Edição de 11/28/2001
O astronauta russo pioneiro das estações orbitais diz que a humanidade vai um dia abandonar a Terra
José Galisi Filho, de Moscou
Aos 43 anos, o russo Sergei Krikalev é o astronauta mais experiente em atividade no mundo. Em treze anos de carreira, viajou cinco vezes para o espaço. Engenheiro de vôo de duas missões à estação Mir, destruída no começo do ano, Krikalev agora se dedica à construção da Estação Espacial Internacional, que está sendo montada a 420 quilômetros da Terra. Participou da primeira missão de montagem da estação, quando o módulo americano Unity foi acoplado ao russo Zarya, em 1998. Também fez parte da primeira equipe de astronautas a morar na estação, de novembro de 2000 a março deste ano. Em sua mais longa missão, viveu dez meses no espaço, na Mir, entre 1991 e 1992, cinco além do previsto. Nesse período, a União Soviética implodiu. Krikalev decolou soviético e aterrissou russo. “Ficamos preocupados com nossos parentes e amigos que estavam em Moscou, que chegou a ser sitiada por tanques, mas tínhamos de cumprir todas as tarefas de bordo, e não faria a menor diferença se esse trabalho fosse pela Rússia como Estado independente ou pela velha União Soviética”, diz ele. Casado, pai de uma filha, Krikalev falou a VEJA no complexo de treinamento de astronautas conhecido como Cidade das Estrelas, nos arredores de Moscou.
Veja — As imagens da destruição do World Trade Center foram registradas por satélites. Elas seriam vistas a olho nu por astronautas em órbita da Terra?
Krikalev — A 420 quilômetros de altitude, a órbita das estações espaciais, podemos ver catástrofes, sejam naturais, sejam humanas. Elas deixam traços indeléveis na paisagem. Erupções vulcânicas, desmatamentos ou mesmo mobilizações militares de larga escala, como a que os Estados Unidos estão organizando neste momento, são bem visíveis. É possível observar também, daquele ponto de vista, os melhores produtos da inteligência e do trabalho humanos, como grandes represas e usinas.
Veja — Agora que os russos perderam a Mir, seus cosmonautas serão apenas coadjuvantes na ISS, a nova Estação Espacial Internacional?
Krikalev — Os americanos são nossos parceiros em pé de igualdade, e essa parceria é a premissa de qualquer desdobramento do que venha a ser o futuro da ISS. Nossa longa experiência no espaço converge e amadurece agora na ISS. Como uma parte de meu treinamento é realizada em Houston — já decolei duas vezes com o ônibus espacial, em 1994 e 1998 —, sei que a imprensa americana ainda alimenta essa idéia nostálgica de que a ISS será uma estação com participação majoritária dos Estados Unidos. Mas a ISS já nasceu como um consórcio internacional, e sua realidade não cabe naqueles estereótipos do programa espacial nacional americano, como ele foi durante a Guerra Fria.
Veja — Por que a tentativa de utilizar comercialmente a Mir fracassou?
Krikalev — Quando a Mir foi lançada, em 1986, essa questão não se colocava de maneira alguma. Ela era produto de um programa espacial estatal. Não acho que se possa aplicar às estações orbitais e à pesquisa espacial a mesma lógica de rentabilidade de curto prazo do mercado — essa lógica não funciona por lá, pois depende e sempre dependerá de investimentos estatais maciços.
Veja — Qual foi a maior conquista da Mir?
Krikalev — Só o fato de a Mir ter permanecido quinze anos em órbita já é, em si, uma proeza, pois ela havia sido concebida inicialmente para três anos. Aprendemos na Mir a trabalhar de maneira autônoma por períodos longos. Houve no passado também vôos longos, de seis meses ou mais, mas somente na Mir foi possível realizar experimentos contínuos durante um ano ou mais. Ela foi o primeiro habitat humano estável fora deste planeta. Com ela aprendemos a montar, a reparar e a administrar estruturas complexas em órbita. Isso era uma grande arte. A Mir exigia perícia para mantê-la operacional. Desenvolvemos no decorrer destes anos programas complexos para o monitoramento dessa estrutura.
Veja — O que o senhor acha da idéia de levar “turistas” para estações orbitais, como o milionário americano Dennis Tito, que voou em maio?
Krikalev — Tito foi uma exceção. Queria voar de todo jeito para o espaço e estava disposto a pagar qualquer preço por isso. Ele tinha a possibilidade de viajar com o ônibus espacial para a ISS ou para a Mir. Quando a Mir foi desativada, ele então acabou indo para a ISS. Não gostaria de fazer juízos de valor. Por enquanto não há lugar para “turistas” no espaço. Nenhuma decolagem é rotina, como nos recorda a Challenger, que explodiu ao decolar, em 1986.
Veja — O que o senhor sentiu quando a Mir finalmente se desintegrou sobre o Pacífico?
Krikalev — Não pude estar presente na central de controle, pois me encontrava em quarentena depois de retornar de um longo vôo na ISS. A Mir foi minha casa e meu ambiente de trabalho por quinze meses. Eu a conhecia em cada detalhe. Ela era parte de minha vida e também o coroamento de minha experiência profissional. Aposentá-la equivaleu a encerrar um capítulo de minha vida. Mas, afinal, ela chegou ao fim de sua vida útil. O próprio processo de desativação pode ser considerado também uma proeza técnica.
Veja — As mulheres adaptam-se tão bem às condições impostas pelas viagens espaciais quanto os homens?
Krikalev — A perda óssea é mais crítica para as mulheres. Elas têm a ossatura menos densa que a dos homens. O espaço é um meio muito hostil para o corpo humano, independentemente do sexo, sobretudo por causa da ausência de gravidade. Nessa situação, o organismo entende que não precisa tanto do esqueleto e passa a desestimular a acumulação de cálcio nos ossos. Já existem abordagens médicas para essa condição. Contornado esse problema, as mulheres são capazes de desempenhar com a mesma destreza a maioria das tarefas exigidas pelo programa. Nessa fase inicial de montagem da ISS, mulheres não serão muito empregadas porque o trabalho externo exige muita força muscular.
Veja — O senhor decolou em sua segunda missão à Mir como astronauta soviético, em maio de 1991, e retornou à Terra como russo, um estrangeiro, em março de 1992. Como acompanhou em órbita a desintegração da União Soviética?
Krikalev — Não, eu não concordo que tenha retornado como “estrangeiro”. Meu uniforme ainda tinha a bandeira da União Soviética, que não existia mais, mas eu decolara de Baikonur, no Cazaquistão, e retornara ao mesmo Cazaquistão. A diferença é que naquela missão a União Soviética desapareceu como realidade política, dissolvendo-se em repúblicas soberanas. Foi uma mudança de estrutura política, mas esses acontecimentos não interferiram imediatamente na rotina da estação. Lembro-me de que em 19 de agosto de 1991 o pessoal de terra nos passou as instruções do dia de maneira mais lacônica que de costume. Órbitas depois, eles sintonizaram a rádio de Moscou na estação e soubemos então, com atraso de três horas, que tanques haviam tomado partes da capital. Ficamos preocupados com nossos parentes e amigos que estavam lá, mas tínhamos de cumprir todas as tarefas de bordo, e não faria a menor diferença se esse trabalho fosse para a Rússia como Estado independente ou para a União Soviética. Em cada tarefa que desempenhamos em órbita, por menor que seja, há centenas de cientistas em terra que a respaldam. Toda a nossa concentração deve estar voltada para os detalhes. Nosso cotidiano no espaço é sobrecarregado de tarefas de monitoramento, experimentos, e não há quase intervalos para assuntos pessoais, quanto mais para uma reflexão política. Só depois pude avaliar melhor o que acontecera. Na época, minha família e meus amigos do controle me pouparam dos detalhes, não queriam interferir em meu trabalho.
Veja — Os americanos perderam até hoje dez astronautas em seu programa espacial e todos são cultuados como heróis. As tragédias do programa russo custaram a vida de centenas de cientistas e técnicos cujos nomes foram mantidos sob sigilo e nunca tiveram seu lugar na história. O senhor não lamenta isso?
Krikalev — Não posso concordar com você que essas vítimas não sejam conhecidas ou não tenham um lugar em nossa história. Houve muitas catástrofes e, mesmo no auge da Guerra Fria, em 1960, grandes acidentes, como o que aconteceu na rampa de lançamento em Baikonur, foram divulgados. Eu já visitei o monumento a essas vítimas e depositei lá uma coroa de flores. Não eram astronautas, mas, sim, técnicos e cientistas que estavam na rampa quando a contagem regressiva foi disparada. Gagarin, por exemplo, também morreu num treino, e não como astronauta, e foi enterrado como herói soviético dentro dos muros do Kremlin. São fatos notórios. É claro que, no nosso mundo de artistas e celebridades, as pessoas não se interessam mais pelas tragédias dos pioneiros do programa espacial. Pertencem a um tempo que hoje parece muito remoto.
Veja — Por que o governo soviético ainda tem tanta dificuldade em falar a verdade, como se viu no episódio do afundamento do submarino nuclear Kursk?
Krikalev — Assim como aconteceu às vésperas dos ataques americanos contra o Afeganistão, o afundamento do Kursk envolvia segredos militares vitais da Rússia. Nenhum jornalista, por mais bem informado que estivesse, podia afirmar ao certo quando e como os americanos iriam atacar. No caso do Kursk, nos primeiros dias, reinou um verdadeiro caos, e os responsáveis pela tragédia estavam fora do alvo da imprensa. Apenas funcionários de segundo escalão apareceram, pessoas que não sabiam de nada e que pioraram muito as coisas. É uma prática habitual que, infelizmente, cerca os serviços de segurança. Mas nos últimos anos isso vem mudando na Rússia pela pressão da sociedade, que exige cada vez mais transparência e abertura. Sabemos que houve enorme incompetência no caso do Kursk, que resultou num desperdício monumental de vidas e recursos. A sociedade soviética aprendeu com essa tragédia que precisa haver transparência e o governo deve ser sempre questionado com dureza. Nunca saberemos ao certo o que ocorreu, mas a opinião pública está cada vez mais ativa na Rússia.
Veja — Quando será viável uma expedição tripulada a Marte?
Krikalev — Acho que ainda não estamos preparados para esse desafio, tanto do ponto de vista tecnológico quanto do social. É um empreendimento tão grandioso que implica um estágio civilizatório e de cooperação que não atingimos ainda. Mais cedo ou mais tarde, nossa espécie terá de começar a pensar em abandonar este planeta, e, ao que tudo indica, não temos opções dentro de nosso sistema solar. É uma situação semelhante à da Europa no século XV. A humanidade estava na margem dos grandes oceanos e nem sequer sabia se poderia atravessá-los. À época, parecia impossível descobrir e dominar outros continentes. O mesmo se coloca agora na infância de nossa história espacial. Viajaremos para outros planetas e para outras estrelas mais cedo ou mais tarde. É um processo natural. No começo, parecia que nossas possibilidades eram quase ilimitadas, mas logo se revelou quanto esse caminho seria longo, caro e cheio de sacrifícios. Mas estou convencido de que está inscrita na natureza do homem essa vocação. Estamos aqui sentados nesta margem do oceano e sonhamos com a outra. Queremos saber de qualquer maneira o que está do outro lado.
Veja — Como é o Brasil visto do espaço?
Krikalev — É um verde intenso que depois contrasta com o azul do Atlântico. A Floresta Amazônica é um continente inteiro. Outra situação muito interessante de observar são as variações das estações do ano e os contrastes entre o inverno e o verão no hemisfério norte e no sul. São impressionantes. Mas o efeito da devastação das florestas pelo desmatamento e pelas queimadas é visível lá de cima.
Veja — Vários astronautas do projeto Apollo se voltaram para o misticismo depois de retornar da Lua. O espaço também mudou sua vida?
Krikalev — Acho que essa virada em direção ao misticismo e a busca de explicação na religião são exceções. Seria exagero tomá-las como modelo. A imensa maioria dos astronautas que conheço são pessoas normais e de bom humor.
Veja — Impactos catastróficos de meteoros, como o de Tunguska, na Sibéria, que caiu em 1908, são um risco real para o futuro da humanidade?
Krikalev — Se nós fomos capazes de manter a Mir em órbita por quinze anos, também teríamos, em princípio, as condições de desenvolver uma tecnologia para desviar um meteoro que caísse sobre a Terra. Mas isso ainda não é possível. Precisamos de novos computadores e programas de vigilância mais precisos. No atual estágio, não podemos antecipar exatamente quais são os corpos do cinturão de asteróides que nos ameaçam mais.
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