quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Arco-Íris da Gravidade de “Lost”

As reflexões que se seguem foram escritas em maio de 2010 no encerramento da sexta e última temporada da série.

O Arco-Íris da Gravidade de “Lost”

Well, we were just laying there.
And this ghost of your other lover walked in.
And stood there. Made of thin air. Full of desire.
Look. Look. Look. You forgot to take your shirt.
And there's your book. And there's your pen, sitting on the table.
Why these mountains? Why this sky? This long road? This empty room?
Gravity's Angel
Laurie Anderson


Desde que Hollywood abriu as portas da metafísica para a virtualização da narrativa com a trilogia “Matrix” (1999), a relação entre atualidade e memória deslocou o eixo da imaginação para as novas texturas do cyberspace. A despeito de todas as concessões (e até de uma recaída cristã anticlimática em sua sexta e última sexta temporada, que somente potencializou o experimentalismo anterior de seus roteiristas Damon Lindelof e Carlton Cuse na criação de um microcosmo caleidoscópio e randômico, que se reinventava em cada novo lance), “Lost” foi simplesmente uma série extraordinária, tanto por sua aderência à superfície do presente, quanto por sua porosidade a camadas mais densas da narrativa.

Que “Lost” tenha mudado a sintaxe do entretenimento televisivo já parecia uma obviedade desde o final de sua temporada piloto (2004), antes de ganhar a massa crítica que a transformou nesse produto híbrido da indústria, reunindo segmentos de audiências antes incompatíveis. A própria Disney já pensa num parque temático para enquadrar sua mitologia expandida na blogosfera, e muitas de suas seqüências já se incorporaram numa memória pop da atualidade que alimenta desde monografias acadêmicas como o apetite por futuros remakes. O segredo, o como dessa receita não é ainda sequer transparente para seus produtores e nem mesmo se justifica apenas pela ruptura de fronteiras e convenções de gênero, incorporação de todas as possibilidades e plataformas da internet em tempo real, uma audiência simultânea em dezenas de idiomas e centenas de países, tudo isto é, sem dúvida, real, muito pouco conhecido e administrável.

Contudo, mesmo esse encadeamento não seria capaz de explicar por que coube a “Lost” atingir um nervo histórico tão consistente ao forjar um imaginário coeso e auto-engendrado de fora para dentro. Trata-se, para mim, não dessa justificativa a posteriori, que racionaliza o êxito da série como inevitável (o que ninguém esperava nesta escala) em função desse modo operatório, pois mesmo esta justificativa já é uma ficção em retrospecto, mas, antes, de fixar um substrato histórico mais amplo e anterior ao seu piloto, que a tornaram o primeiro capítulo de um grande romance em progresso do presente e, a título de despedida, gostaria apenas de rememorar duas de suas
seqüências mais inquietantes.

Partindo das ruínas do 11 de setembro e do horror paralisante de um mega acidente aéreo construído pela imaginação cinematográfica B de militantes islâmicos em tempo real, os produtores da série, ainda na sua fase piloto, colocavam a questão central do lugar da memória e sua capacidade de síntese e redenção nos flash backs de uma nova tipologia multiétnica de personagens e lugares diante do bombardeio das imagens: "Hurley" Reyes (Jorge Garcia), a ex-policial Ana Lucia Cortez (Michelle Rodriguez), o futuro hispânico da América, Sayid Jarrah (Naveen Andrews), o ex-torturador atormentado da Guarda Republicana, cooptado pela CIA, Mr. Eko (Adewale Akinnuoye- Agbaje), o traficante nigeriano, que assumira a identidade de padre de seu irmão, refaziam clichês da assim denominada antiga “periferia” numa atmosfera brutalizada e espetacular de um mundo de terror global e atores imprevisíveis.

O fantasma da guerra química, já insinuado em Nova Iorque pela Al Qaeda como plano B materializava-se em “Lost” em sua terceira temporada, na seqüência de Benjamin Linus (Michael Emerson), em “The Man Behind the Curtain”
, e os Outros aproximando–se do acampamento Dharma com máscaras de gás depois da “Grande Purgação”.

Essa alusão ao assalto de unidades especiais contra terroristas tchetchenos no teatro em Moscou, recuperava também uma forma de guerra que até mesmo Hitler recusara contra tropas aliadas por ter sido atingido em Ypres por uma granada de gás britânica, e que somente Saddam Hussein (armado até os dentes pelos ocidentais contra a nova
teocracia xiíta de Teerã) voltou a empregar contra crianças e mulheres curdas em 1983. Mas é, sobretudo, no “ethos” da “guerra suja” decretada por Georg W. Bush ao terror e na cena do perdão que o torturador Sayid implora, no exílio, em Paris,

à sua antiga vitima Amira que a série atinge uma intensidade única deste novo teatro da memória total do presente e ultrapassa a linha do entretenimento.

Embora a tortura seja crime imprescritível e prática cotidiana muito além do “Eixo do Mal”, a “licença poética” de “Lost” em relação a Jarrah e a verossimilhança de seu arrependimento não diminuem em nada o que sua vítima lhe retruca. Não são coisas que se dizem em televisão aberta. A construção da cena é de uma inteligência única e notável. Sayid Jarrah

simplesmente não se lembrava mais do nome de sua vítima e esta desejava apenas que ele recuperasse esta memória contra o anonimato do calabouço. A tortura degradara moralmente o personagem a tal ponto que sua culpa não poderia ser expurgada no curso narrativo e um dos paradoxos da “concessão” de “Lost” ao tema é o fato de que a purgação de Sayid é instrumentalizada pela CIA, quando este aborta, em Sidney, um atentado “franquia” de uma célula dormente da Al Qaeda. Que isto tenha sido retomado e expandido enfaticamente pelos produtores até o encerramento, representa, em minha opinião, um dos maiores legados políticos da série.

Mas há também um outro lado não menos instigante nesta história. Se havia ainda na fase inicial pontuada pelos flash backs a esperança latente de que a redenção residisse nessa memória individual como fonte de toda estrutura narrativa, o desdobramento da trama logo rompeu essa fronteira e aproximou-se da tradição literária da imaginação tecnológica, numa reescritura adulta da fábula do “Maravilhoso Mágico de Oz”

da guerra química, presidida por Benjamin Linus, alias de Henry Galé, que chegara supostamente à ilha num balão. Linus foi uma espécie de Mefisto permanente do show até passar o bastão para o não menos pirotécnico Monstro de Fumaça na forma de outro protagonista, John Locke (Terry O'Quinn), uma entidade híbrida que parecia ser inicialmente um prodígio tecnológico como “sistema de defesa da ilha” com enorme potencial militar para a Dharma e seus tentáculos no Pentágono, mas que se diluiu apenas como mais um fantasma da velha metafísica no desfecho melodramático, cristão e edificante dessa odisséia.

Porque muito além das opções dos produtores pela ênfase no “lado humano” da trama, na densidade dramática apurada por Terry O'Quinn, Michael Emerson (Emmy Award, 2009 de Melhor Ator Coadjuvante)

e Matthew Fox (Jack Shephard) em momentos de grande empatia deste show, percebemos que é justamente na brutalidade explícita, no clima de conspiração e paranóia pós 11/09 e o come back triunfante das comunidades de inteligência (depois de seu fracasso em conter e se antecipar aos novos lances da Al Qaeda até então) na condução da cruzada ao terror, aliados à tecnociência e suas possibilidades quase ilimitadas e democráticas de destruição em massa que “Lost” encontrou seu tempero e substrato enigmático de enciclopédia do presente, aproximando-se da obra-prima da Guerra Fria. De forma peculiar e premonitória, o romance de “Lost” já estava pronto na imaginação de seus espectadores antes desse piloto para ser posteriormente reescrito também por estes. A destreza, velocidade e inteligência das reviravoltas do roteiro ao jogar com presente, passado e futuro, numa proliferação de espelhamentos e citações literárias pela introdução dos flash forwards no fim da terceira temporada antecipava que a memória não poderia ser apenas a imaginação do passado, mas também de um futuro nebuloso em “The Shape Things to Come”.

Em o “O Arco Íris da Gravidade”, (1973)

Thomas Pynchon, estilhaça a linha narrativa num mosaico de mais de 600 personagens em torno da paranóia niilista do equilíbrio termodinâmico do poder total. A ogiva termonuclear é literalmente a linha da parábola que nasce do lugar metafórico romântico de uma suposta Natureza originária avança como hybris até o espaço e desemboca no Armagedão da superfície. O equilíbrio do mundo é uma intrincada rede secreta de serviços de inteligência, cuidadosamente organizado segundo a teoria dos jogos, cujo objetivo é a Destruição Mútua Assegurada (MAD). O romance de Pynchon opera uma entropia da própria narrativa que dissolve qualquer identidade individual. “Lost”, contudo, opõe a essa entropia uma resistência onde afloram identidades estáveis e a Iniciativa Dharma em sua relação com a ilha parece ser uma herdeira dos sessenta da agência californiana Rand e seus profetas do Apocalipse na linha de frente do Pentágono que, como Herman Kahn,

um discípulo de Clausewitz, dedicava-se à tarefa de pensar o “impensável”. Desmond David Hume (Henry Ian Cusick) deve apertar o botão da escotilha para manter o mundo “a salvo”.

Finalmente, o pano de fundo e segredo de “Lost” ambientam-se no cenário fantasmagórico e ruinoso desse mundo bipolar, que somente existe hoje na memória
histórica diluída. Ao recompor sua aura de nostalgia com uma nova lógica aleatória num lugar privilegiado e ainda centralizante como a ilha, isto é, de fora para dentro, a série virtualiza a pluralidade dos novos poderes do mundo real numa espécie de Aleph shakespeariano, e, do outro lado do oceano, neste mundo pós-ocidental e de terror assimétrico, sentimos retrospectivamente saudades da racionalidade do antigo adversário.

José Galisi Filho, maio de 2010

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