"Ouvido e Consciência" (Transcrição do último programa da série, no.13, RTC, São Paulo, 24.10.1986, 16h)
Música é um sistema de signos. A música é uma linguagem, porque é um sistema de signos, um sistema de signos sonoros, ou seja, sons acordes, motivos, frases etc. (Último programa da série.)
Assim, música deve ser ouvida e apreendida como linguagem. (Dos perfis da música.) E a obra musical como produto lingual. (Um ensaio sobre o silêncio.) Linguagem é o reflexo mais imediato de um nível de consciência alcançado por um indivíduo ou um povo. Assim, para poder ouvir e entender música, é necessário conhecer e compreender o nível de consciência alcançado pelo compositor e a sociedade à qual pertence. (O som como um sopro.) O que seja essa consciência, a chave talvez para compreender tudo o que ocorre em torno de nós, a chave para compreender o mundo e o homem, a História, a cultura e a civilização, o desenvolvimento das nações, das ciências e das artes.
Consciência é a capacidade do homem em apreender os sistemas de relações que o determinam, assim como as relações de um dado objeto a ser conscientizado como meio ambiente e o "eu" que o apreende. Consciência não é conhecimento formal. Não é mero reconhecimento de qualquer processo de pensamento, mas uma forma de interrelacionamento constante, de relacionamento mútuo, portanto. É um ato criativo de integração. Em termos de Física, a consciência humana é um campo gravitacional. A Física moderna acredita que a consciência do homem influa sobre o mundo físico, no mecanismo do mundo físico, afetando-o.
Descobriu-se, conseqüentemente, que não existe uma só realidade e que todas as realidades possíveis coexistem. A Física nova acredita que uma parte da consciência elimine todas aquelas realidades que as nossas percepções não são capazes de aceitar. Acredita que a consciência contém o "estruturador", por assim dizer, um mecanismo neurofisiológico que afeta a realidade psiquicamente. Segundo a Física moderna, matéria e consciência formam um contínuo.
Mente e universo tornam-se um espaço cognicional imenso de projeção multidimensional, constituindo campos dentro de campos. Em conseqüência de uma mutação da consciência humana ao longo deste século, e como marcos desta mutação podem ser citados os trágicos acontecimentos de Hiroxima, Erisburg, Chernobyl. Em conseqüência desta mutação, surgiu uma nova imagem do mundo, imagem a qual deveria ser a linha diretriz para tudo que o homem contemporâneo faz, realiza, coordena e organiza.
Assim, já as três primeiras décadas deste século transformaram radicalmente a arte e a música, em particular. Uma nova imagem do mundo esfacelou os conceitos de uma visão newtoniana do universo. As noções de tempo e espaço, as partículas sólidas elementares, a causalidade, ou seja, o princípio segundo o qual os efeitos se ligam a determinadas causas e a idéia de uma descrição objetiva da natureza. Na música, desaparece o compasso. Duração e altura dos sons tornam-se cada vez mais imprecisos. Os componentes determinados e fixos da partitura perderam sua consistência. A música perdeu sua lógica dedutiva e a partitura seu caráter de objetividade. Uma das mais importantes obras-primas musicais, senão a mais importante no limiar dessa mutação, é o poema sinfônico La Mer, do compositor francês Claude Debussy, obra que consiste de três rascunhos sinfônicos para orquestra, como diz o compositor, intitulados De l'Aube à Midi sur la Mer (Da Alvorada ao Meio-Dia sobre o Mar), Jeux de Vagues (Jogos das Ondas), e Dialogue du Vent et de la Mer (Diálogo do Vento e do Mar).
A obra La Mer não descreve o mar, como muita gente pensa, porque a música é uma linguagem sem referente externo, mas delineia, esboça, alude ao mar. Sobre a arte que delineia, esboça, e apenas alude a alguma coisa, o compositor francês Pierre Boulez escreve: "Amo a dimensão apenas esboçada que se revela paulatinamente. Nela, não há pretensão da obra-prima que se perpetua. Aprende-se, por assim dizer, a viver na música". Eu diria que a verdadeira arte, em última análise, nunca descreve e representa, mas circunscreve e delineia. Descrição e representação não são meios artísticos. Pertencem ao domínio da informação costumeira e limitam a liberdade artística. Circunscrição, delineamento e alusão são recursos da arte. Deixam à fantasia artística toda liberdade e integram o ouvinte ou o espectador em seu domínio, despertando nele o pensamento criador pela identificação com o autor da obra, isto é, desafiando-o à interpretação criativa.
O mar, talvez o fenômeno natural mais elucidativo da nova imagem do mundo, feito de moléculas e átomos em vibração, que consistem em partículas que interagem entre si através da criação e da destruição de outras partículas. O mar, recipiente de cascatas de energia cósmica, cascatas nas quais, em pulsação rítmica, partículas são criadas e destruídas, o que é a mesma coisa. La Mer, obra composta por Claude Debussy entre os anos de 1903 a 1905, em que surgiu a nova imagem do mundo através das duas teorias básicas da Física moderna, que começaram a mudar o pensamento humano: a teoria dos quanta e a teoria da relatividade. Os três esboços sinfônicos de Debussy como marco de uma mutação da consciência humana, de uma mutação que levou a uma profunda revisão das categorias de pensamento acerca do universo e do relacionamento do indivíduo com o mesmo, concepção que o filósofo chinês Tchuan Su, há mais de dois mil anos, descreveu da seguinte maneira:
"No princípio de tudo, era o vácuo dos vácuos, o inominável, e o inominável era o uno sem corpo, sem forma. Este uno, este ser, em que todos acham a forma para existir é o vivente. No vivente, palpita o sem-forma, o indiviso. No ato dos sem-forma, vivem os existentes, cada qual segundo seu princípio anterior, e isto é a forma. Aqui, o corpo acaricia o espírito, e os dois atuam juntos como um, unindo e manifestando seus caracteres, e isto é a natureza". (O som como reticência.)
Tudo que era fixo, duradouro, compacto e cerrado converteu-se em algo dinâmico, livre, móvel, e transparente. O espaço dilui-se e sistemas racionalistas inteiros vieram abaixo. Em todos os domínios do pensamento ocidental, observa-se a mesma tendência à superação do pensar racionalista e dos conceitos dualísticos opostos. Espaço e tempo transformaram-se no continum espaço-temporal e a matéria passou a ser uma forma de energia.
O mundo começou a figurar-se como uma complexa teia de eventos, na qual conexões de diferentes tipos se alternam, se sobrepõem ou se combinam, determinando assim a textura do todo. A partir dessa transformação radical, a linguagem musical também passou a conhecer um profundo processo de transformação.
A conscientização de um mundo microfísico revela uma realidade que freqüentemente transcende linguagem e raciocínio, levando ao desaparecimento ou à unificação de conceitos que até hoje pareciam opostos e irreconciliáveis, ou à criação de novos conceitos estéticos e teóricos. Assim, no início deste século, Debussy inaugura um novo idioma sonoro, cujas inovações linguais são características da consciência do homem do século XX, em minha opinião, bem mais características e decisivas que as de um Schönberg, pois Debussy coloca perguntas, por assim dizer, que o presente sugere, mas só o futuro responde.
É que a linguagem de Debussy não define, não demarca a idéia musical, não exprime com precisão, mas busca saber e indaga a essência do som. Não apresenta o que está escrito na partitura, mas indaga aquilo que não foi escrito.
É que Debussy, em suas últimas obras musicais, não exprime a idéia musical completa, mas apenas a sugere. Recorre a frases intercaladas, por assim dizer, formando um sentido à parte, uma espécie de parêntese que, de vez em quando, dificulta a audição e percepção. (A seguir, então, ouviremos na seqüência o segundo movimento do poema sinfônico La Mer, de Claude Debussy, composição que lembra as seguintes frases de Tchuan Su: "Mas aquele que obedece à natureza retorna através da forma e do sem-forma ao vivente, e, no vivente, une o começo ao que não começou. A união é a igualdade. A igualdade é o vácuo. O vácuo é o infinito". (O som como poeira.)
Nesta partitura eminentemente espiritual do grande compositor francês, não há divisões do tempo como passado, presente e futuro, pois tais divisões amalgamaram-se num único momento do presente, onde o pulso da vida palpita em seu verdadeiro sentido.
Passado e futuro são trazidos ao momento presente que não é algo que permanece parado, mas que incessantemente se move. A Física moderna apresenta a matéria não como inerte, mas em contínuo movimento e vibração, cujos padrões rítmicos são determinados pelas estruturas moleculares atômicas e nucleares.
O poema sinfônico La Mer apreende o universo dinamicamente à medida em que tudo se move e vibra, uma imagem da natureza que não se encontra em equilíbrio estático, mas sim dinâmico.
Os acordes da harmonia transformam-se em manchas sonoras, pinceladas, por assim dizer, e a estrutura lembra o esboço de um quadro, cujas figuras e contrastes são obtidos de modo sumário e sintético. O pulso que mede o tempo deixa de obedecer ao rigor do relógio cada vez mais, para introverter-se, voltando-se para dentro da estrutura dinâmica, estrutura adversa à ostentação e à rigidez de medição.
Da mesma maneira, desaparecem contornos e linhas melódicas extensas que crescem e se desenvolvem. Em seu lugar, surgem fragmentos melódicos, rabiscos, por assim dizer, pequenos motivos e constelações preparam o estruturalismo de nossos dias.
A aplicação dos conceitos tradicionais de tema e motivo na partitura de Debussy torna-se problemática, pois os arabescos, ornamentos curtos, estruturas motívicas independentes que parecem emanar da natureza elementar do som são verdadeiras gestalten. Portanto, indivisívies e dificilmente analisáveis. Mesmo linhas melódicas extensas mostram raramente na partitura de Debussy uma articulação clara e definida. Geralmente, parecem ser agrupamentos de dois e quatro compassos justapostos, sem causar tensão, de feição ondulatória, ou seja, feição caracterizada por movimentos ascendentes e descendentes. Acontece que o próprio Debussy se confessa contrário ao conceito de tema clássico que predomina e sobressai. Assim, surgem trechos longos, apresentando materiais atemáticos, por assim dizer, elementos fundamentais quase inapreensíveis, células submetidas a modificações contínuas sempre novas. Numerosas figurações fugazes e efêmeras, mudanças contínuas de andamento contribuem para o caráter intranqüilo e nervoso do movimento.
A dinâmica muda constantemente e sugere o movimento ondulatório, um verdadeiro jogo de ondas. O estilo de Debussy abstrai o puro colorido, o puro som, tornando as cores deslizantes e, por isso, os contornos incertos e oscilantes. São estas as características da postura impressionista, que teve sua origem na literatura francesa em Verlaine, Baudelaire e Mallarmé, e, principalmente, na pintura francesa, cujos mestres Manet, Monet, Corot e Renoir criaram obras imortais. O impressionismo musical deve ser compreendido por sua dupla posição: como reação ao naturalismo, ao racionalismo, e como fim do romantismo. A base do impressionismo de Debussy é a negação do objeto, do definido e determinado, da matéria como realidade. A fonte de luz dessa arte encontra-se fora da percepeção dos sentidos: nu metafísico. Os contornos se dissolvem, a clareza desaparece, a lógica e a forma encontram-se em perigo. Surgem novas relações interiores. O imaterial e o vago tornam-se forma. Desaparece a plasticidade das linhas melódicas. O conceito tradicional da melodia extensa e da harmonia definida dão lugar a fragmentos melódicos e manchas sonoras. A música aproxima-se do abstrato, daquilo que somente pode ser sentido ou sondado. A melodia já não cresce, mas desliza, é máxima passividade. Prélude à l'Après Midi d'un Faune, Nuages e o próprio poema sinfônico La Mer são símbolos de uma concepção passiva do mundo: "O pássaro abre o bico e canta seu trinado. E depois o bico retorna novamente ao seu silêncio. Assim, a natureza e o vivente encontram-se no vácuo, como o fechado bico do pássaro após seu canto. O ceú e a terra unem-se no não-iniciado. E tudo é tolice, tudo é desconhecido, tudo é igual. Às luzes de um idiota, tudo é sem mente. Obedecer quer dizer fechar o bico e cair no que não começou". (O silêncio sob o som.)
Olá José Galisi Filho,
ResponderExcluirque belo texto o do maestro Koellreutter... e não sei se o que vou dizer tem a ver com ele e o que seria coincidência: estava atrás do seu contato para uma pesquisa sobre a dramaturgia do Jayme Compri de quem você foi orientador de dramaturgia - conheci você e ele lá pelos idos de 1993... na Três Rios, lembra-se?
Sou o Luiz de Oliveira e atualmente curso direção teatral na UFRJ-ECO e tensiono encenar seu texto poético e difícil, o "Olimpo dos Orixás", como parte de conclusão do curso, talvez em 2013. O projeto de pesquisa está em duas frentes: um para um disciplina que curso neste semestre, Ética, outro como parte de uma orientação científica que pode se estender pelos próximos dois anos.
Bom, à coincidência: hoje fiz um tremenda caça ao seu contato e achei o Facebook e o link para este blog e no blog dou de cara com esta homenagem ao maestro Koellreutter - também tenho a transcrição deste último programa - tinha em fita cassete mas esta ficou com outro fã do músico, um de seus últimos colaboradores... Uma verdadeira aula de mestre, que viu longe... E na fita havia a locução da Regina Porto falando o texto do Tchuan Su, idealizadora da séria, que teve Décio Pignatari, acho que os irmão Campos, Lúcia Santaella, o maestro Júlio Medaglia, enfim - o programa do Koellreutter sobre Bach é outro primor, tratando da "Chiacone" e fazendo interações com Arnold Schoenberg, "Sobrevivente em Varsóvia"...
Então, acompanhei por estes anos suas matérias a partir da Alemanha, no "Mais" da Folha e ando lendo sua tese de doutorado na UNICAMP sobre o Heiner Müller - esta exige grande fôlego.
Gostaria de saber se você pode colaborar com a pesquisa responde algumas perguntas por email - tratarei do texto do Jayme, sua passagem pelo Boi Voador (vou entrevistar o Ulysses Cruz).
desde já agradeço,
grande abraço,
Luiz de Oliveira
ps. enviarei este texto também para seu email, certo?