Caderno 2, 6 de janeiro de 1996
Dramaturgo morto no dia 30 dizia que o teatro devia tornar impossível a política, arte do possível
José Galisi Filho
Especial para o Estado
O dramaturgo alemão Heiner Müller (1929, Eppendorf - 1995, Berlim) está morto. Seu corpo fará companhia a Brecht e Hegel no Cemitério de Chaussestrasse, em Berlim. Müller foi o mais importante discípulo de Brecht e, ao morrer, ocupava o mesmo posto de seu mestre como intendente do Berliner Ensemble. Como Brecht, Müller morreu na plenitude de sua carreira, tentando não ser legitimado pela empresa teatral mais poderosa da Europa.
Sua morte é um prejuízo estético de grandes proporções, pois Müller estava envolvido em vários projetos, entre os quais, uma peça em que procurava, finalmente, colocar frente à frente a amizade secreta entre dois dos maiores clowns do século: Hitler e Stalin, um amor tão forte e respeitoso que fez com que um se visse obrigado a reproduzir e ampliar os erros do outro. Heiner Müller não deixa herdeiros; nada poderá germinar à sua sombra em pouco tempo.
A última edição do ano da Theater Heute de 1995 era dedicada a sua última montagem, uma adaptação de A Resistível Ascensão de Arturo Ui, um texto adequado ao clima de banditismo, neoliberal da Alemanha reunificada e também um dos mais demagógicos do repertório de Brecht, sem dúvida bem além do distanciamento esclarecido e no limite da irracionalidade. Uma longa entrevista a Peter von Becker estampa um rosto esquálido, consumido pelo câncer. A certeza íntima da morte não impediu Müller de voltar ao trabalho, mesmo depois de ser operado no inverno passado e de lutar contra Peter Zadek pela intendência do Berliner Ensemble. Mas o tom não era mais o mesmo nas várias elegias me escreveu.
O teatro sempre representou para o benjaminiano Heiner Müller o "diálogo com os mortos". Várias são as epifanias ao anjo da História em sua obra, mas quando o presente se eterniza, sobretudo de nossa perspectiva na qual ele é cada vez mais colonizado por formas "ersätzen" (substitutas) de uma satisfação ilimitada no consumo, não resta mais nenhum intervalo para a rememoração e para um destino individual. Müller definia o instante de conhecimento e espanto da utopia artística como uma relação de não-identidade com seus materiais, "quando no espelho surge a imagem do inimigo". O comunismo somente existe na solidão do espelho e diante da morte. O resto é paródia e é por isso justamente que o "McDonald's repre-
senta a paródia da utopia comunista, a paródia do coletivismo, pois todos são iguais comendo a mesma merda". Somente na escala da morte individual é que o imperativo categórico do Manifesto de 1848 ganha sentido.
Sua herança é vasta e complexa: 40 peças, vários volumes de entrevistas, dezenas de ensaios, adaptações de clássicos que se impõem como referência, enfim, uma atividade intensiva que transita em todos os níveis do aparelho teatral e busca se emancipar da gravidade das ideologias. Se no Brasil Heiner Müller foi conhecido até agora apenas como dramaturgo (embora na Alemanha essa palavra tenha um sentido inteiramente distinto), sua reflexão teórica sobre o teatro e o mundo contemporâneo revela grande originalidade e serve de parâmetro à sua atividade artística, um dado que não pode ser desconsiderado pelos que pretendem conhecer seu repertório.
Müller é um artista essencialmente moderno e faz da exigência auto-explicativa e da consciência histórica condições de seu desempenho artístico. É nesse terreno instável de um presente que precisa extrair de si mesmo sua normatividade que transita sua reflexão, tornando-o um clássico contemporâneo e o dramaturgo alemão mais
encenado no Exterior.
A estréia de Heiner Müller como dramaturgo ocorreu em 23 de março de 1958 no Teatro Municipal de Leipzig com Der Lohndrücker (O Achatador de Salários). A peça já era um acontecimento literário antes de sua estréia e constitui a experiência mais radical de sua fase de autor empenhado da RDA. A primeira etapa de sua carreira seria bruscamente interrompida. Em 1961, 40 dias depois do fechamento da fronteira (a construção do Muro de Berlim, em 13 de agosto), Die Umsiedlerin oder das Leben auf dem Lande (A Espoliada ou a Vida no Campo) foi interditada antes de sua estréia. A liderança do Partido Socialista Unificado (SED) permitia-se um tratamento exemplar com as dissidências mais expressivas. 0 diretor da peça, B.K Trageiehn, foi condenado a dois anos de trabalhos forçados numa mina. A condição intelectual de Müller o poupou de uma punição física, mas não da execração pública e do ritual de autocrítica antes de ser expulso da Federação dos Escritores.
Esse ostracismo interno se prolongaria até 1972, quando Müller adapta para o Berliner Ensemble Zement (Cimento), peça inspirada no romance homônimo do russo Fedor Gladkov (1928). Graças a amizades, Müller conseguiu sobreviver adaptando clás-sicos gregos. É o início de uma relação profunda com as fontes de dramaturgia ocidental, aliando-se ao trabalho com o repertório de Shakespeare. Foi a montagem de Flloctetes, em 1969, no Teatro Residência de Munique, que lhe deu estabilidade financeira e alavancou seu trânsito no Exterior. Em 1974, a editora Rotbuch Verlag, de Berlim Ocidental, publica os dois primeiros volumes de sua dramaturgia reunida, as Geschichten aus der Produkiton (As Histórias da Produção).
As adaptações de seus textos na Alemanha Federal despertam gradualmente um interesse acadêmico pela referência permanente à história contemporânea e revigoram a própria germanística. Sua obra começa a se difundir na França e nos Estados Unidos e Müller inicia um périplo de viagens internacionais que duraria até o último ano de sua vida.
Dessas viagens, destaca-se sobretudo sua permanência nos Estados Unidos e o contato com uma escala espacial da paisagem natural e histórica que impregnaria seus próximos textos. O caminho de volta atravessa o México, palco do exílio da inteligência antifascista alemã, em especial de Ana Seghers. Desde a década de 60, Müller já demonstrara interesse em adaptar Das Licht auf dem Galgen (A Luz sobre a Força), epicentro da trilogia das Novelas Caribenhas, que tematiza o fracasso de uma missão do Diretório na propagação de uma revolta entre os escravos. O caráter convencional e estereotipado da novela de Seghers sobre a dinâmica do processo revolucionário era o alvo de Müller. Ao voltar à Alemanha Oriental, Der Auftrag (A Missão) já estava virtualmente concluída.
Müller apressou-se em encená-la, optando por um elenco desconhecido num exíguo espaço do Volksbühne de Berlim Oriental. Em 1982, Der Auftrag estreava no Bochum sob a direção de Matthias Langhoff, sem dúvida a mais virtuosíssima de todas as montagens de um texto de Müller. Dessa vez, todo o maquinário teatral colocava-se à disposição das amplitudes exigidas pelo texto, um espetáculo que, nas palavras de Müller, furtava-se "à visão integral do espectador".
A década de 80 foi dominada pelo ciclo dos Wolokolamsker Chaussee I — V (A Estrada de Wolokolamsker), "o percurso dos panzer de Moscou a Berlim e de seu lento retorno por Praga e Budapeste". Os dois primeiros fragmentos inspiram-se no romance homônimo de Alexander Beck. Os Wolokolamsker são um réquiem antecipado da RDA e uma tentativa de sincronizar uma experiência estética com o aprendizado histórico introduzido pela "gigantesca correção" iniciada por Gorbachev. Esse investimento na perestroika significava para Müller a última possibilidade de resgatar um socialismo democrático. Uma de suas teses subjacentes era o fato de o cerco do Exército Vermelho à Werhmacht, a osmose entre ambos, "envenenou" o socialismo, afinidade que reaparece na tentativa de Müller aproximar Hitler de Stalin. A questão é até que ponto no conflito não apreendemos os objetivos do inimigo e o interiorizamos quando o vencemos.
Nesse sentido, houve uma perspectiva "passiva" na 2a. Guerra Mundial e já na expectativa de ataque recíproco Hitler e Stalin estavam imbricados desde o início. Se por um lado Hitler foi o "parteiro" do estalinismo, o que hoje na "polêmica dos historiadores" aparece invertido, Stalin sempre teve Hitler como álibi. A vitória de Stalingrado significaria, dessa forma, o "fim da era soviética".
Müller colecionou todos os prêmios que um dramaturgo poderia receber. Destacaria, por seu sentido polêmico, apenas a recepção do Prêmio Büchner, em 1985, na presença de Richard von Weizsäcker, então presidente da República Federal, Müller leu um curto discurso que revolvia as feridas do Outono de 1977, quando, em meio a uma onda de ataques terroristas, o status quo da República Federal entrou em histeria, ameaçando restaurar instrumentos jurídicos do Estado fascista.
Finalmente, em 1990, Müller recebe o Prêmio Kleist, diante da encruzilhada da reunificação e de um presente cada vez menos discernível na colisão brutal de passado e futuro, talvez um dos textos mais belos que se produziram nos últimos anos sobre a Nova Ordem Mundial (leia texto ao lado). A metafórica de Müller refere-se à própria espacialização do fluxo temporal. Müller evoca fantasmas que vêm do futuro e na contramão do "trem da reunificação", expressão patética do chanceler Kohl.
Pouco a pouco. Müller legitimava-se como o mais nacional de todos os artistas alemães até assumir, no dia 11 de janeiro de 1993, a intendência do Berliner Ensemble em meio a um escândalo sobre sua suposta colaboração colaboração com o aparelho de segurança, a Stasi. A hegemonia dos comunistas do SED afirmou-se em sua primeira fase na RDA pela campanha contra o formalismo capitaneada por Walter Ullbricht, da qual Brecht foi alvo, e pela estalinização de todas as instâncias da vida cultural. À sombra do partido, surgiu um "aparelho cultural" que funcionou incólume até desabar em 1989. Essa máquina, nas palavras de Müller, estava sempre de prontidão para recuperar seu substrato paranóico, cuja atividade principal era a produção permanente de "inimigos de Estado", como descreve em Wolokolamsker Chaussee IV.
Reflexão — Historicamente, a liderança ou havia se exilado em Moscou ou apodrecido nas prisões nazistas. Portanto, em seu isolamento, a própria população lhe parecia suspeita de colaboração com o regime nazista, o que explicaria a ferocidade na repressão ao levante de trabalhadores em 17 de junho de 1953, em Berlim Oriental, contra um aumento das normas de produção pelo partido, reprimido por tanques soviéticos.
Esse é o dado essencial da reflexão de Heiner Müller, a promiscuidade dessa relação com o poder, formaliza¬da em seu texto mais apaixonado e seu testamento intelectual: Gundling (1976). A RDA foi "uma imensa corporação mafiosa entre população e partido", mas também uma "tragédia de burrice e servilidade".
Müller foi fiel à RDA, não ao regime do SED, foi fiel à sua existência como a memória de um fascismo sem perdão, sem a anistia moral e financeira dos aliados. Nem de longe estamos diante da defesa anacrônica do status quo anterior ao outono de 1989. O fim do socialismo real significou também o desaparecimento da idéia do Terceiro Mundo e dos nexos de dependência — reais ou imaginários —, entre a prosperidade e a miséria. "A noção mais elementar de justiça deixou de existir", afirmou Müller ao chegar a Nova York, no dia seguinte à queda do muro.
Müller compreendia o teatro como o "laboratório da imaginação social", uma afirmação de seu amigo, filósofo e professor da Universidade de Humboldt em Berlim Oriental, Wolfgang Heise, morto em 1987. Wolfgang teve grande influência intelectual sobre Müller. Essa assertiva implica uma consideração e crítica de seus pressupostos materiais, do aparelho teatro como instituição e seus limites, avançando gradualmente até o Espírito da Época (Zeitgeist)
História - Nesse sentido, a experiência dramatúrgica alude ao conjunto da experiência social como seu "órgão" de auto-reflexividade democrática, não apenas como decalque do existente, mas como instrumento de descoberta e extensão de suas possibilidades e do seu vir-a-ser, de suas reservas imaginárias. A política é a arte do possível, o teatro deve torná-la impossível", reiterava Muller. Em meio ao turbilhão de meios tecnológicos, o anacronismo da forma teatral permanece como uma das últimas formas de relação imediata de nossa espécie.
A leitura do "texto da História" é, portanto, sua tarefa intensiva e recorrente. A decodificação desse texto representa a necessidade de se desenvolver "uma consciência da História que seja também a consciência de si como sujeito", como já afirmara seu contemporâneo Volker Braun, a partir dos estratos que a compõem e que estão em permanente movimento. História para Heiner Müller significa a apreensão vital e orgânica desse dinamismo, do en-trechoque de suas camadas, configurando, enfim, o intervalo em que a percepção individual atinge os movimentos de conjunto e é por eles transformada, mas é também a produção de seu "inconsciente" e seus recalques e do esquecimento. "O espaço-tempo da arte está entre o espaço do sujeito e o espaço da História; a diferença é um teatro de guerra potencial."
O funcionamento desse relógio é muitas vezes paradoxal. Müller faz os ponteiros correrem sentido inverso, como se fosse possível zerar todas as camadas até desembocar no substrato mitológico e nas estruturas elementares que compõem a superfície do texto. Reduzido a seu grau zero, o presente torna-se refém da própria mitologia que o fecundou e pela qual é tomado de assalto, inundado e paralisado com as imagens obsessivas dessa mitologia.
Equilibrando-se entre a reflexão histórica, saturada de presente e articulada numa complexa noção de material artístico como "fragmento sintético" — um trabalho sobre as fraturas, descontinuidades e imprecisões das obras do passado, sobre a "inércia" que a revela em sua traditio —, e a necessidade de "olhar no branco dos olhos da História", como entende a capacidade política em seu sentido pleno, além da gravitação das ideologias e da política como esfera da instrumentalidade e engenharia socialmente eficaz, o olhar de Müller para o zênite da História é a ruptura de sua continuidade, a primazia da visão epifânica que transfigura e intensifica seus significados. Para Müller, esse instante não é produto do acaso mas, incorporando a noção de Carl Schmitt de seu ensaio Hamlet ou Hécuba: A Irrupção do Tempo no Jogo, a formação de uma constelação trágica pela irrupção do tempo empírico na cena. Essa intrusão implode a moldura formal, colocando em movimento camadas profundas da experiência histórica sob o chão do presente. Foi essa síntese impura que deu forma e consistência â sua dramaturgia.
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José Galisi Filho é mestre em teoria literária pela Unicamp com a dissertação "A Constelação do Zênite: Imaginação Histórica e Utópica de Heiner Müller - anos 70 e 80"
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