu?

Sim, foi num curso inaugural de filologia sobre o historiador Tácito, em Frankfurt. Diante de mim sentava-se um senhor com olhos castanhos belíssimos e de grande intensidade, quase inteiramente calvo.
___________________________
Auschwitz não é um
fantasma, mas uma
realidade histórica; Adorno
me contou uma vez uma
história em que ele se via no
meio de uma reunião como
um morto -eu mergulho
nesse pensamento dentro
do cérebro dele.
_____________________________

Quando eu o olhava, ele me retribuía o olhar num misto de irritação e interesse. Fiquei me perguntando se aquele homem seria justamente quem Thomas Mann descrevera em seus diários como Theodor Wissengrund Adorno. Então, resolvi abordá-lo diretamente: "O senhor é Theodor Wissengrund Adorno?". Tornamo-nos a partir de então amigos. Por motivos que não vêm ao caso, me tornei depois conselheiro jurídico do próprio Instituto de Pesquisa Social, mas não fui aluno e sim um amigo.

O senhor descreve nessas "Crônicas" a "morte terrena" de Adorno. Ao entrar na "dimensão paralela", Adorno percebe que não está no parnaso, mas sim diante do reticulado caótico da periferia de São Paulo. O que o fantasma de Adorno está fazendo exatamente em São Paulo? Duas perguntas: não seria essa ocasião uma aporia típica do mestre para, primeiro, exorcizar o próprio fantasma e o da velha teoria crítica, e segundo, acertar as contas com o desafeto Heidegger?

São duas narrativas distintas. A de Heidegger relatarei em outro momento. Vamos à primeira. Essa história se originou do fato de que Adorno morreu num roupão branco, como os candidatos romanos, daí justamente a origem da palavra "cândido" (branco), pois é aquele que se apresenta numa toga branca e chega sem sua bolsa. É justamente assim que os mortos entram no parnaso. E, como não está ainda inteiramente provado pela ciências naturais se existe de fato ou não ou um parnaso, salvo na imaginação dos poetas que o descreveram, posso então tomar essa referência da topografia literária para fazer essa analogia.
Esse mundo paralelo das idéias nos circunda, e quando pensamos na idéia tradicional cristã do paraíso, posso afirmar que o traçado caótico da periferia de São Paulo seja bastante pertinente para se opor àquela topografia do platonismo. São Paulo é um corpo vivo e dinâmico, também caótico em seus movimentos, e aqui se desenha uma contra-imagem daquela topografia e daquela hierarquia espiritual do "Evangelho". O espírito de Adorno atravessa paisagens literárias contrastantes, da mesma maneira que nas metamorfoses de Ovídio. E aquilo que os mortos fazem não podemos julgar, pois seria doutrinário.
Ora, você parte do pressuposto de que a teoria crítica está morta e liquidada como um fantasma europeu. Não posso avaliar o que seja a recepção da teoria crítica num contexto como o da América Latina, mas ela certamente foi e é a resposta européia a Auschwitz como processo civilizatório, e Auschwitz não é um fantasma, mas uma realidade histórica. O próprio Adorno me contou uma vez uma história em que ele se via no meio de uma reunião como um morto. Eu mergulho nesse pensamento dentro do cérebro dele.

Qual foi a contribuição do pensamento dramatúrgico de Heiner Müller para o cineasta Alexander Kluge?

De Müller, basicamente, aprendi o laconismo, uma concisão narrativa que ele dividia com o historiador Tácito, que retira a energia de suas narrativas pela depuração de qualquer excesso retórico. Trata-se de narrativas quase em estado puro. Müller conduziu essa compactação a uma pureza lírica única no final de sua vida, uma cifra do século que passou.

O cineasta Kluge parece se interessar também pela fenomenologia do "olhar dissolvente" dessa dramaturgia que, partindo do idealismo alemão em seu ataque ao fundamento da realidade por meio de um pensamento sem objetos, atinge a guerra total moderna de extermínio. Em Müller, a tempestade eletrônica da mídia realiza o "apagamento do mundo nas imagens".

Sem dúvida, o tema do olhar em Müller realiza esse percurso, sim, existe essa convergência histórica, mas há também contra-impulsos a ele no próprio idealismo alemão. Clausewitz foi o único que escreveu um livro que renega completamente a guerra total. O princípio político está no centro da guerra como contrapartida ao princípio do extermínio da guerra moderna. É contra a impotência do princípio da destruição que Clausewitz se insurge. Clausewitz era também um homem do idealismo alemão. Já em Novalis ou mesmo Hölderlin há contraposições para esse extermínio da realidade.
O movimento estudantil de 68 continha também uma continuação do idealismo alemão e do princípio de violência que mina o fundamento da realidade, mas esse princípio de violência é, por excelência, o princípio do terror jacobino. A emergência da indústria, da guerra popular e da espontaneidade do amor são princípios que nascem simultaneamente no processo revolucionário francês. À guerra popular opõe-se a guerra do gabinete, e daí origina-se um princípio de brutalidade como nunca houve antes, uma liberação de energias destrutivas e brutalidade. Com o surgimento da linha de montagem da indústria temos um princípio de mecanização e, portanto, de exploração mecanizada da força de trabalho. E, quando se toma a espontaneidade do amor, se destroem as defesas tradicionais nas relações entre os sexos com o amor livre.

Por outro lado, pesaria também sobre Müller, sobretudo numa parcela da crítica mais recente, a acusação de vincular-se a um paradigma conservador da tradição vitalista de direita. No centro dessa crítica está a idéia de que Müller não teria entendido a abstração do mundo moderno e o caráter anônimo da violência industrial que Auschwitz significa.

Heiner Müller não é um poeta armado nem tampouco um revolucionário, pois um poeta não deveria agir e se pronunciar como poeta. Não entendo isso como uma crítica substancial, mas sim como um ataque retórico . Auschwitz não é para ser "entendido", mas sim recusado, apenas recusado. Não se coloca a questão de entendimento. Não existe tampouco a idéia de um sujeito em Müller.
Como em Nietzsche, esse sujeito não passa de uma ilusão, um conglomerado de realidades díspares e de forças sem um "telos" determinado. Mas, diga-se de passagem, trata-se de uma ilusão vital para todos nós. Auschwitz não tem nada a ver com compreensão ou mesmo com a idéia de sujeito, não podemos entender Auschwitz a partir da idéia de um "sujeito histórico". Essa idéia de sujeito seria inteiramente inapropriada para entender Auschwitz e sua violência. Trata-se antes de uma resistência a isso.
Quando pensamos numa figura, por exemplo, como o personagem do clássico romance de formação "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe, que se molda no choque com a realidade objetiva, então precisamos apontar de antemão a disparidade dessa idéia de sujeito diante do abismo que Auschwitz significa, abismo diante do qual cada animal deve manifestar seu horror. Ante Auschwitz existe apenas o horror. Entre a sentença de Adorno, de que não é mais possível lírica após Auschwitz, e a recusa de Müller a uma noção de sujeito vejo um parentesco muito claro. Essa atitude dos críticos, de quererem tomar afirmações de um escritor como parte de um modelo explicativo de uma visão de mundo, sempre fracassa. Escritores criam metáforas reutilizáveis e novas texturas de significação.

O que mudou essencialmente na paisagem das mídias alemãs nestes últimos dez anos desde a reunificação?

A concentração vertical do capital aumentou consideravelmente entre os conglomerados Bertelmmans e Springer e outros, que só consolidaram ainda mais sua hegemonia nos novos canais. Mas se é possível, por um lado, organizar trustes e superestradas da informação, por outro, não se podem dissolver as iniciativas individuais. No meu caso, procuro construir uma terceira via independente e alternativa nos calcanhares desses gigantes.

_________________________________________________________________
José Galisi Filho é mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha).

Nenhum comentário:

Postar um comentário