segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A outra face de Hitler Entrevista Joachim fest (Veja)



Edição 1625 - 24/11/1999

Biógrafo do ditador alemão e de seu ministro
Albert Speer diz que ambos tiveram
um complicado relacionamento "homoerótico"


José Galisi Filho

Lançada originalmente em 1973, a biografia de Adolf Hitler escrita pelo jornalista e historiador alemão Joachim Fest, de 72 anos, é um documento importante para quem deseja entender a II Guerra Mundial e o próprio século XX. Best-seller na Alemanha, traduzida em mais de vinte países, inclusive no Brasil (editora Nova Fronteira), a biografia é notável por fugir aos clichês sobre o ditador alemão presentes nas teorias mais tradicionais. Para Fest, Hitler não foi nem um títere dos interesses do capital nem tampouco um palhaço das massas. Foi um personagem único, que desequilibra a compreensão do processo histórico. E essa convicção se reforça agora, com a publicação na Alemanha de uma nova biografia assinada por Fest, desta vez sobre o arquiteto Albert Speer, ministro de Armamentos e da Produção de Guerra do Reich. Fest manteve com Speer um longo contato, como consultor e organizador de suas memórias, na prisão berlinense de Spandau, onde ele permaneceu de 1946 a 1966. Na biografia, Fest põe em questão o mito Speer – o do "nazista arrependido". E diz que ele não foi apenas arquiteto do führer e seu virtual sucessor: foi também sua grande paixão "homoerótica". Joachim Fest recebeu VEJA para esta entrevista na capital alemã, um pouco antes do baile comemorativo dos dez anos da queda do Muro de Berlim.

Veja – Um dos pontos mais polêmicos de seu livro é a sugestão de um relacionamento "homoerótico", ainda que não consumado, entre Hitler e seu ministro de Armamentos e da Produção de Guerra, o arquiteto Albert Speer. O que o levou a essa suposição?

Fest – A amizade entre Hitler e Speer foi uma verdadeira relação de amor, não há nenhuma dúvida a esse respeito. Hitler simplesmente se apaixonou por Speer, um jovem arquiteto extremamente ambicioso, um homem cujo encanto despertou nele sentimentos profundos. Esse "amor infeliz" prosseguiu até abril de 1945. Ele pode ser provado com muitos detalhes, mas, por incrível que pareça, nenhum historiador até agora os havia percebido. Cito apenas um episódio. Em 24 de abril daquele ano, seis dias antes do suicídio de Hitler, quando Berlim já estava cercada e sendo tomada pelos russos, Speer voou para se despedir de Hitler, sitiado em seu bunker. Anos mais tarde, quando me encontrei com Speer, disse-lhe: "Você foi para Berlim, na esperança de que Hitler o matasse. Você havia traído sua confiança, ao recusar-se publicamente a cumprir a diretiva do führer de fazer terra arrasada dos territórios que estavam para ser tomados pelos aliados". Ele me respondeu: "Senhor Fest, essa é mais uma de suas observações curiosas. Eu não queria ser morto por Hitler!" E então, seis semanas depois, Speer me procurou com uma folha amarrotada, repleta de anotações feitas na prisão de Spandau, na qual estava escrito: "Ainda hoje me sinto infeliz que Hitler, em minha visita de despedida em 24 de abril, estivesse tão conciliador e não tivesse dado ordem a um pelotão de fuzilamento para que me executassem no jardim da chancelaria. Eu acreditava que seria fuzilado por ter-me recusado a cumprir a diretiva de terra arrasada. Minha vida teria tido um fim mais digno". Speer queria morrer e, com isso, selar sua amizade com Hitler. Como em uma ópera de Wagner.

Veja – É possível que Albert Speer ignorasse o extermínio sistemático de judeus, como afirmava?

Fest – Ele negou conhecer o fato ao ser julgado em Nuremberg. Vinte e um anos depois, quando foi libertado, essa foi a primeira pergunta que lhe fizeram. Speer manteve-se firme na negativa. Numa de nossas últimas conversas, um ou dois anos antes de sua morte, em 1981, indaguei-lhe sobre o assunto. Ele foi taxativo: disse que não sabia de nada. Os indícios, no entanto, apontam para o fato de que estava a par de tudo.

Veja – O que o senhor quis dizer com a última frase de seu livro sobre Speer: "Um homem de muitas faces, mas sem nenhuma qualidade"?

Fest – Que lhe faltava um eixo moral inabalável. Todos nós vivemos de contradições, é certo, mas estas aparecem em Speer de maneira tão dramática que é impossível desvendar qual a sua verdadeira personalidade. Ele sempre procurou saber o que a culpa significava, sem jamais alcançar realmente a sua real dimensão. Speer foi responsável por decisões que custaram a vida de milhões de seres humanos, mas não conseguia sentir-se individualmente responsável por isso.

Veja – É possível relativizar os horrores promovidos por Hitler, como tentaram fazer alguns pensadores alemães na década de 80?

Fest – Não. Hitler representa o mal em estado puro, o oposto da civilização. Na História da humanidade, todos os estadistas, mesmo os mais sanguinários, sempre defenderam algum objetivo que representasse uma contribuição em termos civilizatórios. Hitler desafiou essa lógica. O nazismo tinha um programa ideológico apenas na aparência. Sua verdadeira essência era a aplicação de um raciocínio de bases biológicas à política. Ele acreditava que o mundo estivesse ameaçado pela contaminação de raças inferiores. Um verdadeiro absurdo de qualquer ponto de vista. Uma de suas justificativas para perseguir os judeus é que eles formavam uma raça que contrariava o princípio da territorialidade – e essa era uma lei elementar da natureza. Hitler declarou que desejava "elevar" os homens a um novo patamar de equilíbrio. Seu legado, se assim podemos chamá-lo, é algo monstruoso, sem paralelo na História: a guerra de extermínio. Hitler era um completo paranóico.

Veja – Como uma nação inteira pôde seguir um monstro?

Fest – Que Hitler tenha encontrado milhões de seguidores é uma vergonha para a Alemanha de seu tempo. Mas o nazismo não é um fenômeno circunscrito a uma nacionalidade: ele mostrou como o edifício que chamamos de civilização tem bases frágeis. Seu advento derrubou definitivamente a idéia clássica do Iluminismo, expressa pela confiança na razão e no progresso inexorável. Para os iluministas, o mal situava-se fora do homem, era resultado da distorção de uma série de fatores, entre os quais a pouca educação. Hitler demonstrou que o mal está presente na natureza humana, a impregna. A educação pode afastá-lo provisoriamente, mas não eliminá-lo.

Veja – O século XX foi um século em que o mal venceu?

Fest – Como sou um pessimista, tendo a acreditar que o mal vence na maioria das vezes. No entanto, a despeito de todas as injustiças e crueldades cometidas durante a II Guerra e depois dela, sou obrigado a reconhecer que o mal não ganhou neste século. As provas mais recentes disso são a reunificação alemã, que acabou de completar dez anos, e a derrocada do socialismo. Talvez haja esperança para nós.

Veja – Existe algum outro ditador de nossa época comparável a Hitler?

Fest – Há alguns anos, o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger publicou um artigo, comparando Hitler ao líder iraquiano Saddam Hussein. Ele foi muito criticado por causa disso. Acho que a comparação direta é indevida, mas entendo o que Enzensberger quis dizer ao fazê-la: não importa o seu grau de desenvolvimento, os homens sempre estão à espera de um líder que os conduza à autodestruição, por meio do terror e da propaganda doutrinária. Realmente, é uma constante na História a existência de massas prontas ao sacrifício. A população do Iraque apresentaria, assim, um comportamento semelhante ao do povo alemão diante da derrota inevitável, em 1945. Aconteceu uma vez com Hitler, pode ocorrer novamente, irá sempre acontecer quando as mesmas condições se repetirem. Portanto, precisamos de um sistema de vigilância e, mais ainda, de uma atitude cética diante de nossas próprias convicções. Tal era o objetivo do artigo de Enzensberger, e estou inteiramente de acordo com essa perspectiva.

Veja – Até quando Hitler achou que poderia ganhar a guerra?

Fest – Não há testemunhos disso, mas existem muitos indícios de que Hitler já sabia, desde o inverno de 1941, que não poderia ganhar a guerra. E o que ele fez, então? Primeiro, passou a ameaçar sistematicamente o próprio Exército alemão. Como ele se mostrou fraco na luta, deveria ser punido. Tomemos a ofensiva das Ardenas, em dezembro de 1944. Qual seria o sentido de uma "ofensiva" contra os Aliados naquela altura? Nenhum. Foi uma ação que permitiu que os russos massacrassem divisões alemãs inteiras. Na verdade, a idéia de Hitler era prolongar ao máximo o sofrimento de seus soldados, bem como o da população do país. Mais importante, no entanto, era levar a cabo o extermínio dos judeus. Depois de diversos "ensaios", como a perseguição aos doentes mentais alemães durante vários anos, a estratégia da solução final, com o emprego de câmaras de gás, foi finalmente posta em operação em 1942. A partir de então, todos os esforços se concentram nisso. A prioridade atribuída ao transporte de prisioneiros para os campos de extermínio, em detrimento de objetivos militares claros, comprova essa tese. A malha ferroviária, por exemplo, foi modificada para acelerar a evacuação dos judeus dos guetos, embora isso prejudicasse a mobilidade e a resistência do Exército. Na perspectiva de Hitler, se a guerra não poderia ser ganha, era preciso ao menos eliminar os judeus da face da Europa. Hitler era conseqüente na sua desumanidade patológica.

Veja – Uma vez perguntaram a Hitler o que aconteceria com o Brasil, onde vivia uma razoavelmente numerosa comunidade alemã. Ele teria respondido: "O Brasil, eu resolvo com um telefonema". O que Hitler queria dizer com isso?

Fest – Essa anedota somente confirma os limites da visão de mundo de Hitler. A América Latina representava um enorme vazio para os nazistas. Hitler não sabia quase nada sobre outros países e continentes, salvo o que lera quando jovem nas novelas de aventura de Karl May, que ambientava suas intrigas em lugares exóticos e distantes. Eram histórias idealizadas, como as do índio Winnetou. Hitler conheceu apenas a Itália, em viagem oficial. Esteve uma única vez em Paris, na manhã seguinte à derrota francesa. E tinha somente uma vaga idéia do que fossem os Estados Unidos, do seu tamanho e de sua força. Seus horizontes terminavam nas fronteiras do antigo "reich" alemão.

Veja – O senhor conhece a participação brasileira na II Guerra?

Fest – Infelizmente, não. Suponho que seja um ponto-chave da história brasileira, assim como na de todos os países que estiveram envolvidos no conflito. A Alemanha estava em guerra criminosa com o mundo inteiro, contra todos os princípios elementares da civilização e cometeu muitos crimes contra a paz e contra a humanidade. Acho que seria fundamental contar aqui na Alemanha essa campanha brasileira. Tenho certeza de que haveria um enorme interesse em conhecer a versão de vocês.

Veja – A cada dia, na internet, aparecem páginas com propaganda racista. Muitas têm inspiração nazista. Como o senhor vê esse fenômeno?

Fest – Creio que sejam apenas tentativas de angariar alguma atenção. Uma página racista na internet, é preciso salientar, não tem poder de convencimento. Ela somente reforça convicções já entranhadas. Quem for sensato, razoável e informado não vai se deixar levar por mensagens eletrônicas. De qualquer forma, aumentar a quantidade do combustível de ódio em circulação, com iniciativas como essas, é preocupante e exige uma intervenção do poder público.

Veja – Recentemente veio à tona a informação de que Jürgen Habermas, o mais conhecido e influente pensador alemão das últimas décadas, foi um nazista de primeira hora. O que isso diz a respeito da intelectualidade alemã?

Fest – Habermas foi líder de uma unidade da Juventude Hitlerista. Isso não é uma aleivosia, é uma afirmação que pode ser comprovada. Soube do fato por intermédio de amigos seus. Habermas acreditou no führer como a maioria dos alemães, pois viveu confinado naquele mundo e somente a muito custo teria se libertado. O que mais incomoda é o fato de ele ter silenciado a respeito disso e ter querido a todo o custo desempenhar o papel de "consciência moral" da Alemanha moderna. Que nosso intelectual mais renomado precise reavaliar seu papel público e como pensador é muito significativo.

Veja – Observamos, atualmente, uma explosão na venda de biografias no mundo inteiro. O que o senhor, que sempre praticou esse gênero, tem a dizer sobre esse fenômeno?

Fest – Creio que ele decorre de um refluxo na importância das teorias de esquerda para se pensar a História. Esse tipo de pensamento sempre se preocupou com a "lógica imanente". Ele reduz tudo a estruturas, a esquemas que transformam os homens em joguetes de uma evolução quase que geneticamente determinada. O problema é que, raciocinando assim, perdemos a perspectiva da liberdade da ação moral do homem. E estou certo de que essa liberdade desempenha um papel-chave na História. Os homens muitas vezes agem contra seus interesses materiais mais elementares e contra a própria racionalidade – um fato difícil de enquadrar no esquematismo de muitas teorias de esquerda. Albert Speer poderia ter agido de uma forma ou de outra. Por que fez exatamente daquela maneira, aderindo ao nazismo? Vários podem ser os motivos: fraqueza de caráter, orgulho, medo, vaidade. É uma questão em aberto. A forma biográfica permite que preenchamos esse espaço com todas as hipóteses.

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