The technological imagination from the early Romanticism through the historical Avant-Gardes to the Classical Space Age and beyond
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
"Meus pensamentos sugam o sangue das imagens" - Hamletmáquina - Heiner Müller
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Eu era Hamlet. Estava parado à beira-mar e falava BLA-BLA com a ressaca. Atrás de mim, as ruínas da Europa. Os sinos anunciavam os funerais nacionais: assassino e viúva um casal: em passo solene atrás do caixão do nobre cadáver os conselheiros, choramingando em luto mal pago.
QUEM É O CADÁVER DO CARRO FÚNEBRE / POR QUEM TANTO SE CHORA E TANTO SE GRITA / O CADÁVER É DE UM GRANDE / HOMEM QUE DAVA ESMOLAS, nas fileiras da população, obra de sua política. ERA UM HOMEM QUE APENAS TOMAVA TUDO DE TODOS. Parei o cortejo fúnebre, forcei o caixão com a espada, a lâmina partiu, consegui abri-lo com o coto que sobrou, e reparti o procriador falecido CARNE VAI BEM COM CARNE às miseráveis figuras que estavam ao redor. O luto transformou-se em júbilo, o júbilo em voracidade, em cima do caixão o assassino trepou com a viúva PRECISO AJUDÁ-LO A LEVANTAR TIO ABRE AS PERNAS MÃEZINHA.
Eu me deitei no caixão e ouvi o mundo girar no compasso da putrefação.
I'M GOOD HAMLET A CAUSE FOR GRIEVE AND THE WHOLE GLOBE FOR A REAL SORROW RICHARD THE THIRD! THE PRINCE KILLING KING OH MAY PEOPLE WHAT HAVEI DONE UNTO THEE
COMO UMA CORCUNDA VOU CARREGANDO O MEU PESADO CÉREBRO SEGUNDO PALHAÇO NA PRIMAVERA COMUNISTA SOMETHING IS ROTTEN IN THIS AGE OF MOON
Eis que vem o fantasma que me fez, a machadinha ainda no crânio. Tu podes deixar o chapéu na cabeça, sei que tens um buraco a mais. Eu queria que minha mãe tivesse tido um a menos, quando estavas na carne: eu me teria sido poupado. Dever-se-iam costurar as mulheres, um mundo sem mães.
Nós poderíamos nos chacinar em paz, e com alguma confiança, quando a vida se torna longa demais para nós ou a garganta estreita demais para os nossos gritos. Que queres tu de mim? Não te basta um funeral solene e oficial? Velho resmungão. Não tens sangue nos sapatos? O que me importa o teu cadáver? Contenta-te que a alça está de fora, talvez acabes mesmo chegando ao céu. O que é que estás esperando? Os galos foram abatidos. Não há mais amanhecer.
DEVO,
POR SER COSTUME, ENFIAR UM PEDAÇO DE FERRO NA
CARNE PRÓXIMA OU NA SEGUINTE
AGARRAR-ME A ISSO PORQUE O MUNDO GIRA
SENHOR QUEBRE-ME O PESCOÇO DERRUBANDO-ME DE
UM BANCO DE TABERNA
Entra Horácio. Cúmplice dos meus pensamentos repletos de sangue, desde que a manhã se cobriu com o véu vazio. CHEGAS TARDE DEMAIS, MEU AMIGO, PARA O TEU SOLDO / NÃO HÁ LUGAR PARA TI NA MINHA TRAGÉDIA. Horácio, será que me conheces?
Se me conheces, como podes ser meu amigo? Queres representar Polônio, que quer dormir com sua filha, a encantadora Ofélia, ela entra com a sua deixa, veja como ela mexe o traseiro, um papel trágico. Horácio/Polônio. Eu sabia que tu és um ator. Eu também o sou. Interpreto Hamlet.
A Dinamarca é uma prisão, entre nós cresce uma parede. Veja o que cresce da parede. Exit Polônio. A minha mãe a noiva. Os seus seios um roseiral, o ventre o ninho de víboras. Esqueceste o teu texto mãezinha. Eu sopro. LAVA-TE DO ROSTO O ASSASSINATO, MEU PRÍNCIPE / E LANÇA UM LÂNGUIDO OLHAR À NOVA DINAMARCA.
Vou fazer de ti novamente uma virgem, para que o teu rei tenha núpcias de sangue. O VENTRE MATERNO NÃO É UMA VIA DE MÃO ÚNICA. Agora eu te amarro as mãos às costas, pois me dá asco o teu abraço, com o teu véu de noiva.
Rasgo agora o vestido de noiva. Agora tens de gritar. Agora lambuzo os farrapos do teu vestido de noiva com a terra em que meu pai se transformou, com estes farrapos o teu rosto, o teu ventre, os teus seios. Agora eu te levo, minha mãe, no seu invisível rastro, no invisível rastro de meu pai. Sufoco o teu grito com os meus lábios. Reconheces o fruto do teu ventre? Agora vai às tuas núpcias, puta, aberta ao sol dinamarquês que brilha sobre vivos e mortos.
Quero enfiar o cadáver para dentro da cloaca, de tal modo que o palácio sufoque em merda real. Em seguida, Ofélia, deixa-me comer o teu coração que chora as minhas lágrimas.
A EUROPA DA MULHER
(Enormous room. Ofélia. O seu coração é um relógio)
OFÉLIA [CORO/HAMLET]
Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE a mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro - a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para rua, vestida em meu sangue.
3
SCHERZO
(Universidade dos mortos. Sussurros e murmúrios. Das suas tumbas (cátedras), os filósofos mortos atiram os seus livros sobre Hamlet. Galeria (balé) das mulheres mortas. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. Etc. Hamlet contempla-as com a postura de um visitante de museu (teatro).
As mulheres mortas rasgam-lhe as roupas do corpo. De um caixão erecto com a epígrafe HAMLET 1 saem Cláudio e, vestida e caracterizada de puta, Ofélia. Striptease de Ofélia.)
OFÉLIA
Queres comer o meu coração, Hamlet? (ri)
HAMLET (as mãos diante do rosto) Quero ser uma mulher.
(Hamlet veste as roupas de Ofélia. Ofélia pinta nele uma mascara de puta. Cláudio, agora pai de Hamlet, ri sem ruído. Ofélia joga para Hamlet um beijo com a mão e retoma com Cláudio / pai de Hamlet para dentro do caixão. Hamlet em pose de puta. O rosto sobre a nuca: Horácio. Dança com Hamlet).
VOZ(ES) (vindas do caixão)
Aquilo que mataste tens também de amar.
(A dança torna-se mais rápida e mais selvagem. Gargalhadas saem do caixão. Numa cadeira de balanço, a madona com câncer no seio. Horácio abre um guarda-chuva, abraça Hamlet. Paralizam-se no abraço debaixo do guarda-chuva. O câncer no seio brilha como um sol.)
4
PESTE EM BUDA / BATALHA PELA GROENLÂNDIA
(Espaço 2, destruído por Ofélia. Armadura vazia, machadinha no elmo)
HAMLET
O forno fumega nesse outubro sem paz
A BAD COLD HE HAD OFIT JUST THE WORST
TIME
JUST THE WORST TIME OF THE YEAR FOR
A REVOLUTION
Pelos subúrbios cimento em flor passa
O doutor Jivago chora
Por seus lobos
NO INVERNO VINHAM ÀS VEZES À ALDEIA
DILACERAVAM UM CAMPONÊS
(Tira a máscara e indumentária)
INTÉRPRETE DE HAMLET
Não sou Hamlet. Não represento mais nenhum papel. Minhas palavras já não me dizem mais nada. Os meus pensamentos sugam o sangue das imagens. Mêu drama não se realiza mais. Atrás de mim monta-se a cena. Por pessoas às quais o meu drama não interessa, para pessoas às quais ele nada importa. A mim ele também já não interessa. Não entro mais (os contra-regras, sem que o intérprete de Hamlet se aperceba, instalam uma geladeira e três aparelhos de televisão. Ruído de frigorífico. Três programas sem som).
A montagem cênica é um monumento. Representa em grandiloqüência cêntupla, um homem que fez história. A petrificação de uma esperança. O seu nome é insubstituível. A esperança não se concretizou. O monumento jaz no chão, demolido três anos após o funeral oficial, daquele que foi odiado e reverenciado por seus sucessores no poder. A pedra é habitada. Nos espaçosos orifícios do nariz e das orelhas, nas dobras da pele e do uniforme da demolida estátuta, anicha-se a população miserável da metrópole. A derrubada do monumento segue-se, depois de um tempo apropriado, a rebelião.
O meu drama, se ainda tivesse lugar, realizar-se-ia na época da revolta. A rebelião começa como um passeio. Contra as normas do trânsito no horário de trabalho. A rua pertence aos pedestres. Aqui e ali um carro é virado. Pesadelo de um atirador de facas: lenta travessia através de uma rua de mão única na direção de um parque de estacionamento irrevogável que está cercado por pedestres armados. Policiais, se estivessem atravessados no caminho, são arrojados no acostamento da rua. Quando o cortejo se aproxima da sede do governo, é barrado por um cordão de policiais. Formam-se grupos, de onde emergem oradores.
Na sacada de um edifício governamental, aparece um homem com um fraque mal talhado e começa igualmente a discursar. Mal a primeira pedra o acerta, também ele se esconde atrás da porta de dois batentes de vidro blindado.
O apelo por mais liberdade transforma-se em grito pela derrubada do governo. Começa-se a desarmar os policiais, toma-se de assalto dois ou três edifícios, uma prisão, uma delegacia de polícia, uma agência da polícia secreta, penduram-se pelos pés uma dúzia de homens fortes do poder, o governo põe tropas na rua, tanques.
O meu lugar, caso o meu drama se tivesse realizado, seria dos dois lados da frente, entre as frentes, acima delas. Encontro-me no cheiro de suor da multidão e jogo pedras em policiais, soldados, tanques, vidros à prova de bala. Espio pela porta de vidro blindado aglomerada que se aproxima e cheiro o meu suor frio.
Sufocado pela ânsia do vômito, agito o meu punho contra mim mesmo, eu que estou detrás do vidro blindado. Agitado pelo medo e pelo desprezo, vejo-me na multidão que se aproxima, minha boca espumando, agitando o meu punho ontra mim mesmo. Penduro pelos pés a minha carne niformizada. Sou o soldado na torre blindada, minha cabeça está vazia debaixo do elmo, o grito sufocado sob as correntes. Sou a máquina de escrever. Apronto o laço quando os líderes forem enforcados, puxo o banquinho de apoio, quebro o meu pescoço. Sou o meu prisioneiro. Alimento com os meus dados o computador. Os meus papéis são saliva e escarrador, faca e ferida, dente e garganta, pescoço e corda. Sou o banco de dados. Sangrando na multidão. Respirando aliviado atrás da porta de dois batentes. Segregando escarro verbal no meu balão impermeável aos ecos sobre a batalha. O meu drama não teve lugar. O texto perdeu-se. Os atores penduraram seus rostos no gancho do vestiário.
O ponto apodrece na sua caixa. Na platéia, os cadáveres de doentes de peste empalhados não mexem mão alguma. Vou para casa e mato o tempo, de acordo / com o meu indiviso ego.
Televisão A nojeira nossa de cada dia nojeira
Na verborreia preparada Pela alegria prescrita
Como se escreve ACONCHEGO
Dai-nos hoje a morte nossa de cada dia
Pois teu é o Nada Náusea
Pelas mentiras em que se acredita Nojeira
Dos mentirosos e de mais ninguém Asco
Pelas mentiras em que se acreditam Nojeira
Pelos rostos marcados dos hipócritas
Pela luta por postos, votos, contas bancárias
Nojeira Um carro de assalto que faísca com as suas graças
Passo por ruas galerias fisionomias
Com as cicratizes da batalha de consumo Miséria
Sem dignidade Miséria sem a dignidade
Da faca do boxe do punho
Os ventres humilhados das mulheres
Esperança das gerações
Sufocadas em sangue cobardia estupidez
Gargalhadas vindas de ventres mortos
Heil para a COCA-COLA
Um reino
Para um assassino
EU ERA MACBETH O REI TINHA ME OFERECIDO A SUA TERCEIRA MULHER EU CONHECIA TODAS AS MARCAS EM SUAS NÁDEGAS. RASKOLNIKOV NO CORAÇÃO. EMBAIXO DO ÚNICO CASADO A MACHADINHA PARA O / ÚNICO / CRÂNIO DA USURÁRIA
Na solidão dos aeroportos Eu respiro aliviado Eu sou
Um privilegiado O meu nojo
É um privilégio
Protegidos por muralhas
Arame farpado prisão
(fotografia do autor)
Não quero mais comer beber respirar amar uma mulher um homem uma criança um animal. Não quero mais morrer. Não quero mais matar. (rasga-se a fotografia do autor)
Arrombo a minha carne lacrada. Quero habitar nas minhas veias, na medula dos meus ossos, no labirinto do meu crânio. Retiro-me para as minhas vísceras. Sento-me na minha merda, no meu sangue. Nalgum lugar são rompidos ventres para que eu possa morar na minha merda. Nalgum lugar ventres são abertos para que eu possa estar sozinho com o meu sangue. Meus pensamentos são chagas em meu cérebro. O meu cérebro é uma cicatriz. Quero ser uma máquina. Braços para agarrar pernas andar nenhuma dor nenhum pensamento.
(Écran negro. Sangue saindo da geladeira. Três mulheres nuas: Marx, Lenin, Mao. Falam simultaneamente cada um em sua língua o texto É PRECISO TRANSFORMAR TODAS AS RELAÇÕES EM QUE O HOMEM... O intérprete de Hamlet veste o costume e põe a máscara)
HAMLET O PRÍNCIPE DINAMARQUÊS E ALIMENTO DOS VERMES TROPEÇANDO
DE BURACO EM BURACO ATÉ O ÚLTIMO BURACO DESANIMADO
ÀS COSTAS O FANTASMA QUE O FEZ
VERDE COMO A CARNE DE OFÉLIA NA CAMA DO PARTO
E POUCO ANTES DO TERCEIRO CANTO DO GALO UM DOIDO
RASGA A ROUPA DE GUIZOS DO FILÓSOFO
UM MASTIM CORPULENTO RASTEJA PARA DENTRO DA COURAÇA
(Entra na armadura, racha com a machadinha as cabeças de Marx, Lenin, Mao. Neve. Época glacial.)
5
ESPERA FEROZ / NA TERRÍVEL ARMADURA / MILÊNIOS
(Mar profundo. Ofélia na cadeira de rodas. Passam peixes, ruínas, cadáveres e pedaços de cadáveres).
OFÉLIA
(Enquanto dois homens com batas de médico a enrolam de baixo para cima na cadeira de rodas em faixas de gaze).
Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o sol da tortura. Para as metrópoles do mundo. Em nome das vítimas. Rejeito todo o sêmen que recebi. Transformo o leite dos meus peitos em veneno mortal. Rene¬go o mundo que pari. Sufoco o mundo que pari entre as minhas coxas. Eu o enterro na minha buceta. Abaixo a felicidade da submissão. Viva o ódio, o desprezo, a insurreição, a morte. Quando ela atravessar os vossos dormitórios com facas de carniceiro, conhecereis a verdade.
(Homens saem. Ofélia permanece em cena, imóvel nas alvas ataduras).
In: Quatro textos para teatro : Mauser; Hamlet-máquina; A missão; Quarteto. Tradução de Fernando Peixoto. Hucitec, São Paulo, 1987, p. 25-32.
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