(P) As labaredas do sol aproximavam-se cada vez mais das incendiadas nuvens da manhã — finalmente, no céu e nos regatos, nos lagos e nas corolas orvalhadas nasceram centenas de sóis juntos, e sobre a terra flutuavam mil cores, e uma doce alvura irrompeu do céu.
(F) Partimos de La Guardia, Nova Iorque, com atraso de três horas devido às nevascas. Nosso aparelho era, como sempre nesse trajeto, um Super-Constellation. Preparei-me logo para dormir, era de noite. Esperamos ainda mais quarenta minutos na pista, neve diante dos holofotes, redemoinhos na pista... os motores rugiram, um depois do outro, num teste de força total. . . enfim, partimos.
(P) Na sua alma nasceu um sol sobrenatural, com aquele do céu. Em cada vale, em cada bosquezinho, sobre cada cimo, ele despia alguns dos anéis apertados do estreito casulo da vida e das penas invernais, desdobrou as asas superiores e inferiores, deixando-se balouçar com as quatro asas abertas no céu ao sabor da brisa de maio, abaixo das borboletas e por cima das flores mais altas.
(F) Quando tínhamos tomado a sopa, olhei pela janela, embora nada se visse senão a luz verde piscando lá fora na asa molhada, de vez em quando uma chuva de centelhas como de costume, a chama rubra no capo. . . Mais tarde, voamos por algum lugar sobre o Mississipi, a grande altura, em absoluta calma, nossas hélices brilhando ao sol da manhã; as vidraças das janelas, como sempre, a gente as via e via através delas; as asas também rebrilhavam hirtas no espaço vazio, nada de trepidação, jazíamos imóveis num céu limpo, um vôo como centenas de outros, os motores funcionavam bem. . . Ainda era cedo de manhã, conheço o trajeto, fechei os olhos para continuar dormindo.
(P) Mas com que força iniciava aquela vida agitada, fermentando e bramindo dentro dele, quando ele emergiu da mina de diamantes de um vale cheio de sombras e gotas, alguns degraus abaixo do portal celestial da primavera. Como quem saísse do mar, ainda molhado, um terremoto intenso empurrara para fora uma planura imensa, recém-criada, toda em flor, de impulsos e forças jovens — o fogo da terra ardia debaixo das raízes do amplo jardim suspenso, e -o fogo do céu baixova incendiando com seus tons os cumes e flores.
(F) Nossa estada no deserto de Tamaulipas, México, durou quatro dias e três noites, num total de 85 horas, sobre as quais pouco há para relatar — uma experiência grandiosa (como todo mundo parece esperar quando falo no assunto) não aconteceu. . . Naturalmente, logo pensei em filmar e peguei minha câmara, mas nem sinal de nada sensacional; de vez em quando, um lagarto que me assustava, uma espécie de arranha do deserto, nada mais.
(P) Só o bebê de colo da Mãe infinita, o Homem, estava sozinho com olhos alegres e claros na praça daquela viva cidade do Sol, cheia de brilhando de amor, e olhava em torno, ébrio, vendo todas aquelas incontáveis ruas. Mas sua eterna Mãe repousava envolta na imensidão e, só pelo calor que lhe atingia o coração, ele sabia que estava recostado junto ao seu coração.
(F) Muitas vezes indaguei a mim mesmo o que as pessoas querem dizer, afinal, quando falam em "experiências". Sou técnico, habituado a ver as coisas como são. Vejo muito atentamente tudo aquilo de que falam; não sou cego. Vejo a lua sobre o deserto de Tamaulipas — mais clara do que nunca, talvez, mas é uma massa que se pode calcular, que gira em torno do nosso planeta, um fenômeno de gravitação interessante mas o que tem isso de "experiência"?
(P) Quando saiu nova mente para o ar livre, ele viu aquele brilho dissolvendo-se em claridade, o entusiasmo em alegria. Cada telhado vermelho de igreja, cada torrente cintilante, soltando faíscas e estrelas, lançava luzes e cores intensas sobre a sua alma. Ouvindo, entre o sopro ruidoso e os bufidos das florestas, os gritos dos carvoeiros, o eco das chibatas e os estalos da queda das árvores derrubadas — e quando então saía e contemplava os castelos brancos e as estradas brancas, atravessando e cruzando o profundo vale verde como constelações e vias-lácteas, as luminosas nuvens naquele profundo azul — nenhum recanto nebuloso de sua alma, nenhum recanto encoberto ficava isento de sol e primavera, e sua alma teve de se lançar, entrar naquele coro de mil vozes, cantando e murmurando ao seu redor, e dizer com elas: a vida é bela, a juventude é mais bela ainda e a coisa mais bela de todas é a primavera. (1)
(F) Por que ficar histérico? Montanhas são montanhas, mesmo se sob outra luz pareçam diferentes... Mas estamos na Serra Madre Oriental, no deserto de Tamaulipas, México, a mais ou menos sessenta milhas da estrada mais próxima, o que pode ser complicado, mas por que seria uma "experiência"? Um avião para mim é um avião, não me parece um pássaro morto, mas um Super-Cons-tellation com avaria no motor, nada mais, e a lua pode iluminá-lo quanto quiser. Por que haverei de ter "experiências" onde não existe nada de especial? Nem consigo escutar nada parecido com eternidade; não ouço coisa alguma, exceto a areia rangendo a cada passo. (2)
Entre a viagem do advogado dos pobres Firmian Sibenkäs, de Kuhschnappel a Bayreuth, e aquela do engenheiro da UNESCO Walter Faber de Nova Iorque a Caracas, estende-se um século e meio. A diferença temporal e fenomenal entre os dois textos marca a evolução de um assunto do qual pouco sabemos, se nós o criamos ou ele nos dominou: o turismo.
Quando Jean Paul atingira o auge de sua fama, surgiu esse assunto e com ele seu nome. Os dicionários indicam o surgimento dos "turistas" em 1800 e, em 1811, o do "turismo". Esses neologismos devem-se à língua inglesa e, como se verá, não é por acaso.
O romance Homo faber, de Max Frisch, foi escrito em 1957. No século e meio de sua existência, o turismo não conseguiu atrair a atenção dos historiadores.
Sua história ainda não foi escrita. Mas impôs-se a idéia de que a história não se desenrola só na Corte, no campo de batalha, nos escritórios e estados-maiores, mas que o esquematismo da historiografia da Corte deve ser transposto para os acontecimentos culturais e espirituais, cujo surgimento desejamos afirmar. Voltaire foi colocado ao lado de Frederico o Grande, mas, como este, consiste em um penhor histórico situado diante da realidade. Temos uma história de povos. A das pessoas ainda não foi escrita; por isso o turismo, que é assunto de pessoas, ainda não tem compreensão histórica de si mesmo.
Em compensação há em nossa civilização poucos fenômenos tão generosamente cobertos de sarcasmo, tão continuamente criticados. Mas essa crítica é cega. Mais cega lá onde age de modo mais representativo, onde recebe uma formulação crítica artística e é enfeitada com a plumagem de uma metafísica de vôos curtos:
"O turismo ocidental é um dos grandes movimentos niilistas, uma das grandes pestes ocidentais, que tem quase o mesmo efeito maligno das epidemias do Centro e do Leste, mas é pior que elas em silenciosa perfídia. Os enxames dessas bactérias gigantes chamados viajantes recobrem as mais diversas substâncias com a mesma gosma cintilante e igual de Thomas Cook, de modo que por fim não se consegue distinguir direito entre Cairo e Honolulu, entre Taormina e Colombo... É preciso entender que a Veneza das galinhas-do-sight-seeing pertence à categoria dos bandos de saqueadores de Interlaken e Montreux, comparados aos quais Bochum e Nottingham não parecem apenas sólidos, mas até belos... Vi com especial clareza a força destruidora do turismo na parte superior de Engadin, essa magnífica fusão do mediterrâneo e do polar, esse equilíbrio de melancolia e alegria, com doçuras de cotovia, de ímpeto heróico e altiva pureza.
O ar é empestado pela cloaca Saint Moritz, o olho ofende-se com a cadeia de fábricas de conforto que estende-se ininterrupta até Maloja. . . (Aqui) a enfermidade européia irrompe numa cadeia de bolas de pus. Um país que se abriu ao turismo esconde-se metafisicamente — oferece um cenário, mas já não mais a sua força demoníaca". (3)
Essa manifestação de Gerhard Nebel não é citada aqui por ser original, mas, ao contrário, porque é bem característica da crítica contra o turismo que habitualmente se faz. É significativo primeiro que venha de um turista notório.
Sua crítica repousa, intelectualmente, numa falta de reflexão que raia a insensatez; moralmente, numa grande pretensão. A referência ao niilismo, que ninguém sabe ao certo o que seja, não ilumina o assunto: é apenas um atributo da moda, que serve para tudo e para nada. A falta de historicidade, de exame empírico do objeto de estudos, pretende ser compensada pelo uso de uma má metafísica. O tema, em vez de explicado, acaba sendo mitificado.
A denúncia do turismo, que confunde-se com sua crítica, é, aliás, muito antiga. Já em 1903 apareceu em Londres um livrinho escrito por um certo Shand, que era um turista muito apaixonado, e chamava-se: Viagens de antigamente, Reminiscências pessoais do continente há quarenta anos, comparados com a experiência de hoje. O livrinho dizia: "Há quarenta anos, havia hotéis confortáveis mas não havia uma multidão desconfortável... Naquele tempo turistas eram uma raridade e não havia em absoluto essa ralé de viajantes de hoje... No curso do último meio século, aconteceu uma transformação assustadora. O turista de outrora esfregaria os olhos se chegasse a Basiléia ou Genebra. Trens atravessam o país para todos os lados; pelo interior dos Alpes dinamitam-se túneis; instalaram-se teleféricos onde quer que os cumes mais altos ofereçam belas vistas; por toda parte surgiram hotéis gigantescos; simples cabanas de caça transformaram-se em confortáveis estalagens. Os prados da Europa foram inundados de pessoas fazendo sight-seeing e os santuários, sobre os quais reinava unicamente a sagrada noite do caos, estão profanados e rebaixados a parque de diversões das massas". (4)
O que pretende ser crítica é, aqui como lá, uma reação no duplo sentido da palavra. Socialmente, as duas vozes reagem à ameaça ou aniquilação de suas posições privilegiadas. Implicitamente exigem que viajar seja algo exclusivo, privilégio deles e de seus iguais. Não explicitam o que os diferencia das "galinhas fazendo sight-seeing" e da plebe barata. O conforto que eles próprios aceitam sem reclamar, quando atribuído àquela "ralé" torna-se pecado. A evolução técnica dos meios de transporte, aos quais o turismo deve sua existência, é amaldiçoada; em compensação, idealizam-se o primitivismo simples dos estados pré-tecnológicos, a "antiga noite do caos", cuja "força demoníaca" só o turista privilegiado "daqueles tempos" podia gozar.
Existe reação nesse tipo de crítica, não apenas no sentido social da palavra, mas também no psicológico. Não é por acaso que ela acompanha o turismo desde seus começos sem mudar grandemente seus argumentos; também não é acaso que as imagens contrárias que erige portam-se como textos de propaganda do turismo; acusando os que cedem aos seus encantos, Shand elogia a "bela vista" oferecida pelos cumes mais altos, "os campos desportivos da Europa", e os "santuários" da Suiça daquele tempo, cuja profanação é sempre atribuída a outros.
As líricas nebulosas do "equilíbrio de melancolia e alegria com doçuras de cotovia, de ímpeto heróico e altiva pureza" poderiam entrar perfeitamente em qualquer prospecto de viagem. A crítica ao turismo que ele apresenta, na verdade faz parte do próprio. Sua ideologia secreta, o preço que ele confere ao "demoníaco", ao "original", à "aventura", ao "virgem", tudo isso é parte daquilo que o turismo usa como propaganda. A decepção com a qual o crítico reage, responde à ilusão que ele partilha com o turismo.
O desmascaramento de seus críticos pode nos fornecer indicações para a compreensão do movimento turístico, mas não a pode fundamentar. Se é correto que o fenômeno com o qual lidamos se pode fixar nos últimos 150 anos, essa frase tem de ser comprovável por uma contraprova. A viagem é dos mais antigos e generalizados fenômenos da vida humana; podemos segui-la até às antiguidades míticas. As pessoas sempre viajaram; com que direito pode-se isolar historicamente o que chamamos turismo, separando-o, como algo particular, daquilo que sempre existiu?
Sempre existiu miséria, sempre existiram coerções biológicas e econômicas forçando os homens a emigrar. A marcha dos nômades têm causas geográficas e climáticas. O desejo de viajar jamais foi motivo de expedições guerreiras dos povos antigos. As primeiras pessoas que partiram para longe, por decisão própria, foram comerciantes. No hebraico antigo, as palavras "comerciante" e "viajante" eram sinônimas. Com uma única exceção (que ainda vai nos interessar), desde os começos dos tempos até o século XVIII, toda viagem era sempre assunto de diminutas minorias, submetida a motivos específicos e práticos. Soldados e mensageiros, estadistas e eruditos, estudantes e mendigos, peregrinos e criminosos eram os que se encontravam nas estradas, mas sempre, e especialmente, comerciantes: especiarias e mirra, ouro e seda, armas e pérolas.
A viagem como aventura, como fim em si, era desconhecida até boa parte do século XVIII. O próprio Odisseu, imagem mítica de todos os futuros viajores, chama-se no poema de "magnífico sofredor".
"Quem se desviou tão longe depois da destruição da sagrada Tróia,
Viu cidades de muitas gentes e aprendeu costumes, E no oceano suportou tantos males indizíveis;. .. Mesmo quando se aproxima o ano, no círculo dos tempos Em que os deuses lhe haviam determinado regressar a ítaca, o Herói ainda não cumprira sua cansativa rota, nem estava entre os seus. Os deuses choravam por ele." E esse "sofredor resignado e amedrontado" "... que se consome tanto tempo longe dos seus. . . Anseia por ver ao menos a fumaça subindo das colinas familiares de Ítaca para depois morrer!". (5)
A distância é o exílio, viajar é vagar, a "rota cansativa" é um só exílio — e assim continua sendo até os dias de Robinson Crusoé. A nostalgia sentimental é uma categoria romântica. O brilho que hoje envolve o período heróico dos descobrimentos é uma ilusão de perspectiva. O inglês Candish, um dos primeiros a fazer a volta ao mundo num veleiro, relata depois de seu retorno: "o Todo-poderoso quis que eu fizesse a volta a todo o globo terrestre. . . Nessa viagem descobri todos os lugares ricos do mundo, que a cristandade pode conhecer, ou pelo menos obtive a seu respeito informação segura. Velejei ao longo das costas do Chile, Peru e Nova Espanha e consegui muitos despojos. Queimei e afundei dezenove veleiros grandes e pequenos. Todas as aldeias e cidades em que atraquei foram por mim saqueadas e queimadas". (6)
Só um período pós-romântico projetou sobre os descobridores e conquistadores suas próprias fantasias e desejos. O objetivo desses homens não era satisfazer nostalgias; era bem mais concreto. Eles eram instrumentos da política. Só mais tarde o turismo lhes conferiu essa aura, com que ele próprio se rodeou nos seus começos.
No curso do século XVIII, começou a afrouxar o severo pragmatismo das viagens. Já antes, as viagens dos cavaleiros a Cortes estrangeiras faziam parte da formação dos jovens nobres; nos meios mais distintos, a viagem para tratamento numa estação de águas era coisa de decoro; os dois motivos começavam a perder seriedade e importância naquele tempo, sem porém tornarem-se meros pretextos. Eles atuam no desenvolvimento do turismo até hoje, embora os objetivos "educacionais" tenham se alterado completamente; para o jovem cavaleiro, o mundo que precisava ser conhecido era le monde, ou seja, a sociedade distinta e não um cânone de monumentos culturais.
A alta valorização de lugares turísticos como Baden-Baden, Spa e Aix-les-Bains, ainda hoje testemunha a continuidade daquelas antigas viagens para banhos.
Assim, ainda em 1792, um representante das ciências econômicas, na época uma disciplina jovem, sugeriu com toda a gravidade um imposto de viagem. Marperger, seguidor da doutrina mercantilista, sugeria tal idéia em seus Comentários sobre a Viagem a Países Estrangeiros, uma vez que os viajantes estavam levando o bom dinheiro para fora do seu país. Essa preocupação faz pensar que o volume de viagens começava a expandir-se naqueles tempos.
As puras viagens de divertimento não deviam estar muito difundidas até então. O manual de viagens mais divulgado da Europa naquele tempo, Guide des Voyageurs, de Reichard, não aponta nem belezas naturais nem coisas dignas de se ver e fornece, com absoluta objetividade, as rotas mais curtas, diligências e preços, possibilidades de hospedagem e prescrições oficiais; em suma, considera a viagem como um mal necessário. Não admira! Depois de um dia nas estradas, em diligências, o viajante estava moído, se é que chegava à sua meta. Reichard lhe recomendava insistentemente levar sempre pistolas carregadas. Seu manual apareceu dez anos depois dos Bandoleiros de Schiller. Outros conselhos sugeriam aos viajantes, antes da partida, mandar rezar uma missa pelo êxito de sua excursão. Não eram incomuns os assaltos nas estradas.
Quarenta anos mais tarde, viajar tornara-se algo bem diverso. Nascera o turismo. O inglês John Murray viajou pelo continente colecionando material para a sua bíblia. Ela apareceu em 1836 e tornou-se famosa no mundo todo; o primeiro Red Book assinalava as curiosidades da Holanda, Bélgica e Renânia e recomendava ao turista as rotas mais românticas e pitorescas. Murray, um dos profetas do turismo, foi também o inventor do sistema de estrelas que marcava os objetivos que deveriam ser visitados, com seus respectivos preços. Três anos depois surgiu o primeiro guia de viagens de Karl Baedecker, com Die Rheinlande (As Renânias). O novo movimento tinha seus textos sagrados e iniciara seu cortejo vitorioso.
Esse cortejo não fora casual. Foi possibilitado por uma situação histórica bem específica. Basta, para nossos fins, apresentar seus componentes. Podemos deixar em aberto qual deles deve ser considerado como "causa última" suspensa, se é que essa questão é passível de se resolver.
Descrevemos a situação histórica da qual nasceu o turismo como uma síndrome de traços políticos, sociais, econômicos, técnicos e intelectuais, cujo denominador comum é a sua natureza revolucionária.
A vitória da revolução burguesa implantou no indivíduo uma consciência de liberdade, que começa na sociedade da qual essa revolução brotara. Cada abertura revolucionária da ordem social tende a fechar-se novamente, mas deixa uma lembrança que já não consegue se harmonizar com a consolidação restauradora: uma cicatriz permanente na consciência. À revolução política correspondia uma revolução no modo de produção. A nova classe reinante, a burguesia, organizava o mundo do trabalho industrial e o mercado mundial condicionado àquele mundo. A nova situação não levava a uma homogeneidade social mas espacial. O progresso tecnológico, especialmente a invenção da ferrovia e do navio a vapor, permitiu ao capitalismo a instalação de uma rede de transportes necessária à homogeneização espacial.
Nesta altura, a exceção histórica de que falamos torna-se compreensível. Essa exceção é a Roma Imperial dos últimos tempos. Nos últimos séculos do Império Romano, houve realmente algo parecido com o turismo, antes do turismo. Frielander conta em sua História dos Costumes de Roma (Sittengeschichte Roms) que o volume de viagens daquele tempo nunca foi ultrapassado na Europa até o século XIX. Da praia da Toscana ao Golfo de Salerno, a costa ocidental italiana era uma grande praça de jogos de turistas. Villas de mármore e hotéis luxuosos recebiam os hóspedes. A Grécia, Rodos, Ásia Menor e Egito eram metas preferidas para viagens de descanso. Havia sólidas linhas marítimas, agências de viagens, casas de câmbio e festivais; até o interesse por museus, característico de nosso turismo moderno, já aparecia naqueles tempos.
Em muitos sentidos, aquele início turístico antigo pode-se comparar ao moderno. Na sociedade romana, dentro de determinados limites ocorreu uma tendência igualitária. Em certa medida, houve um aburguesamento. Seus traços capitalistas são conhecidos. Tanto as condições políticas quanto econômicas exigiram uma homegeneização espacial do Império, obtida tecnicamente com a construção da grandiosa rede de estradas romanas, cujos vestígios ainda reconhecemos em toda a Europa até o Limes. Em contrapartida, faltam ao turismo romano os traços revolucionários. É um turismo de minorias. Nem os estímulos políticos nem tecnológicos bastaram para estendê-lo a todos. Sobretudo porém, as raízes espirituais eram bem mais débeis do que as do turismo moderno.
Essas raízes estavam no romantismo inglês, francês e alemão. Autores como Gray e Wordsworth, Coleridge e Byron; Rousseau e Chateaubriand; Seume e Eichendorff, Tieck e Wackenroder, Chamisso e Pückler retrataram a liberdade que ameaçava ser sufocada sob a imposição do mundo do trabalho nascente e da restauração política. Sua força imaginativa a um tempo traiu e preservou a revolução. Ela transfigurou a liberdade e fê-la recuar aos limites da imaginação, até que ela cristalizou-se espacialmente na imagem da natureza distante da civilização, temporalmente na imagem da história passada, tornando-se folclore e monumento. Estas, a paisagem intocada e a história intocada, são as imagens-guia do turismo até hoje. Ele não é senão a tentativa de concretizar o sonho romântico projetado na distância. Quanto mais a sociedade burguesa se fechava, mais o cidadão tentava esforçadamente dela escapar como turista.
Essa fuga de uma realidade criada por eles mesmos era facilitada pelos próprios meios de comunicação, com ajuda dos quais essa realidade se efetivava. Atrás do febril entusiasmo com que nos anos 30 e 40 do século passado se construíram as ferrovias inglesas, há mais do que o mero zelo especulador dos capitalistas.
A mania ferroviária já revela o intenso desejo de escapar aos locais de moradia e trabalho, da revolução industrial.
Mas o que a rede de meios de transporte pareceu permitir, ao mesmo tempo frustrou. Com a solidificação dessa rede, que parecia abrir-se para os turistas, a sociedade logo se fecha outra vez. Como o ouriço da lenda que aguarda sarcasticamente a lebre ofegante no fim da pista de corrida, da mesma forma ocorre a rejeição do turismo. Essa dialética é o motor de sua evolução; pois longe de desistir resignadamente da corrida pelo prêmio da liberdade, ele redobra seus esforços depois de cada derrota.
O avanço do turismo inglês ante as outras nações, em todo o século XIX, prova como» é estreita a relação do turismo com a civilização industrial. Já antes da virada do século, os ingleses eram os viajantes por excelendo. (7) São testemunhos da mania inglesa de viajar, tanto as viagens italianas de Keats e Shelley como as façanhas pioneiras de Byron, que deve ser considerado o arquétipo do turista moderno. Ainda em nossos dias podemos ouvir a expressão lordoi para turistas, em regiões campestres da Grécia. A Suíça deve sua antiga fama como terra de turismo inteiramente aos ingleses.
Papel-chave na história do turismo têm os alpinistas. O nascimento do alpinismo data de 1787. Naquela ocasião, Saussure foi o primeiro a escalar o Mont Blanc. Mas só setenta anos depois começou a era de ouro dos alpinistas. Os ingleses lideraram o movimento. Mais ou menos há cem anos, Edward Kennedy fundou o Alpine Club, primeira associação de alpinistas: iniciativa inglesa!
O papel-chave do avanço alpinista se deve ao fato de que ele personifica com especial pureza a ideologia romântica do turismo. Ele dirige-se ao "elementar", ao "intocado", à "aventura". Não importa que nome se dê ao objetivo, a dialética do processo não muda: à medida que ele é atingido, é aniquilado. Não é por acaso que o desempenho turístico assemelha-se aos métodos do esporte competitivo. Como o intocado só pode se tornar presente pelo contato, trata-se de ser o primeiro. Assim a viagem vira competição pelo primeiro lugar, a fim de bater o recorde. O herói romanesco de Verne, Phileas Hogg, aposta sua honra em fazer A Volta ao Mundo em 80 Dias. Até os satélites que disparamos para o céu correm atrás desse recorde.
Também os que viajam para fazer descobrimentos tornam-se turistas. A aura romântica que só a posteriori foi conferida aos antigos descobridores, hoje já lhes é atribuída em vida. As manchas brancas no mapa fascinam o pesquisador como os picos nunca escalados fascinam o alpinista.
O século tomou a si a tarefa de aniquilá-los. Os homens que a assumem, de Livingstone a Hillary, são festejados como heróis. Os venezianos do século XIII, porém, só tiveram desprezo e zombaria para seu contemporâneo Marco Polo. Não entendiam o que o podia ter levado a transformar o inatingível em meta, por isso consideravam-no um farsante.
Hoje, ao contrário, os russos preparam uma expedição ao pólo inatingível do Antártico, cuja única e totalmente abstrata singularidade reside na dificuldade em alcançá-lo.
O intocado tornou-se uma mistificação ideológica. Até a mais trabalhosa expedição às mais remotas regiões da terra é por princípio, hoje, uma arte turística e, ainda antes do primeiro ser humano avançar no espaço já apresentavam-se os primeiros turistas da astronáutica.
Como os pioneiros logo tiveram de reconhecer, em geral a contragosto, seu papel não foi privilégio exclusivo. A sociedade, cujo interesse eles representavam, perseguia-os com os seus próprios. Os que lhes davam gloria já estavam nos seus calcanhares. A burguesia emancipada recobriu-os com um nimbo que esperava obter para si mesma, preciptando-se na repetição dos seus feitos, chamada de turismo.
A liberdade que pareciam ter conquistado nas rochas das montanhas de Berna, no gelo das calotas polares, nas selvas equatoriais, em breve seria exigida por todos como um novo direito humano.
É verdade que os seus sucessores turísticos não estavam dispostos a pagar o alto preço daquela liberdade. O novo direito humano, de libertar-se da civilização fugindo para longe, assumia os traços inofensivos de uma viagem de férias.
Os turistas até hoje insistem inutilmente nos valores do aventuresco, elementar, intocado. A meta deve ser a um tempo atingível e inacessível, distante da civilização mas confortável. Visita-se o deserto no ônibus Pullman, a tundra da Lapônia em vagão-leito. O pólo Norte é comodamente filmado das janelas do Super-Constellation.
No deserto de Tamaulipas, a "experiência" desejada por essa perseguição frenética evapora sob o olhar frio do Homo faber.
É verdade que o novo direito humano, como sempre, não tem validade para todos, mas apenas para a classe que o inventou e o impôs: a burguesia independente, que vive dos lucros de seu capital. Mas um direito desses, uma vez postulado, não pode ser isolado. Ele tende, pelo contrário, à mistura e à homogeneização da sociedade. Entre a tendência igualitária que proporcionou à burguesia a sua vitória, e depois sua derrocada, e a possibilidade universal de trocas provocada pelos novos meios de transporte existiu e existe um efeito recíproco. Os pressupostos do turismo são ao mesmo tempo efeitos e seus efeitos, pressupostos para uma segunda expansão, como corremte e campo magnético reforçam um ao outro no circuito. Depois da alta burguesia, o processo atingiu outras camadas, primeiro os funcionários, artesãos, pequeno-burgueses. Entre o nível das forças produtivas e a evolução do turismo podemos constatar correspondências perfeitas.
Também aí a Inglaterra lidera. Thomas Cook, jardineiro e marceneiro, organizou, em julho de 1841, para os membros de sua associação de abstêmios, uma viagem entre Loughborough e Leices-ter. Quatro anos mais tarde, fundou a sua agência de viagens que em três décadas se ampliaria, tornando-se uma organização mundial. Na Alemanha, a primeira agência de viagens servindo ao turismo surgiu apenas em 1863, portanto, com mais de vinte anos de atraso. É característico, além do mais, que Louis Stangen servisse exclusivamente às esferas privilegiadas em Berlim. Sua primeira promoção foi uma excursão à Suíça saxônia; mas já um ano após a fundação, a agência de viagens Stangen ofereceu uma viagem em grupo ao Egito e à Terra Santa. Em compensação, o trabalho de Cook, desde o início, destinou-se a satisfazer as necessidades de um grande público pequeno-burguês. Tal público, que encarava a viagem "descompromissada" como necessidade e possibilidade, só existiu na Alemanha pelo fim do século.
Excluídos da febril expansão do turismo ficaram, de um lado, os camponeses, que até hoje resistem, como única camada social, à sua ideologia e prática, e de outro lado os trabalhadores, que em última análise se responsabilizavam por seus custos. Só depois da Primeira Guerra Mundial, o operariado conquistou a possibilidade de fugir ao menos por algumas semanas da terrível pressão do mundo do trabalho industrial, pelo menos aparentemente. Enquanto empresários e professores, funcionários públicos e médicos, artesãos e comerciantes, há muito tinham reconhecido no turismo a oportunidade de voltar as costas às trevas de Birmingham e Glasgow, Wuppertal e Bochum, os verdadeiros sofredores pela acumulação primária continuavam prisioneiros do desolado cárcere das cidades e da miséria dos quartinhos de aluguel. Até o dia de hoje, em muitos países, não existe uma lei generalizada de férias, como, por exemplo, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Só depois da Primeira Guerra, as férias pagas tornaram-se aos poucos parte integrante dos acordos salariais entre empregadores e sindicatos. (8) Ainda em 1940, só um quarto dos trabalhadores americanos gozava de férias pagas. Em 1957, esse número chegou a 90 por cento. Regulamentações legais de férias existem na Alemanha, França e países escandinavos. *
A luta pelo direito a férias foi dura e arrastou-se por décadas a fio. Cada vitória parcial fortalecia a consecução do objetivo de se obterem férias. Se nas cidades industriais a pressão em favor das férias pagas crescia, aumentava igualmente a pressão contrária. Na Inglaterra densamente povoada, locais como Brighton ou a famigerada Blackpool tornaram-se sinônimos de dilúvio humano. Nas praias de banho, já antes da Segunda Guerra, deitavam-se lado a lado, mais apertados do que nos cortiços, os turistas em busca de repouso, e os trens de férias estavam apinhados como o metrô nas horas de pico do trânsito.
Há muito a vitória do turismo provara ser uma vitória de Pirro, há muito a nostalgia de distância e liberdade fora dominada pela sociedade da qual emanara. A libertação do mundo industrial estabelecera-se ela mesma como indústria, a viagem para fora do mundo do comércio transformara-se ela própria em mercadoria. Quando um crítico da categoria de um Gerhard Nebel apostou na beleza de Bochum e Nottingham contra o "monte de lixo" de Inter-laken e Montreux, tentou apenas substituir um fenômeno do mundo do trabalho pelo seu complementar. O contraste é fictício. Com o mesmo direito pode-se tentar envergonhar uma siderúrgica compa-rando-a com uma mina de carvão.
O progresso do turismo, que é ao mesmo tempo o progresso no seu controle, pode ser representado por três conquistas, todas indispensáveis ao desenvolvimento de uma indústria em grande estilo: regras, montagem e fabricação em série.
A regulamentação das metas de viagem começa com a invenção do "guia de viagens". O Red Book de Murray, de 1836, já dirige o fluxo de turistas para canais predeterminados. Essa orientação, no começo, ainda se submete livremente aos viajantes. Ela condiciona psiquicamente o viajante, através do livro, mas não ainda fisicamente. O elemento fundamental regulador da viagem é o sight, o que merece ser visto, classificado com uma, duas ou três estrelas, conforme seus méritos.
O conceito da atração turística é de grande importância e merece uma análise atenta. Dela depreende-se primeiro que o turista tem certos remorsos. O descompromisso de uma viagem, que só a ansiada liberdade garante, mostra-se falso, pois o que merece ser visto não apenas merece ser visitado, mas o exige, e de maneira imperiosa. Atração é o que tem de atrair. Cumprindo esse dever, o turista paga a dívida que secretamente sente assumir por estar fugindo da sociedade. Com essa obediência, ele reconhece que não suporta a liberdade que pretende procurar.
O que assim constitui-se em atração turística são as imagens remotas que o romantismo elegeu como representativas da Natureza e História. Essas imagens se cristalizam, resumindo-se ali em Zoológico e Jardim Botânico e aqui em Museu. Os nomes representativos das instituições e idéias do século XIX podem ser trocados entre si. Se o turista, com ajuda do seu manual, considerar a Roma Antiga um zoológico histórico no qual pode encarar sem perigo e sem castigo as feras da história, a paisagem marcada pela dupla estrela no seu regimento será objeto de uma contemplação de museu. Hoje sua agência de viagens lhe consegue caçadas de búfalo na África, shikars de tigre na índia e caçadas de renas na Lapônia. No safari fotográfico de Etoscha, o professor de Zoologia comenta os sights da natureza; diante dos participantes de um vôo de 24 dias pela África, dançam Watusis e negros com lábios furados,
enquanto etnólogos conhecidos fazem seus comentários, os presentes escutam, atentos, com a mesma devoção de meninas de colégio que chegaram às pressas para ouvir um historiador num seminário. Hoje em dia, a demanda de atrações supera a oferta. Se o século passado se restringia ao material constituído de museus e zoológicos, nosso século produz sinteticamente essas raridades, segundo desejo dos turistas. Toda a sorte de coisas que os atraiam são oferecidas, desde festivais a cabanas de lapões imitadas.
Essas atrações só se tornam elas mesmas na abstração em que, liberadas de toda contingência, passam a ser um absoluto turístico. No estado americano de Kansas, ao norte, perto da estrada federal 281, há uma pequena encosta bem cuidada, em torno de uma pedra onde está escrito: "Este é o centro geográfico dos Estados Unidos". Na estrada, feita para chegar à pedra e que conduz unicamente a ela, apinham-se carros de turistas para os quais essa visitação tornou-se regra.
Mas para a organização industrializada de viagens não bastam as regras. Esses elementos, normatizados, precisam ser montados. O invento mais representativo para esse passo é o carnê de viagens e o cheque de viagens. Também essa idéia nasceu da mente do incrível Thomas Cook, em 1868. A firma enfileirava os monumentos para o turista, formando um roteiro, e garantia-lhe o resgate dos papéis que lhe davam direito a seguir essa rota. A aventura era agora um preparado do qual excluía-se qualquer risco.
Mas a nova indústria ainda não estava satisfeita com esse produto, regulamentado e montado. Era caro demais, enquanto tinha de ser produzido peça a peça isoladamente. Como todo bem de consumo, também a viagem precisava ser produzida em série, caso a indústria do turismo quisesse firmar-se no mercado. Mas afirmar-se significava expandir-se. O turismo coroou sua vitória, a derrota do seu sentido humano, ao inventar a "viagem em grupo". Quem o faria senão o bravo Cook? Ele nem podia adivinhar o que estava fazendo. Dedicou ao turismo o mesmo zelo missionário que antes dedicara ao combate do demônio do álcool. Entre o Bem e o Bom Negócio, a sua ética de homem honesto não via nenhuma contradição. Em 1845, ele organizou a primeira viagem em grupo para diversão turística. Parecia um cortejo triunfal. Tudo cuidadosamente preparado. Todos os locais por onde passava tinham sido previamente visitados por Cook. Havia quartos de hotel preparados para cada participante. Um programa impresso instruía os membros da excursão sobre como melhor desfrutá-la. Foram recebidos na chegada com tambores e Miros de morteiro. A invenção da viagem em grupo completou os métodos de produção da indústria do turismo. Não havia mais como segurar esse processo; começara a produção em massa. Ainda nos anos 70, partiu a primeira viagem em grupo ao redor do mundo.
O turismo, inventado para libertar seus seguidores da sociedade, levava-a consigo na viagem. A partir de então, seus participantes liam, no rosto dos vizinhos, o que tinham tencionado esquecer. Naquilo que viajava com eles espelhava-se o que haviam deixado atrás. O turismo é, desde então, o reflexo da sociedade da qual se procura escapar.
Parece inconfundível nesse reflexo a trajetória do capitalismo clássico tardio e deste para a constituição totalitária da sociedade. O intocado é "capitalisticamente aberto" a todos, totalitariamente "exposto". Aparecem analogias militares.
O turismo parodia a mobilização. Seus quartéis-generais parecem estados-maiores onde os movimentos de tropas são pré-calculados. Se o guia de turismo dos bons velhos tempos ainda era um espírito profissional, o guide de hoje já faz cara de chefe cujo comando não se torna menos oficial pelo fato do comandado estar pagando por ele.
O guia de viagens assume por fim traços de um guia de comboio, cuja autoridade é igualmente desejada e temida pela sua coluna. Inopinadamente a teimosa viagem, gênero "conheça e divirta-se", transforma-se numa deportação humilhante; atrás dos alojamentos de férias, erguem-se, invisíveis, as torres de vigia daqueles outros acampamentos pelos quais a nossa era tem de se responsabilizar.
O impulso revolucionário que tornou o turismo um fenômeno mundial foi cego demais, para divisar a sua dialética, e vigoroso demais, para adaptar-se à frustração que é o seu destino. Em investidas sempre renovadas, o turismo tenta encarniçadamente sair do círculo vicioso que é sua lei de vida e com isso romper suas algemas. Mas fracassa todas as vezes.
O movimento jovem alemão é talvez a mais característica dessas tentativas. Protestando não apenas contra o mundo dos adultos, pelo qual tomavam a sociedade, mas também contra os meios turísticos disponíveis para uma fuga ilusória, a juventude renunciou, decidida, ao conforto, e se pôs a caminho com mochila, panelas e barraca.
Programaticamente excluíam-se os meios técnicos de viajar. Artificialmente foram reunidas as duas condições de uma aventura "legítima". Pela lealdade com relação a ela, como se nada tivesse acontecido desde então, mais uma vez contestou-se o esboço romântico de liberdade. A fuga do turista em pacotes apenas potencializa tal contestação. Como mero invólucro, a liberdade dos movimentos de juventude pode ser anexada facilmente a objetivos fascistas.
A pretensa independência dos companheiros da Juventude Hitlerista já estava sob a lei daquelas outras excursões que mais tarde seus membros fariam para Stalingrado e a Sibéria.
Sem muito refletir quanto aos seus protestos, inofensivo em seu fracasso, permaneceu contrário outro movimento contra a perversão do turismo. Seu disfarce ideológico assemelha-se, com efeito, ao do Movimento da Juventude; o "movimento" do camping cresceu sob os lemas de ligação com a Natureza, afastamento da civilização e liberdade.
Mas este movimento se entregava aos lemas de cuja divulgação já cuidavam os fabricantes dos utensílios indispensáveis a esses campings, sem fanatismo, muito antes com aquela resignação cansada que é a reação própria que se adquire contra os slogans da propaganda. Com regras policialescas para as barracas, locais obrigatórios de camping, normas e chefes de acampamentos, água corrente e tomada para barbeadores elétricos, rapidamente o camping evoluiu ad absurdum. Hoje, dizem que já está démodé. Preferem-se aldeias de chalezinhos. Mas nada mudou no discutí¬vel cerne da coisa.
Uma tentativa radical de romper as fronteiras do turismo aparece nas reflexões de promotores e turistas inteligentes, que pretendem acabar com o sagrado cerimonial do sight-seeing. Pretendem colocar em seu lugar, como dizem, o life-seeing. Saber como vivem de verdade as pessoas que visitamos, torna-se o novo objetivo dos interesses turísticos. O lado comercial dessa atraente sugestão é transformar em virtude a necessidade de hospedagem que a chegada de turistas sempre provoca. Em vez de hotéis, mora-se em casas particulares de cujo cotidiano se pretende participar. A virtude da hospitalidade deve retomar seus velhos direitos. Também essa tentativa, fiel à dialética do turismo, traz em si mesma um fracasso. A virtude que se deseja praticar é eliminada na medida que é exigida. Turismo é o bode que a espantou; o turismo não serve para seu jardineiro. Enquanto a viagem era uma andança errante, um exílio, a hospitalidade era mantida como asilo; quando o turismo tornou-se diversão voluntária, as portas se fecharam. Construíram-se as catedrais do turismo: os hotéis.
A história do turismo é também a história dos hotéis. A primitiva precariedade das estalagens medievais e o pragmatismo modesto das antigas hospedagens-posto-de-correio não bastavam para o novo movimento. Os monumentos arquitetônicos que ele construiu colocaram na sombra tudo o que outrora servira para abrigar os estranhos. O primeiro hotel moderno foi o Badische Hof, construído em Baden-Baden nos primeiros anos do século XIX. Uma complexa hierarquia de administradores, porteiros, maîtres, garçons, servidores, pajens, criadas de quarto e criados de toda sorte serviram ali pela primeira vez à opulenta engrenagem de salas, salões de festa, salões de refeição, salas de leitura, quartos de dormir e de banhos, terraços e jardins de inverno. O modelo do Badische Hof de 1805 continua sentindo de padrão até hoje. Hotéis de estação ferroviária, construídos segundo o seu modelo, substituíram as velhas estalagens nas estações da diligência. Quanto mais o turismo progredia sob o signo do alto capitalismo, tanto mais a indústria hoteleira apropriava-se de suas formas econômicas. Em 1850, inaugurou-se em Paris o Grand Hotel, primeiro empreendimento do ramo a assumir a forma jurídica de sociedade anônima. A progressiva concentração de capital levou, já em 1880, à fundação do primeiro truste de hotéis, a cadeia Ritz. Na virada do século, surgiram nos Estados Unidos os primeiros hotéis-mamute, com quinhentos apartamentos ou mais.
Na velha casca do hotel, segundo o modelo de Baden-Baden, nada mudara e ela é reveladora para a psicologia do turismo. O hotel é o castelo da alta burguesia. Nele a nova classe usurpa ostensivamente as formas de vida da aristocracia. Seu ambiente é o luxo desenfreado. Enquanto o verdadeiro aristocrata detesta viajar só por viajar, como o camponês, o burguês arrivista exibe, como viajante, o que em casa não consegue ter. A liberdade para a qual ele pensa fugir como turista não é apenas histórica ou espacial, mas também a fuga para uma forma de vida que julga socialmente mais elevada. Ele não procura apenas a História como Museu ou a Natureza como Jardim Botânico, mas a ascensão social na forma de high life.
Ao lado das atrações turísticas, aparece como meta da viagem o prestígio social. No cálculo do preço da mercadoria, através da qual a viagem pretende ajudar a sair do mundo mercantilista, a marca comercial ainda desempenha papel decisivo. Como a marca de um perfume aumenta seu valor e praticamente o determina, assim o nome de uma meta a atingir determina o preço da viagem. A aura com a qual o romantismo envolveu o homem viajado cristaliza-se numa marca comercial, garantindo o caráter fetichista do roteiro. Esse caráter aparece mais vivamente no fetiche do souvenir. Como plaquinha de metal na bengala, como etiqueta na mala, como adesivo no carro, como "certificado de batismo" no Equador ou no Pólo assegura o turista contra qualquer dúvida a respeito de sua experiência, dúvida que o assalta como assaltou a Walter Faber, e lhe concede uma prova na hora do retorno.
Do programa da viagem turística faz parte, por último, a volta à pátria, que transforma o próprio turista em uma atração. O que sua ideologia lhe apresenta como "distâncias ainda intocadas" é algo que ele não precisa apenas tocar, mas divulgar. Os que ficaram em casa exigem que ele lhes fale de suas aventuras. Nas suas fanfarronadas, supera-se um antiquíssimo traço das viagens de qualquer época, ou seja, mantém-se tal traço e ao mesmo tempo anula-se. Trata-se dos tempos antigos, onde a boca de um homem viajado era a única fonte segura de conhecimento das coisas distantes. Em contrapartida, hoje o turista que regressa relata apenas o que todo mundo sabe há muito tempo. Seu relato não apenas serve para solidificar seu próprio prestígio, mas o do promotor da viagem ao qual se confiou. O turismo é a indústria cuja produção se identifica com sua propaganda: seus consumidores são ao mesmo tempo seus empregados. As fotos coloridas, que o turista tira, apenas pela modalidade distinguem-se daquelas que ele compra e envia com cartões-postais. Elas são a própria viagem para a qual ele partiu. O mundo que contempla nelas é mera reprodução. O viajante só recebe uma cópia. Ele confirma o cartaz que o levou a viajar.
Essa confirmação do fictício como real é o verdadeiro trabalho do turista. Não é trabalho fácil, que lhe pedem. E abrandar o tédio que o acompanha foi idéia do editor de Lípsia, Tauchnitz, inventando como paliativo a leitura de viagens. A coleção servia, com seus textos ingleses, aos turistas do outro lado do Canal, que naquele tempo ainda determinavam os contornos do movimento turístico; por isso ele obteve a gratidão de todos os viajantes ingleses, uma bela fortuna e o título de barão. O turismo não podia compensar a mágoa da secreta decepção e o desespero do observador.
O turista conhece bem o que é desalento. Agarra-se cegamente aos meios mais fortes para espantar o tédio, embora no fundo esteja consciente de que sua fuga é vã, antes mesmo de a empreender. Ele sempre esteve bem consciente da natureza ilusória de uma liberdade vendida a metro. Mas permite-se o logro, não admite que está sendo logrado. Não manifesta sua decepção. Ela não se deve aos meios industriais que o acompanham, mas a si mesmo. O círculo de seus conhecidos consideraria a confissão de derrota do turista como fracasso social. O logrado não quer sofrer, ainda por cima, a zombaria dos outros. Corre perigo de sentir, em sua mesa de bar, aquele desprezo com que uma crítica cultural reacionária já o está punindo.
Na verdade é muito fácil, como Gerhard Nebel, divertir-se às custas do turismo em massa de nossos dias. Mas é imensa a força que lança as multidões, por toda parte do mundo, nas praias de sua pequena felicidade de férias.
É a força de uma rebeldia cega e inarticulada, que fracassa sempre na maré de sua própria dialética. É um testemunho aniquilador da situação política em que nos encontramos o fato de que só empresas de ônibus e comerciantes de camas levem tudo isso a sério. O fluxo do turismo é um único movimento de fuga da realidade com a qual nosso conceito de sociedade nos envolve. Mas toda a fuga, por mais insensata e impotente que seja, está criticando aquilo de que se afasta.
O desejo que se esconde nessa crítica obstinada, amarga e desesperançada, não se pode reprimir com nada. Oferece-se apenas para a exploração comercial. Como ele não se compreende, é fácil a essa exploração pervertê-lo sempre de novo. Zombando dele não o podemos nem explicar nem paralisar. O anseio do qual o turismo alimenta-se é anseio pela felicidade de ser livre. Até no tumulto de Capri ou Ibiza, ele prova sua força intacta. As imagens dessa felicidade, construídas pelo romantismo, derrotam qualquer falsificação enquanto não formos capazes de lhes contrapor nossas próprias imagens. Elas ainda triunfam nos cartazes em que o capital as transformou, à maneira de Medusa. Não testemunham a nosso favor, mas contra nós. Em seus rostos brilha a verdade como lembrança que não empalidece, porque nos contentamos com ela.
Num aforismo de Otto Weininger lemos que nunca se pode partir de uma estação de trens para a liberdade. A frase vale enquanto nos satisfizermos com o que está no jornal que mandamos enviar para nosso local de férias. O turismo mostra que nos acostumamos a aceitar a liberdade como ilusão de massa que nos foi encomendada, embora em segredo já o reconheçamos. Ao apalpar os bolsos em busca da passagem de volta, confessamos que a liberdade não é a nossa meta e que já nos esquecemos de como ela é.
Notas
(1) Jean Paul, Textos sobre Flores, Frutos e Espinhos; ou Honra, Morte e Bodas do Advogado dos Pobres F. St. Sibenkäs (Blumen-, Frucht- und Dornenstücke; oder Ehestand, Tod und Hochzeit des Armenadvokates F. St. Sibenkäs) Vol. III, cap. 12 (Obras Completas, 1840).
(2) FRISCH, Max. Homo faber. Um relato. (Homo faber. Ein Bericht.) Frank-furt/Main, 1957.
(3) NEBEL, Gerhard. Entre Cruzados e Guerrilheiros (Unter Kreuzrittern und Partisanen). Stuttgart, 1950.
(4) A. I. Shand, Viagens de antigamente, Reminiscências pessoais do continente há quarenta anos, comparadas com experiências de hoje (Old-Time Travels. Personal reminiscences of the Continent Forty Years Ago compared with experiences of the present Day). Londres, 1903.
(5) Homero, Odisséia. Traduzi livremente da versão alemã de Johann Heinrich Voss, citada no original de Enzensberger. (N. da T.)
(6) Carta do viajante descobridor Candish, citada segundo Robert Kerr, Viagens e Excursões (Voyages and Travels). Edinburgh, 1811.
(7) Entre 1760 e 1770, não menos de 40.000 ingleses teriam feito viagens de meses, até de anos, com finalidades artísticas ou de diversão, no continente. Esses e outros detalhes Wilhelm Treue revela em sua História Cultural do Cotidiano (Kulturgeschichte des Alltags). Munique, 1962.
(8) O primeiro contrato do tipo foi realizado na Alemanha entre 32 empresários e o Sindicato dos Operários em Metal, em 1909. Em 1901, havia determinações sobre férias em 27 de 851 contratos salariais. As férias foram estabelecidas em seis dias.
* No Brasil, desde 1943, pela CLT, o trabalhador tem direito a férias anuais. Eram então de 20 dias, passando, a partir de 1978, a 30 dias anuais. (N. da T.)
In: Com Raiva e Paciência. Seleção e introdução: Wolfgang Bader. Tradução: Lya Luft. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1985, p.205-225.
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