quarta-feira, 6 de julho de 2011

Por uma Estética do Material: Notas sobre Peter Bürger


"Materielle Identität? sie muß ursprünglich das im Stoffe sein, vor dem materiellen Wechsel, was im Geiste die Einigkeit vor dem idealischen Wechsel ist, sie muß der sinnliche Berührungspunkt aller Teile sein. Der Stoff muß nämlich auch, wie der Geist, vom Dichter zu eigen gemacht, und festgehalten werden, mit freiem Interesse, wenn er einmal in seiner ganzen Anlage gegenwärtig ist, wenn der Eindruck, den er auf den Dichter gemacht, das erste Wohlgefallen, das auch zufällig sein könnte, untersucht, und als rezeptiv für die Behandlung des Geistes und wirksam, angemessen gefunden worden ist, für den Zweck, daß der Geist sich in sich selber und in anderen reproduziere, wenn er nach dieser Untersuchung wieder empfunden, und in allen seinen Teilen wieder hervorgerufen, und in einer noch unausgesprochenen gefühlten Wirkung begriffen ist. Und diese Wirkung ist eigentlich die Identität des Stoffs, weil in ihr sich alle Teile konzentrieren. Aber sie ist unbestimmt gelassen, der Stoff ist noch unentwickelt. Er muß in allen seinen Teilen deutlich ausgesprochen, und eben hiedurch in der Lebhaftigkeit seines Totaleindrucks geschwächt werden. Er muß dies, denn in der unausgesprochenen Wirkung ist er wohl dem Dichter, aber nicht anderen gegenwärtig, überdies hat dies in der unausgesprochenen Wirkung der Geist noch nicht wirklich reproduziert, sie gibt ihm nur die Fähigkeit, die im Stoffe dazu liegt, zu erkennen, und ein Streben, die Reproduktion zu realisieren. Der Stoff muß also verteilt, der Totaleindruck muß aufgehalten, und die Identität ein Fortstreben von einem Punkte zum andern werden, wo denn der Totaleindruck sich wohl also findet, daß der Anfangspunkt und Mittelpunkt und Endpunkt in der innigsten Beziehung stehen, so daß beim Beschlusse der Endpunkt auf den Anfangspunkt und dieser auf den Mittelpunkt zurückkehrt."


“Identidade material? Antes da alternância material, ela deve ser, originariamente, na matéria aquilo que a unicidade é no espírito, antes da alternância. Deve ser o ponto de contato sensível entre todas as partes. Assim como o espírito, também a matéria deve ser apropriada e consolidada pelo poeta, na liberdade de seu interesse: deve apresentar-se, pois, em toda a sua disposição, sendo preciso investigar a impressão que provoca no poeta, o primeiro prazer, que poderia ser dúvida, ser contingente, considerando-se a sua capacidade de receber o tratamento do espírito, seus efeitos, sua adequação à finalidade, qual seja, a reprodução do espírito em si mesmo e em outros. Após essa investigação, é preciso sentir e acolher novamente a matéria em todas as suas partes e conceber, num efeito, que se experimenta de forma ainda mais inexprimida. Esse efeito é, propriamente, a identidade da matéria, pois nela concentram todas as partes. O efeito, no entanto, mantém-se indeterminado e a matéria ainda não está desenvolvida. A matéria deve se exprimir, com maior clareza, em todas as suas partes, pois é assim que a vivacidade de sua impressão total se enfraquece. Isso deve ocorrer uma vez que, no efeito inexprimido, a matéria está, decerto, presente para o poeta, mas não para os demais. Trata-se, além disso, de algo que o espírito ainda não reproduziu realmente no efeito inexprimido, conferindo-lhe, somente, a capacidade de reconhecer o que se acha no interior da matéria e o ímpeto de realizar a reprodução. A matéria deve, portanto, repartir-se, a impressão total deve conter-se e a identidade torna-se o prosseguimento de um ponto para o outro de modo que a impressão total se encontre na íntima relação entre o ponto inicial, o ponto mediano e o ponto final, e onde, na conclusão, o ponto final retorne ao inicial e este ao mediano.



“Identidade Material”

Esta nota de rodapé abre o ensaio-programa de Hölderlin "Sobre o Modo de Proceder do Espírito Poético" (1800),

e por seu valor emblemático resiste à decifração. O ensaio descreve um encadeamento paratático em forma de hipérbole, cujo desenho em torno de uma estrutura condicional de base nunca se completa: Se/então. Trata-se também de uma resposta pontual de Hölderlin aos desafios metodológicos da exhibitio da Doutrina da Ciência de Fichte, de 1794,

que radicalizava as conseqüências da emergência do ponto de vista transcendental da Crítica, a partir do qual o sensível esvaziava-se de todos os significados com uma nova gramática do pensamento, pela duplicação funcional do alfabeto da realidade.



A “identidade material” em Hölderlin não é a matéria (“Stoff”) histórica imediata da traditio, seus “conteúdos”, a “temática” como exterioridade ao trabalho artístico, mas antes um ponto de vista pelo qual esta matéria, imantada pela reflexividade, torna-se narrativa e realiza sua virtualidade épica, uma promessa que no ensaio permanece para sempre insulada à espera da História real. Com efeito, a matéria que se reproduz inicialmente “em si” (“an sich”) para apenas então reproduzir-se “em outro” (“im Anderen”) é um problematização das condições de sua auto-representação como Darstellung, inicialmente na unidade tautológica do sujeito transcendental (Ich=Ich) - que não é ainda identidade sem oposição (“Entgegensetzung”) -, e a partir da qual nenhum discurso narrativo parece possível ou mergulha na pura ilegibilidade do “não-pensamento”, da coisa-em-si, que a circunda, para somente então reproduzir-se em “Outro”, ou seja, ao adquirir consistência épica na sua divisão em um tempo linear em episódios.

A “identidade material”, portanto, a unidade do mythos, seria desta forma inicialmente uma hipótese ainda indeterminada (“efeito inexprimido”), que apenas no desdobramento narrativo do material adquire uma realidade literária tangível e distribui esta unidade na multiplicidade de episódios. O que já é possível ler nesta nota é a formulação, de fato, de uma contrapartida dialética e materialista da não-identidade fundamental entre a consciência que se apropria deste material e suas exigências internas que resistem como movimento autônomo, apontando para a gravidade objetivante e exterior do meio lingüístico; e sendo uma hipótese insinuada pelo movimento do ensaio, que distende o arco desta busca, estabelece como tarefa uma leitura prospectiva do próprio sentido da tradição, sua decifração como a mais “alta determinação do objeto”, na lição já posterior de Hegel.

Esta formulação avançada de “identidade material” em Hölderlin como hipótese e limiar de todo o discurso, quase uma combinatória musical girando sobre o próprio eixo, parece encontrar seu equivalente somente numa gramática estética cujos signos prescindam da gravidade semântica da língua prática, não se configura na linearidade do discurso, não lhe é anterior ou exterior, mas fulgura entre as unidades discretas do alfabeto artístico, na convergência e superação de “forma” e “contéudo”.

Crítica da estética idealista

Para onde se olhe desde então na literatura alemã, esta “tarefa” parece não se esgotar e impõe-se como a emergência do “Stoff”, que é também a exigência pela decifração histórica específica. Já em Schiller a “determinação absoluta da matéria” é a pedra de toque de um conceito de gênero contemporâneo. Se existe um ponto cardeal e metodológico que pudesse condensar a extensa obra de Peter Bürger é a revisão crítica da secularização das categorias da estética idealista no desenvolvimento imanente da arte moderna. Ela nasce da circulação entre a hermenêutica e a teoria crítica, mantendo sempre uma equidistância em relação ao epicentro da estética dos frankfurtianos, Adorno,

em torno de cuja gravitação negativa Bürger inscreve, de maneira não-antagônica, a própria historicidade de sua reflexão, na busca um “tratamento moderno com a arte”. De fato, a pátria estética de Bürger e de seu aparato terminológico é o próprio idealismo alemão.

Quando Peter Bürger iniciou sua carreira na Romanística no início dos anos sessenta, a crítica literária alemã ainda estava totalmente sob o ditado da “interpretação imanente”, uma variedade de New Criticism. Neste contexto, Bürger procurava uma aproximação mais racional com a literatura nos formalistas russos e na estilística de Leo Spitzer, tentando estabelecer um vínculo mais próximo entre a análise textual e uma abordagem sociológica do fato literário . Desta duplicidade de heranças, resulta um movimento reflexivo alternado e uma síntese que emblematiza a perpeção do horizonte pós 68: por um lado, num nível de abstração crescente, Bürger acentua a gravitação própria da literatura, sua “institucionalização” como protagonista da racionalização do subsistema da arte na sociedade burguesa; por outro, num adensamento ensaístico, em trabalhos mais recentes como "Prosa der Moderne", 1985, demonstra um apreço pela singularidade formal das obras do modernismo clássico, ao qual não se impõe nenhum modelo teórico ou qualquer teorema, mas, sem dúvida, uma nova sociologia da literatura, cujas bases metodológicas e empíricas de uma “hermenêutica crítica” estão centradas no polêmico conceito de “Instituição Arte” e seu par correlato de “autonomia” estética, no qual se espelham, em meados dos setenta, uma forte impregnação habermasiana.

O ponto crítico desta plataforma é a publicação de "Teoria da Vanguarda",

resultado de um projeto desenvolvido na Universidade de Bremen entre 1973 e 1974 sobre as relações das vanguardas históricas com a sociedade burguesa, desencadeando uma polêmica que parece prolongar-se até o último catálogo da “Documenta” de Kassel de 1997 . Da convergência entre slogans surrealistas em Paris no maio de 1968 e do colapso do movimento estudantil na República Federal no início dos setenta, a "Teoria da Vanguarda" parecia extrair seu impulso crítico de um refluxo cultural mais amplo, reabilitando mais uma vez a questão do “fim da arte” ou de sua impossibilidade em “mudar a vida”. É a partir deste prisma ambíguo de esterilidade do presente que o fracasso das vanguardas posteriores a 1920 ganhava um conteúdo exemplar e discernível na sua "Aufhebung" definitiva.

Este "pathos" melancólico parece suspender a questão fundamental do livro, sua “intenção” enfática de rubricar este parentesco, através de uma definição inteiramente negativa do horizonte pós-vanguarda, avesso a qualquer juízo normativo, uma radicalidade que Bürger atenuaria em obras posteriores. Pois a "Teoria da Vanguarda" representava também o primeiro grande acerto de contas com os fantasmas da "Teoria Estética" e sua assombração de uma "vanguarda permanente". Aquilo que era a intenção adorniana na hibernação da dialética negativa apresenta-se em Bürger como uma “suspensão” da Estética.



No centro do volume, está a formulação enfática de um conceito “histórico” da vanguarda, não como projeção categorial do presente, mas como cesura crítica a partir da qual organizou-se uma nova atitude estética em relação à práxis vital no início do século. A intenção da hermenêutica de Bürger é, portanto, compreender: “os movimentos históricos de vanguarda como cesura no desenvolvimento da arte na sociedade burguesa e de, também a partir desta, conceber a Teoria da Literatura”. O desafio de uma determinação radical do presente exige uma revalidação permanente das próprias categorias estéticas e de sua mediação pelo desenvolvimento histórico. Bürger estabelecia já nas linhas introdutórias sua diferença em relação a Gadamer,

para quem o presente apresentava-se ainda como “unidade monolítica” permeável a uma mescla de um “entendimento universal com o horizonte cultural da tradição”, procurando entendê-lo antes como ruptura na qual se multiplicam interesses divergentes e perspectivas incompatíveis: “O interesse que dirige o conhecimento só se pode impor na ciência da literatura de forma mediada, ao determinar as categorias com cujo auxílio as objetivações literárias são compreendidas”. Cinco anos depois da morte de Adorno, Bürger formulava sua intenção hegeliana de rubricar a "Aufhebung" da vanguarda histórica, mas, de fato, esta palavra atendia por outro nome no volume: Adorno, o cerne da teoria estética do contemporâneo,

cuja historicidade tornava-se também “reconhecível”, suspensa na convergência assinalada por Bürger. Para escapar de uma teoria crítica da arte, que procurasse escapar à “irracionalidade” do presente, a tarefa de Bürger pretendia-se “científica”: historicizar a teoria estética no acompanhamento do objeto: “Por historicização da teoria, deve-se entender aqui uma outra coisa: o discernimento da conexão entre o desdobramento do objeto e o desdobramento das categorias de uma ciência. Assim entendida, a historicidade de uma teoria não se fundamenta no fato de ser expressão de um Espírito de Época - este o ponto de vista historicista - nem no fato de a si mesma incoporar fragmentos de teorias do passado (história como pré-história do presente), mas no fato de existir uma conexão entre o desdobramento do objeto e o desdobramento das categorias. Compreender esta conexão significa historicizar uma teoria.”

A categoria fundamental desta conexão é, portanto, a própria autonomia a partir do qual desenvolve-se uma reflexividade que universaliza o conteúdo da experiência estética burguesa em chave dupla, seja reunindo um elemento de “verdade”, a saber, a diferenciação crescente do subsistema arte, seu deslocamento progressivo da esfera prática, e, por outro, um movimento aparente, ou seja, a hipostasiação deste fato, resultado de um desenvolvimento histórico peculiar, como “essência intemporal”. Se as categorias do idealismo, gênio, obra, são conseqüências de uma socialização literária específica, cada tradição deveria apropriar-se, contra a inércia ontologizante destes conceitos, das próprias categorias de legibilidade de seu presente no desdobramento de seus objetos. Neste deslocamento imanente da Instituição da esfera prática reside justamente o elemento de disjunção identificado há muito como “idealista” que acompanhava a emergência da divisão do trabalho, descrita na Sexta Carta de Schiller: utopia estética, que antecipa e desempenha em efígie uma Humanidade ainda não realizada, seja oferecendo-se como alternativa ao real, ou posta como “inteiramente Outro”, respectivamente pré-condição formal de um programa que, de fato, não pode ser implementado num mundo incapaz de produzir receptores para este comércio com a arte e metáfora de uma impossibilidade crescente do real. A conseqüência, como Bürger sugere, é que a autonomia estética é institucionalizada como uma “ideologia”, opondo dessa forma a racionalidade de meios à experiência legitimada da harmonia estética, cuja realização social é simultaneamente representada como impossível; ou, por outra, este movimento imanente critica aquilo de que se afasta, seu déficit de realidade na forma de uma “compensação estética”; a autonomia da arte incorporaria, por fim, uma forma institucionalizada de falsa consciência cujo efeito Bürger vincula ao conceito de “cultura afirmativa” em Marcuse.

Esta mesma dinâmica “exemplar” que norteiaria os anos de aprendizado da Instituição Arte é projetada agora no “fracasso” da vanguarda histórica, cujo sentido é pedagógico para nosso presente. É exatamente neste intervalo que Bürger introduz seu conceito funcional de “Instituição Arte”, com o qual denominam-se dois fenômenos, de fato, dois níveis de descrição que não se confundem: o aparelho produtivo e distributivo e também o conjunto de “idéias dominantes” (“Vorstellungen”) que pautam normativamente sua auto-reflexão. Durante este período “idealista” de constituição da Instituição literária, a par da função pedagógica da arte como matriz do juízo de gosto, ela ainda poderia desempenhar também um conteúdo “político”.

“Instituição Arte”

O conceito de “Instituition Kunst” em Peter Bürger é neste sentido menos sociológico do que hermenêutico. Se a Instituição identifica-se ao conjunto de “concepções gerais” sobre a arte em seu condicionamento social, sua determinação tende a aproximar-se da concepção dominante de uma classe, camada ou grupo. Estas idéias gerais determinariam tanto a produção, como a recepção de obras individuais. Portanto, este conceito funcional de Instituição tem genética e logicamente prioridade sobre o conceito de obra individual, ao qual permaneceriam ainda atrelados Adorno e Lukács:

“Pois a diferenciação das determinações de função processa-se, da parte dos produtores, através do material estético (sic meu), e da parte dos receptores, através das atitudes e condicionamentos da recepção” , afirma Bürger. É apenas a mudança no plano das concepções que torna possível uma mudança funcional na relação com a arte. A categoria de autonomia permanece assim atrelada às concepções gerais, modalidade de “tipo ideal”, mas não imediatamente ao conceito de aparato, ou por outra, não são as normas e as convenções que determinam a Instituição em sua dinâmica interna, mas sim estas concepções gerais sobre a arte e a literatura que aparecem em primeiro plano no acompanhamento da determinação da função das obras de arte singulares. Para Bürger, é justamente através do conceito hegemônico de autonomia, no qual se indicam diversos estágios de materiais artísticos e de separação da vida prática, que se processa esta mediação sistêmica desde o XVIII, até que o estatuto normativo da Instituição seja colocado em questão e refuncionalizado pelas vanguardas históricas.

A autonomia sinaliza, dessa forma, no nível da Instituição e não das obras individuais, a separação crescente do subsistema da arte da esfera prática, no qual racionalidade de meios não encontra abrigo.

O primeiro estágio deste desenvolvimento é designado por Bürger de “esteticismo” no qual “a burguesia atinge um patamar de auto-reflexão formal e no qual a arte se percebe não tendo mais relações com a vida imediata. O esteticismo revela-se dessa forma como a pré-condição necessária do assalto das vanguardas ao centro da Instituição, quando a crítica da autonomia internaliza-se, coincidindo finalmente com o nível sistêmico do qual é a figura hegemônica. Bürger estabelece uma diferença entre este espaço institucional no qual as obras individuais gravitam, cujo status somente é discernível sob esta mediação, isto é, deslocamento da vida, e o “conteúdo”, que se convencionou atribuir às mesmas. O desenvolvimento da Instituição Literária revela-se assim como uma congruência crescente entre este plano normativo e metacrítico e as obras singulares, cujo limite lógico teria sido o esteticismo. É somente quando este logra finalmente eliminar o “conteúdo político” das obras individuais que surgem pela primeira vez as condições para a crítica radical e superação da autonomia, de uma “má autonomia”. A Instituição transforma-se no seu deslocamento crescente da esfera prática na instância em função da qual as demais produzem sua identidade e em oposição a ela como horizonte da própria racionalização estética.

Apenas como uma exemplo concreto deste enfoque, em “Naturalismus/Ästhetizismus”, Bürger tenta esclarecer as razões históricas, políticas e estéticas que teriam engendrado na vida literária do fim do XIX o debate entre o naturalismo e o esteticismo. Tomando Barrès e Zola como modelos, Bürger formula uma complementaridade estética nas quais ambos os pólos excluem-se mutualmente: enquanto os naturalistas ocupavam-se da “realidade” na multiplicidade de seus fenômenos, uma realidade que permaneceria exterior aos “sujeitos literários” e que, portanto, somente poderia ser descrita em seus acidentes, a interiorização da experiência estética é o foco problematizador do esteticismo, mas esta atividade, contudo, restringir-se-ia ao domínio subjetivo incapaz de mudar a realidade. Neste aspecto, a dialética de sujeito e objeto do esteticismo já aparece cindida, mas revestida da forma necessária para sua superação no passo seguinte. Em outras palavras, se na sociedade burguesa a arte e literatura são instituicionalizadas como campos ideológicos nos quais se manifesta a experiência subjetiva, isto é, a negatividade de modos de vida numa realidade colonizada por uma racionalidade de meios, o programa naturalista revela-se deficitário e não logra desta maneira impor-se como institucionalização rival. Já na doutrina estética da autonomia da l’art pour l’art estava embutida uma recusa implícita ao espírito de cálculo e da competição, preparando terreno para a investida vanguardista. Bürger é o primeiro a reconhecer, contudo, que sua crítica diante do naturalismo segue, por sua vez, os argumentos do esteticismo e se arrisca desta forma a encerrar-se em um círculo vicioso, pois se a tese principal de uma racionalidade oposta à “experiência subjetiva” norteia o conceito de Instituição, ou seja, é imanente a ela, não teriam os leitores reconhecido seus próprios interesses racionais aderindo ao êxito comercial dos naturalistas diante do esteticismo?


O modernismo histórico cede então a um estágio de “total disponibilidade de materiais e formas”, uma situação que inviabiliza do ponto de vista lógico uma teoria estética normativa que reivindique para si a precedência sobre as demais, bem como de uma crítica relevante: “A ciência crítica não consiste em pensar novas categorias em oposição às “falsas” categorias da ciência tradicional. Antes, ela examina as categorias da ciência tradicional para descobrir quais questões podem ser com elas colocadas e quais outras questões, já no plano da teoria (justamente graças à escolha das categorias) ficam excluídas. Na ciência da literatura é importante, neste caso saber se as categorias possuem uma natureza tal, que permita investigar a conexão entre as objetivações literárias e as relações sociais.”

Ao colocar esta questão no início de "Teoria da Vanguarda", Peter Bürger sugere que a resposta deveria ser sim quando aplicada as obras de Adorno e Lukács no seu enfoque das obras singulares. Mas o emprego do conceito de autonomia em Bürger visa deslocar o centro de gravidade do debate entre ambos, no seu registro histórico. Adorno e Lukács escapariam de tematizar o dado decisivo: é apenas no ataque desfechado pelos movimentos históricos de vanguarda à Instituição que se torna reconhecível o papel desta transformação na depuração do conceito de obra individual. Se Adorno e Lukács correspondem exatamente a duas recepções diametrais da matriz hegeliana da estética, o primeiro mantendo ainda a noção artista de obra orgânica, reescrevendo, em chave normativa, a oposição entre arte romântica e clássica na oposição entre realismo e vanguarda, já Adorno, por sua vez: “faz a tentativa de pensar até o limite a historicização das formas de arte empreedidas por Hegel, isto é, não dar a nenhum tipo historicamente surgido da dialética forma-conteúdo a precedência sobre os outros. A obra de arte vanguardista surge nessa visão como expressão historicamente necessária da alienação na sociedade do capitalismo tardio”.

Dessa forma, a vanguarda tornar-se-ia para Adorno o único tipo de arte contemporâneo, como expressão autêntica do nexo inconsciente entre presente história, diante da qual é suspeita qualquer tentativa de pensar uma obra orgânica em relação ao patamar já alcançado pelas técnicas artísticas, ao qual Bürger mais tarde oporá um novo conceito de realismo na defesa da Estética da resistência de Peter Weiss:

a possibilidade de uma recepção não-aurática, dramatizada no romance, que não é nem a identidade entre arte e vida e tampouco a autonomia terminal do esteticismo, hostil à vida. O romance de Weiss iria além desta falsa disjunção, assimilando as intenções da vanguarda, como influxo conceitual e sensível de experiência e interpretação do mundo, uma metáfora poderosa de um novo realismo. A categoria do novo tal e qual Adorno a apresenta em sua “Teoria Estética” seria então insuficiente para compreender a própria historicidade da vanguarda, que não se confunde com engrenagem da renovação permanente do mercado, como Adorno mesmo sempre enfatizou. Circunscrevendo, por um lado, esta perspectiva de Adorno com a censura de uma vanguarda permanente, Bürger restringe também sua desqualificação por um Marcuse surpreso com as conseqüências da identificação entre arte e vida: “Hoje não se pode mais mais argumentar contra a utilização de técnicas realistas, apontando para o estado histórico das técnicas artísticas. Na medida em que o faz, o próprio Adorno, enquanto teórico, demonstra pertencer ao período dos movimentos históricos de vanguarda. A mesma conclusão se pode tirar do fato de Adorno não ter visto os movimentos de vanguarda como históricos, mas como ainda vivos atualidade adentro.”

Por último, o assalto vanguardista ao centro da Instituição não representa apenas a tentativa de revolucionar técnicas formais, sua tarefa não teria sido em primeiro plano propriamente revolucionar a arte e a literatura nas suas técnicas formais - transformação na verdade conseqüência não-intencional do desenvolvimento interno dos materiais e de novas constelações tecnológicas emergentes, quase um produto secundário- , senão a refuncionalização de sua categoria básica: a autonomia, abrindo seu campo semântico à vida. É somente a partir desta idéia que é possível entender o sentido de seu fracasso exemplar e necessário. De um ponto de vista da reflexão teórico, elas corporificam um impulso incessante, que despe a inocência da arte “autônoma” do passado, que ainda não se vê inteiramente na posse de uma autoconsciência como Instituição, pois justamente sua separação da vida prática decorre deste déficit de identidade eternizado como “compensação estética”; por outro, do ponto de vista da prática estética, a introdução de procedimentos disruptivos contra uma mímeses afirmativa da Instituição arte, como a montagem e colagem, levará até as últimas conseqüências a dialética entre arte e discurso prático. Em outras palavras, as vanguardas teriam implementado desta forma a crítica de uma “má autonomia” contra a crescente atrofia do campo semântico da arte, depotenciado-a como emblema de uma transformação social malograda. O fracasso não elimina a Instituição, mas a esvazia de sentido normativo. A autocontradição performativa deste movimento não contabilizava, porém, a capacidade elástica de absorção da constelação técnica do choque, transformado-o na própria engrenagem da inovação cultural, que reabilitará paradoxalmente esta autonomia depotenciada, em nova chave, já no circuito dos museus, fora dos quais a arte não encontra mais oxigênio a céu aberto diante da colonização publicitária da paisagem. O legado desta falência exemplar consistiria assim numa espécie de museu imaginário da modernidade. Se o desafio vanguardista criara a possibilidade de uma crítica metasistêmica da Instituição, invalidando as categorias da obra de arte autônoma aprisionadas na estética idealista, resultante da internalização da Instituição, por outro lado, esta crítica revela-se também incapaz, neste nível de abstração, de ir além da teoria da própria vanguarda, como Bürger reconhece. Se a cesura radicalizada pela vanguarda é o "turning point" da Instituição, as consequencias apresentadas por Bürger são inteiramente negativas em nosso horizonte, caracterizado por uma pluralidade de estilos e normas que inviabiliza uma teoria estética do presente.

Mas de modo contrário a Habermas,

os movimentos de vanguarda e o ciclo surrealista representam para Bürger a resposta legítima da racionalização unidirecional da modernização estética que atrofiava o campo semântico da Instituição no mero formalismo e na autoreferencialidade, ao abrir seu campo para os elementos extra-estéticos. Daí a centralidade da reflexão do material como pedra de toque para o ultra no plus adorniano sua delimitação crescente como hybris da auto-justicação permanente do Moderno. Na constelação dos novos materiais dinamizados pelas vanguardas históricas insinua-se justamente na liberação do potencial de reflexividade já preparado na obra de arte, inicialmente como esteteticismo autoreferido de uma consciência de sua separação radical da vida para então estender seu campo extra-estético implicando o Moderno em todas as suas dimensões: “Onde as possibilidades de enformação acabaram por se tornar infinitas, não somente a enformação autêntica e infinitamente dificultada, mas ao mesmo tempo, sua análise científica.”

A constelação do material

Se numa perspectiva idealista o material revela-se apenas como o “suporte” de uma idéia que deve desaparece a sua realização, a emergência de novos procedimentos disruptivos libera a obra de arte para seu campo extra-estético, pela incorporação de elementos da realidade a sua moldura. O princípio da desconstrução embutido na colagem volta-se contra a literalização da realidade e procura de fato incorporar as manifestações lingüísticas da realidade exterior. O pressuposto para isto é que o domínio semântico da linguagem possa ser realizado como estrutura exterior da obra. Precisamente o protesto dadaísta voltava-se contra a gravidade literária imanente do sentido lingüístico. Em momentos de acaso, a própria coerência significativa deveria ser quebrada e os elementos extra-literários inundariam assim a estrutura interna da obra. Para o dadaísta de Hannover Kurt Schwitters,

este procedimento é o momento constitutivo de um novo conceito de material literário que se orienta para o movimento imanente da linguagem. Com a emergência da montagem e da colagem como princípio construtivos das vanguardas, o material se torna na obra realizável como uma estrutura do mundo exterior.

A técnica da citação, por exemplo, na colagem direciona-se contra o estranhamento da própria realidade: "Que o procedimento da colagem dirija sua atenção para o estranhamento da realidade, aproxima o nível formal de uma obra de sua camada significativa.

Aquilo que se realiza no nível primário do estranhamento permanece em contraste constante à linguagem. Isto produz a aparência de uma autonomia do material que permanece em constante contraste daquilo que já foi um fragmento de realidade. A conseqüência de uma extensão ilimitada da autonomia do material seria não obstante a dissolução de toda a coerência possível da obra num processo material interminável, que não mais estaria circunscrito apenas ao nível formal... Pois precisamente a realização do material como uma estrutura do mundo exterior impede a configuração de sentido por uma recipiente exterior. Aqui o momento da unidade é afastado infinitamente para longe;

em caso extremo só é produzido pelo receptor."



A vanguarda em repouso

Bürger atribui desta forma aos movimentos da década posterior ao fim da Primeira Guerra Mundial qualidades de um heroísmo que nunca teria nunca mais se reproduzido na sociedade burguesa em tal grau de pureza, como se deduz de sua defesa apaixonada de A Estética da Resistência de Peter Weiss e em artistas como Joseph Beuys.



Se a imagem da Longa Marcha desta tropa de choque inspirou a retórica da compatibilidade sígnica interminável e de um desejo que não encontra forma, de fato são os outros que continuaram marchando e não se sabe ao certo se a tropa de frente chegou ou não ao seu destino. A imagem do movimento incessante não é a da vanguarda, pelo menos na sua autocompreensao original. A vanguarda autêntica desejou um repouso e um espaço de privacidade como o “Quadrado Negro”. A idéia do avanço permanente pertence de fato àqueles que ficaram para trás e projetam este movimento para além do horizonte. Uma imagem poderosa emblemática desta motricidade é uma gigantesca escultura de Michael Heizer no meio do deserto de Nevada, cujo nome Complexo 1 aponta para esta fantasmagoria, cujas energias exauriram-se. Ela descreve uma gigantesca rampa que aponta para o nada. Nenhum museu do mundo seria capaz de “contê-la”; visitá-la significa um gesto de renúncia ao circuito da arte em direção ao silêncio e ao espaço puro de uma subjetividade fantasma. No limite entre paisagem e artefato, ela encarna um gesto lírico deste fundamentalismo, neste repouso tão elementar como o solo e sua energia, congelado em silêncio, uma figura desta pureza.

José Galisi Filho

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