segunda-feira, 5 de setembro de 2011

"Dá para controlar" Entrevista Helmut Schmidt (Veja)





O ex-chanceler alemão propõe um controle
do fluxo de capital financeiro e diz que lutar
contra a globalização é inútil


José Galisi Filho, de Hamburgo

O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, um dos pais da social-democracia, foi também um profeta da unificação européia, cujo processo ele visualizou muito antes de outros líderes. Com a Guerra Fria no auge, Schmidt realizou a façanha de aproximar a então Alemanha Ocidental da União Soviética sem se distanciar dos Estados Unidos. Nos oito anos em que ocupou o cargo de primeiro-ministro, entre 1974 e 1982, e muito antes da queda do Muro de Berlim, foi o primeiro a falar em reunificação da Alemanha. Junto com o presidente francês Giscard d'Estaing, impulsionou a implantação da União Européia e lançou a idéia de uma moeda única para a Europa. Durante os mais de trinta anos de carreira política, foi um defensor da democracia cristã e do Estado do bem-estar social. Em 1987 deixou a política partidária, mas, como editor do prestigioso jornal semanal Die Zeit e autor de dezenas de livros, continuou influente interlocutor de políticos e comentarista inteligente dos grandes temas do mundo moderno. Aos 83 anos, não poupa os inimigos do processo de globalização da economia. "Lutam contra o óbvio", diz. Na semana passada, Helmut Schmidt recebeu VEJA na sede de seu jornal para a seguinte entrevista.

Veja – O senhor sempre foi otimista em relação ao Brasil. Por quê?

Schmidt – Meu otimismo em relação ao Brasil decorre, em parte, de suas fantásticas riquezas minerais, do gigantesco potencial agrícola do país e também da formidável vitalidade de uma população em média ainda jovem. Alguns obstáculos à caminhada brasileira existem, mas podem ser vencidos. Um deles é o desequilíbrio de riqueza. A diferença atual de padrões de vida entre a costa brasileira e o interior é tão grande como a que existe entre Xangai e Sichuan, na China. Se a China for capaz de superar essas contradições nos próximos decênios, terá um papel poderoso no cenário mundial. O mesmo vale para o Brasil. A um Brasil mais igualitário está reservado um papel de liderança.

Veja – Os governos militares já defendiam a idéia de um Brasil potência na década de 70.

Schmidt – Quando digo que o Brasil pode ser uma superpotência, não estou me referindo apenas à capacidade militar. Do meu ponto de vista, uma potência mundial é o resultado de vários fatores. O militar é apenas um deles. Decorre de sua capacidade econômica, de sua saúde social, da ausência de conflitos internos, do tamanho do território. Apenas por causa de seu território, a Rússia já é uma potência, queiramos ou não. Sem levar em conta suas 10.000 ogivas nucleares. O Brasil não precisa de armas nucleares, mas não excluo a possibilidade de que venha a desenvolvê-las um dia.

Veja – O que exatamente o senhor chama de "capitalismo de rapina"?

Schmidt – Com a expressão "capitalismo de rapina", refiro-me especificamente aos consultores e corretores que fazem as operações de anexação hostil de empresas, aos intermediários financeiros, aos palpiteiros de plantão do mercado de capitais, aos plantadores de boatos, enfim, a todos aqueles que participam dessa ciranda financeira desenfreada, ganhando rios de dinheiro, sem levar em conta as conseqüências de suas decisões. Pelo menos metade das grandes fusões do mercado é malsucedida. Elas são feitas apenas por ganância dos executivos que chegam para os conglomerados e dizem: "Vejam só, temos um palpite excelente de como se pode comprar o conglomerado 'a' ou 'b' ". Claro que eles lucram muito e artificialmente com essas transações. É isso que entendo por "capitalismo de rapina". Trata-se de um desenvolvimento lamentável do capitalismo, sob o qual se esconde um impulso doentio para a riqueza fácil.

Veja – O Estado ainda tem algum papel regulador dos mercados?

Schmidt – Existem setores nos quais a competência do poder público ainda desempenha enorme papel regulador, especialmente no controle dos monopólios, na política de concorrência e na política de cartéis no velho estilo. Nesse domínio, ainda prevalece, como antes, a soberania legislativa do Parlamento. Mas o grande poder regulador dos governos vem sendo exercido com ações de defesa ambiental. No passado, nem o Estado nem a iniciativa privada dispunham de competência reguladora sobre esse setor. Agora têm. Até mesmo nos países do Sudeste Asiático e do Extremo Oriente os governos vêm impondo medidas ambientais. Esse é um domínio em que a soberania estatal cresce, consolida-se e aprimora-se em relação a trinta ou vinte anos atrás.

Veja – E onde o Estado é mais fraco?

Schmidt – Um domínio-chave em que os governos perderam essencialmente o controle nos últimos vinte a trinta anos é o campo das finanças internacionais. Nesse domínio se cometem os maiores atentados à razão e à moral nas manobras especulativas mais baixas. Trata-se de um campo muito amplo, com aspectos bastante distintos – e falo aqui menos dos mercados de crédito que da especulação financeira de curto prazo com papéis, ações e moedas.

Veja – O Estado social alemão fracassou?

Schmidt – Na maioria dos países da Europa Ocidental o Estado do bem-estar social ainda representa um modelo cultural forte. Eu não diria que ele fracassou em sua grande promessa ou que não a tenha cumprido. Muito pelo contrário: a maioria esmagadora da população da Inglaterra, Bélgica, Itália, Holanda, Alemanha e da Escandinávia nunca dispôs de um padrão de vida tão elevado como no final do século XX.

Veja – Afinal, a tão falada globalização significa mais progresso ou menos emprego?

Schmidt – A aliança de interesses contra a globalização é completamente estéril. É uma aliança contra o óbvio, feita por aqueles que são contra o que desconhecem inteiramente. Esses grupos voltam-se contra um clichê, a palavra "globalização". É estranho porque a globalização nem é coisa nova. Comércio mundial e tráfego internacional existem desde Marco Polo, Colombo e os armadores de Veneza e Genebra. Desde o início da idade moderna, a globalização operou uma divisão internacional do trabalho entre os fornecedores de matérias-primas e os países da manufatura. Aquilo que se conhece mais recentemente como globalização já estava muito claro desde a crise do petróleo, no início dos anos 70. Naquela época os políticos inteligentes perceberam que a economia de seus países não poderia mais ser conduzida independentemente dos desdobramentos da economia mundial. O que é absolutamente novo é o poder dos novos atores financeiros. Um poder nada transparente, por sinal.

Veja – É possível controlar esse poder?

Schmidt – As autoridades podem modernizar os mecanismos de controle bancário, supervisionar as operações financeiras e de seguro, estabelecer novas regras internacionais de conduta nesse setor. Isso é perfeitamente possível. Já foi feito em outros setores da vida internacionalizada. Temos uma complexa regulamentação para o transporte marítimo. Desde o advento da aviação comercial, surgiram também novas regras de tráfego. Apenas um exemplo: nenhum avião decola de Frankfurt em direção a Londres se não houver um lugar preciso para ele aterrissar quando chegar ao Aeroporto de Heathrow. O transporte aéreo é prova de uma complexa e eficiente regulamentação internacional. É hora de os países mais desenvolvidos chegarem a um acordo sobre como controlar o fluxo do dinheiro.

Veja – A que se devem as altas taxas de desemprego na Europa?

Schmidt – Apenas em uma parcela mínima o desemprego em massa na Europa é conseqüência da concorrência internacional. A culpa maior é da super-regulamentação estatal do mercado de trabalho. Há uma inflação de normas e regulamentos. Apenas a legislação da União Européia tem 80.000 parágrafos. Esse é um dos maiores obstáculos a um desenvolvimento mais flexível. O Estado de bem-estar desempenha também um papel decisivo com seus pesados encargos sociais. Mas o ponto mais importante é que o alto nível salarial e o elevado padrão social dos países europeus implicam naturalmente altíssimos custos de produção diante dos países de baixa renda e com baixo padrão de vida. Se os produtos que fazemos podem ser confeccionados em qualquer outro lugar do mundo com a qualidade do "made in Germany" e a um preço bem mais baixo, então sobram aos europeus apenas duas alternativas. A primeira é se conformar em achatar seus salários e, no futuro, rebaixar seu padrão social. A segunda, ainda mais decisiva, é se capacitar para fabricar coisas que não possam ser produzidas em nenhum outro lugar.

Veja – Quais são os maiores desafios enfrentados pela Europa?

Schmidt – A pressão demográfica é o mais significativo. Os povos europeus envelhecem e declinam drasticamente em números absolutos. Por outro lado, observamos a explosão demográfica da população mundial, que começou na metade do século XX e se prolongará no nosso. No começo do século passado, havia no planeta 1,5 bilhão de habitantes. Na metade, já eram 2 bilhões, e hoje são quatro vezes mais que em 1901. E isso conduz, em muitas partes do mundo, a conflitos e guerras, como em Ruanda, Burundi e na África ocidental, e a Estados pessimamente administrados na América Latina ou no Sudeste Asiático, originando deslocamentos migratórios e enormes contingentes de refugiados em direção aos Estados Unidos e à Europa. Será preciso administrar esse fluxo.

Veja – Por que o senhor exclui a Rússia e a Turquia de seu projeto de Europa?

Schmidt – Pela mesma razão que excluo a China ou a Venezuela. Seria um equívoco incorporá-las à União Européia. A Rússia, diferentemente da maioria das nações européias, não tem tradição democrática do Estado de direito. Não tem também uma cultura de economia de mercado, de livre iniciativa ou de respeito à propriedade privada. O mesmo vale para a Turquia. Não vejo como ela possa resolver do dia para a noite o problema do Curdistão. Aqui mesmo, em Hamburgo, nós alemães somos testemunhas dos conflitos violentos entre curdos e turcos. Acho que seria um erro admitir a Turquia ou a Rússia na União Européia.

Veja – Quais as chances de êxito do euro, a moeda comum da União Européia?

Schmidt – Não tenho nenhuma dúvida de que o euro será, em alguns anos, uma moeda mundialmente reconhecida. Em trinta anos haverá três moedas mundiais: o dólar americano, o euro e o remimbi chinês. Existe certo ceticismo na opinião pública de alguns países no momento em que, pela primeira vez, as pessoas têm de pagar o aluguel, o cigarro ou o café, enfim as pequenas coisas do dia-a-dia, não mais em pesetas, francos ou marcos, mas em euro. Mas a maioria vai se acostumar rapidamente com isso.

Veja – O senhor acredita que o Mercosul e a União Européia podem estabelecer uma zona de livre comércio?

Schmidt – Sou bastante cético diante das zonas de livre comércio, mas você está falando com um cidadão de Hamburgo. Nós do porto de Hamburgo praticamos, há séculos, um comércio intenso com a América do Sul e nunca precisamos de uma zona de livre comércio. De qualquer maneira, poderia haver vantagem para ambas as partes, mas não acho que esse seja um dos problemas mais urgentes da União Européia.

Veja – É possível dar aos países em desenvolvimento mais poder junto ao Fundo Monetário Internacional?

Schmidt – Não existe neste momento uma clara distribuição de tarefas e competências entre o Banco Mundial e o FMI. Um se imiscui na órbita do outro. E ambos agem apenas em função da manutenção e da ampliação de seu poder enquanto organizações. O mesmo vale para o Secretariado Geral das Nações Unidas. Faltam transparência e controle democrático a essas organizações. Essa democratização vai ocorrer logo.

Veja – O senhor dizia alguns anos atrás, em plena euforia pela reunificação das duas Alemanhas, que os alemães "não são ainda um único povo". E agora?


Schmidt – O processo de normalização avançou bastante, mas as diferenças econômicas com os chamados novos Estados, a Alemanha do Leste, ainda são flagrantes. No Leste, a taxa de desemprego é em média duas vezes maior que nas demais regiões do país. Algumas décadas ainda serão necessárias para aplainar essas diferenças econômicas, mais até do que imaginávamos quando começamos esse processo.

Veja – Quais são suas expectativas quanto à administração do novo presidente americano?

Schmidt – George Bush é um jovem com pouca experiência em política externa. Não tenho por ele nenhuma expectativa positiva nem negativa. A classe política americana de hoje conhece menos o mundo do que aquela de vinte anos atrás. Alguns políticos americanos até se gabam de não precisar de passaporte, já que nunca viajam ao exterior. Eles entendem muito pouco de China, menos ainda de Índia, não sabem quase nada sobre a Rússia e muito pouco sobre os países em desenvolvimento da Ásia, da África e da América Latina. Apesar disso, são muito ligeiros para fazer juízos de valor sobre tudo e acreditam que aquilo que funciona nos Estados Unidos deve funcionar em qualquer outro lugar. Provavelmente essa petulância vai perdurar por alguns anos, mas, mais cedo ou mais tarde, os americanos serão obrigados a reconhecer que a China e a Rússia são superpotências mundiais e que o Brasil e a Índia provavelmente vão integrar esse grupo.

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