quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A Simbologia da Culpa - Entrevista com o historiador do cinema Rainer Rother sobre a cineasta alemã Leni Riefenstahl "A Sedução do Talento" ("Die Verführung des Talents") Revista Bravo!



O autor de A Sedução do Talento, Rainer Rother, analisa a função das imagens da cineasta na Alemanha. Por José Galisi Filho, de Berlim

0 historiador de cinema Rainer Rother lançou no final
do ano passado A Sedução do Talento (Editora Henschel, Berlim, 39,80 marcos), primeiro livro a discutir, além da obra de Leni Riefenstahl, como se deu a transformação de sua imagem pública, e como essa imagem chegou a fazer parte do processo de estabilização ideológica da República Federal da Alemanha. Rother, que é diretor de programação de cinema do Museu Histórico de Berlim, na entrevista que se segue fala sobre o processo que desembocou no atual renascimento de Leni.


BRAVO!: O crítico de cinema Georg Seesslen afirmou certa vez que o "segredo de Leni Riefenstahl é que, na verdade, não existe nenhum segredo sobre ela". Seu livro procura romper o maniqueísmo com que sempre foi considerada. Deixou de ser um tabu falar sobre Leni Riefenstahl na Alemanha?

RAINER ROTHER: Em primeiro lugar, procuro manter uma distância radical dessa imagem pública, estabelecendo uma distinção entre a construção do mito e a realidade histórica da produção da obra de Leni Riefenstahl. 0 objetivo dessa monografia é buscar o nexo entre a imagem simbólica de Leni como inimiga pública e sua carreira o que também não é possível, certamente, sem uma avaliação moral. A recepção de Leni era extremamente orooe-mática na República Federal da Alemanha e desembocava invariavelmente no beco sem saída de um dualismo estéril que obstruía sua compreensão como objeto histórico: seja, por um lado, na forma de uma avaliação apologética do "gênio" cinematográfico, seja, por outro, como a mera propagandista de um regime genocida. Se por um lado a imagem da "cineasta nazista" transformou-se hoje num clichê, por outro lado, a fascinação pela qualidade estética de seu trabalho cinematográfico e fotográfico faz esquecer o contexto do qual essas imagens surgem. Meu argumento, mesmo quando se orienta pelo eixo biográfico, não perde nunca de vista a objetividade da obra e seu contexto histórico. Essa obra tem de ser analisada para além das imagens da cineasta e suas metamorfoses na opinião pública alemã desde 1945. Ao contrário de Veit Harlan, o diretor de 0 Judeu Suss, percebemos que a imagem de Leni é muito mais nuançada. A despeito de sua obstinada perseverança na posição esteticista e na convicção de ter realizado apenas filmes documentários, não é possível negar que Olympia e Triunfo da Vontade

sejam hoje a mais refinada auto-representação da ideologia nazista. Ela serviu ao regime, mas sem fazer, contudo, uma propaganda anti-semita ou pornográfica. Não escrevi também uma biografia sobre Leni Riefenstahl, mas sim uma monografia que se pergunta, enfim, qual o papel que Leni Riefenstahl desempenhou no cinema do nacional-socialismo, de que maneira sua imagem reflete a construção de um consenso sobre a República Federal da Alemanha a partir de 1945 e qual é, de fato, a qualidade estética de seu trabalho.


Quais são as etapas da construção dessas imagens na Alemanha?

É possível reconhecer pelo menos duas etapas bem distintas na imagem de Leni Riefenstahl. A primeira imagem é aquela da Leni de uma ingenuidade imperdoável, sobre a qual ela teria construído oportunisticamente sua carreira. A ausência de auto-reflexão política que freqüentemente lhe foi atribuída, com justiça, encontrava sua contrapartida numa sociedade que simbolicamente a incriminava como o mais perfeito dos bodes expiatórios, na exata medida em que essa mesma sociedade se eximia de trabalhar sua culpa, recalcando-a. A construção de imagens inimigas é parte constitutiva do consenso sobre o qual se alicerçava a República Federal da Alemanha e sua estabilização ideológica. Mas um dos motivos decisivos pelos quais ela se tornou essa figura simbólica da culpa era exatamente o fato de ser também mulher, uma artista que sempre se reconheceu movida por uma "vontade de aço", fazendo sua carreira no domínio masculino do cinema. Mas é importante mais uma vez destacar que na construção da imagem da inimiga pública esconde-se o apagamento da culpa coletiva dessa mesma sociedade. A partir dos anos 70, o eixo dessa imagem começa a se deslocar na Alemanha e, depois da reunificação, nos anos 90, sofre uma guinada maior na direção de uma visão cada vez mais positiva de seu traba-lho, no sentido da valorização de sua qualidade estética até chegar finalmente na imagem cult que hoje observamos. Um dos capítulos mais eficientes nesse processo foi o documentário de Ray Müller (exibido no Brasil com o título de A Deusa Imperfeita), de 1993, que trazia Riefenstahl pela primeira vez como atriz de si mesma diante de milhões de pessoas. 0 filme evitava uma laudação acrítica, mas contornava as questões difíceis, dando à sua estrela muito espaço, como convém a uma lenda. Leni foi convidada de honra no Festival da Baviera em 2000 e, meses depois, recuperada de um acidente de helicóptero, na abertura da mostra de fotos suas na galeria de Charlottenberg Camera Works, teve uma recepção que para ela foi uma grande surpresa: não houve nenhum protesto, nenhuma pergunta incômoda, na verdade dezenas de pessoas queriam um autógrafo. Parecia que o público estava maravilhado com sua chegada. Nada que lembrasse a recusa da apresentação de Olympia no Zoo Palast em 1972. Protestos contra sua aparição pública parecem hoje improváveis. Exposições em Hamburgo, Potsdam e Berlim marcaram essa renascença de Leni, o que não significa, na Alemanha, uma reabilitação.



Seu livro afirma que Leni nunca pretendeu "provocar" seu público, apenas "seduzi-lo". Que espécie de sedução é essa? Em Triunfo da Vontade, é célebre a afirmação do credo de Goebbels: "Melhor é conquistar e manter o coração de um povo".

Trata-se, em primeiro lugar, de entender o sentido político desse cinema. Os apologetas a compararam na época à cineasta da "revolução alemã", na mesma medida em que Eisenstein o havia sido para a Revolução Bolchevique. Leni afirmou durante décadas, em parte com razão, já que seu trabalho na verdade não tinha uma mensagem política definida, que nunca realizou um filme de propaganda, mas sim um "documentário". Ela é, sem dúvida, a única autora intelectual de Triunfo da Vontade, o que não pode negar. Ela pretendia tirar da reunião do Partido todas as poten-cialidades cênicas e estéticas, que se tornaram depois o modelo para muitos cineastas.


Se esse filme é "um documentário", ele documenta exatamente o quê, já que para Siegfried Kracauer estamos diante do triunfo do niilismo de uma realidade que é inteiramente montada?

Kracauer mencionou que na seqüência inicial de Triunfo da Vontade a massa de nuvens que cobre Nuremberg esconde, de fato, "a simbiose entre o culto à montanha e o culto ao Führer", ou seja, no plano da montagem o filme operaria como ficção. Mas o filme fica a meio caminho entre o gênero documentário e o ficcional, entre a propagandada e o documentário. Já nessa seqüência inicial, falta-lhe o gesto factual, o avião de Hitler que desce sobre Nuremberg pode ser qualquer avião em qualquer lugar, não há nenhuma indicação factual desse evento. Estamos mais uma vez no mesmo território dos filmes alpinos de Leni e sua textura mítica do culto ao Führer que o filme vai sacralizar. 0 filme é também impregnado por uma eroticidade desse encontro do Führer com seu Partido. O que ela, por assim dizer, "documenta" é a semana de 4 a 10 de setembro de 1934, em que se dá o encontro do Partido. Trata-se de um encontro em que o Führer é jurado pelo Partido, no qual os laços de fidelidade e camaradagem se alicerçam, justamente depois da decapitação da SA de Rohm pela SS, e ela faz o filme dessa simbiose entre o Partido e seu Führer.

0 filme documenta uma mensagem do Partido ao Führer, mas documenta também o sucesso estrondoso desse encontro, pois é uma realidade inegável que a população de Nuremberg não era cética em relação a Hitler, muito pelo contrário. Não podemos negar isso sob hipótese alguma e afirmar que se trata apenas de uma "construção" da realidade, o que nos faz esquecer que esse júbilo e gozo diante do Führer que o filme estiliza na forma de uma mitologia era terrivelmente real e, nesse sentido, podemos chamar o filme de "documentário". Há também a questão de onde o filme é contado, qual é o olhar que o constrói. Ele pressupõe que o público espectador já conhecesse o estilo do Führer pelo rádio, e o filme coloca Hitler como seu ator principal. Isso não tem nada a ver com o fato de que Hitler esteja nele representado também como uma pessoa ficcional no seu papel de número um do Estado. Dessa forma, o filme fica a meio caminho entre a ficção e o documentário. Ele foi rodado como documentário, mas montado como ficção.



Em Olympia, parece predominar uma "bela aura na simbiose entre morte e kitsch", como apontou Saul Friedländer. Não é uma amarga ironia que justamente esse filme tenha se tornado o padrão de transmissões esportivas e de toda a estética publicitária?


Não. não concordo, acho que isso é uma conseqüência da estratégia formal escolhida por Leni. 0 que me parece decisivo é que, desde Olympia, o esporte somente possa ser compreendido pela sua sexualização. É essa visão do corpo masculino em sua beleza que aproxima o filme da estética publicitária. Se o esporte hoje funciona como uma engrenagem onipresente e modelar do desempenho devemos isso à estética de Leni. Mais uma vez estamos diante da ambigüidade de gêneros que já caracterizara Triunfo da Vontade. Certamente Olímpia é um exemplo do culto ao corpo, na celebração do belo e do atlético Hilmar Hoffmann por exemplo, aponta como aspecto problemático essa celebração da physis na sua tensão


Acima, a artista e seu mais recente lançamento, Cinco Vidas, na Feira Internacional do Livro em Frankfurt: mudando a imagem em seu país natal

no limite com a morte. Já Daniel Wildmann menciona o fato de o filme celebrar simbolicamente a estrutura do sacrifício. E mais uma vez estamos diante da questão da ideologia envolvida na estilização dos fatos. Somente poderíamos falar de uma mensagem nazista explícita em Olympia quando a configuração das seqüências, das cenas e do material evidenciassem esse gesto de maneira unívoca, mas náo é o caso. Muitas passagens do filme
permitiriam essa analogia. 0 prólogo e a celebração de abertura definem os jogos olímpicos como celebração da Alemanha nacional-socialista. A apresentação dos atletas alemães no início do filme serve a esse objetivo. Finalmente temos os comentários dos radialistas sobre a competição, no sentido de uma competição de raças e nações. Mas na verdade todos esses elementos aparecem diluídos na mensagem "apolítica" do esporte. Eu diria que se Triunfo da Vontade celebrava a construção da nova ordem, a celebração de Olympia tem como negativo a segregação e a eliminação daqueles que não poderiam pertencer à "comunidade popular do sangue"-, os judeus, os ciganos, os homossexuais, a esquerda, os fracos e os doentes mentais. As massas que desfilavam em Triunfo da Vontade e em Olympia são os espectadores dos jogos. Olympia, de um ponto de vista formal, é o ponto alto da carreira de Leni e lhe ofereceu a possibilidade de ir muito além dos rituais do Partido.



Revista Bravo! Maio 2001 ANo 4 No. 44

2 comentários:

  1. Galisi... Leni permanece uma pergunta, hein?

    que mulher estranha, polêmica, inteligente e fascinante...

    parabéns pela bela entrevista. forte abraço!

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  2. sempre fui fã desta mulher , e sempre achei ela linda , acho que o serumano julgou muito ela , ela conheceu um lider e não teve culpas de suas atrocidades ,,,leni vc sempre vai ser minha deusa

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