The technological imagination from the early Romanticism through the historical Avant-Gardes to the Classical Space Age and beyond
terça-feira, 30 de agosto de 2011
Além do “Paradigma von Braun”, Astrofuturismo, Era Espacial Clássica - Entrevista com Alexander Geppert (Technische Universität Berlin, Berlin, 18.07.2011)
O recente encerramento do ciclo Schuttle coincide também com uma profunda crise das visões que sustentaram a Era Espacial Clássica desde o lançamento do Sputinik, em 1957, e da Corrida à Lua. Aquele "passo gigantesco" anunciado pelo Projeto Apollo logo terminaria num anticlimax depois de 1969, e, com ele, a aura daquelas visões épicas de um futuro do passado de expedições tripuladas e de humanos em Marte, em 1980, ou mesmo em Jupiter, em 2000.
Se o Projeto Apollo incediou a fantasia de novas gerações com a promessa de uma "humanidade" finalmente reconcialiada em sua vocação planetária, ao fim, deixaria um enorme vazio nas décadas recessivas e de impasses energéticos e catástrofes ambientais, mas, sobretudo um legado de milhares de "viúvas" nas comunidades científicas que hoje vêem em Marte a nova fronteira. Estas visões se "desficcionalizaram", sem dúvida, tornam-se mais sóbrias, dissolvendo-se na banalidade do jogo político pelas verbas e há mais de quarenta anos mal conseguimos nos fixar nas baixas órbitas.
E muito embora a exploração robótica tenha inaugurado uma Nova Era de Ouro da Astrofísica, desde os setenta, dando um salto de milhares de anos de conhecimento com o triunfo das "voyagers" e do Hubble, apenas reparado graças à Shuttle, o futuro humano da exploração e colonização espacial a longo prazo é uma incognita, pois ainda está baseado em visões que, em última instância, são politicas e dependem de árduas negociações entre as diversas comunidades científicas, isto é, a menos que o acaso na forma de um destes asteróides ou cometas traiçoeiros resolva mostrar à política o que realmente está em jogo. Enquanto isto, ela só existe mesmo em Hollywood, na Disney e nos programas do Discovery e History Channels e, de maneira mais realista e agressiva, nos novos atores do jogo como os chineses.
Esta e outras questões estão na base do grupo de trabalho do jovem pesquisador Alexander Geppert, "Die Zukunft in den Sternen: Europäischer Astrofuturismus und außerirdisches Leben im 20. Jahrhundert", "O Futuro nas Estrelas: Astrofuturismo Europeu e Vida Extraterrestre no Século 20", da Technische Universitaet Berlin em torno da cultura astrofuturismo, um conceito que serve tanto como plataforma unificadora das ramificações culturais da exploração espacial, bem como eixo de projeção de suas visões do futuro. O grupo de Geppert (http://www.geschkult.fu-berlin.de/e/astrofuturismus/mitarbeiter/projektleiter/ageppert.html) recebeu da prestigiada Deutsche Forschungsgemeinschaft uma dotação de 1,1 milhoes euros para sua pesquisa no programa Emmy Noether-Forschergruppe, que se destina ao apoio dos mais jovens e brilhantes talentos da comunidade científica na República Federal e é a propria Nasa que busca em seu trabalho as bases para uma reflexão teórica sobre sua própria historicidade. Geppert concedeu, em Berlim, esta entrevista ao AstroPT.
Vasili Zhuravlev: Cosmic Voyage - Космический рейс (1935) União Soviética
José Galisi Filho - O que é astrofuturismo?
Alexander Geppert - O conceito de astrofuturismo foi formulado pelo teórico da literatura norte-americano Witt Douglas Kilgore, como uma conexão entre o pensamento sobre o futuro e o espaço como nova fronteira, num período que se estende por três décadas entre o final da Segunda Guerra Mundial e meados dos anos setenta, a saber, uma mescla e interfácie entre utopias, visões luminosas da exploração espacial, ficcão científica, genética, estética, política e ciência.
Mikhail Kariukov & Otar Koberidze: Toward Meeting a Dream (Mechte navstrechu) (1963) União Soviética
José Galisi Filho - Neste novo espaço imaginário e interfácie, haveria um astrofuturismo genuinamente europeu ou centro-europeu?
Alexander Geppert - Apenas completando e estendendo a definição anterior. Nós tentamos com nosso trabalho adaptar este conceito para a Europa Ocidental, e, a partir da moldura do astrofuturismo, delimitar um espaço mais amplo de uma astrocultura, no qual se incluem artefatos, pensamentos, e espelhamentos que conotem o espaço direta ou indiretamente, em oposição à Astrofísica, Astrosociologia e Astropolítica. No entanto, este conceito mais amplo de astrocultura, no qual tentamos compreender todo o espectro de fenomenos relacionados à Era Espacial Clássica, é mais abrangente que o astrofutrismo como expressão literária, que estaria mais referido ao espaço da literatura e da ficção científica. No que diz respeito especiamente à Europa, esta é uma questão ainda em aberto para nosso grupo e não sabemos exatamente ainda a resposta, pois a Europa Ocidental desenvolveu-se à sombra do programa espacial norte-americano na Guerra Fria, e seu programa espacial é bastante tardio, começou apenas em 1975, com a criação da ESA, portanto, a partir de quando haveria visões essencialmente européias, pois este programa já surge como parte e resposta à a crise do fim do Projeto Apollo e, neste aspecto, falamos até de um “paradoxo Europa”.
No trabalho de nosso grupo, este é o foco, como na antologia que organizei “Outer Space”, ou, mais recentemente, na mostra de cinema que realizamos no Deutsches Museum de Munique, na qual predominam as contribuições européias destas visões de futuro. Mas, num tempo de globalização e crise ambiental, o global tende a suplantar este foco, não obstante, como disse, é uma questão ainda em aberto. E hoje, por exemplo, com a ascensão de novos atores como China, a Europa também vem tentando resgatar seu prestígio como "third space power".
José Galisi Filho - Na origem desta tradição européia, antes da emergência do astrofuturismo da Era Espacial Clássica acima referido, está o clássico de Fritz Lang “Frau im Mond”, um genuíno produto da modernidade de Weimar, na qual ocorreu uma verdadeira “febre pelos foguetes”. Seu lançamento, em 1929, marca também o fim da tradição das vanguardas históricas do entre guerras entre Berlim e Moscou. Este filme impregnou a imaginação de gerações e, sobretudo, do jovem Werhner von Braun, estabelecendo um novo patamar entre o realismo e a fantasia, com o trabalho de especialistas e engenheiros como Hermman Oberth. O Sr. poderia falar sobre este marco anterior ao astrofuturismo e como foi esta cooperação?
Alexander Geppert – “Frau im Mond”, o último filme mudo de sua carreira, foi, sem dúvida, a fantasia do espaço mais importante desta época anterior à guerra e Fritz Lang lançou mão de quase todos os recursos disponíveis para dar o maior realismo à roteiro e já, mesmo depois da guerra, suas imagens ainda eram um modelo do que seria uma representação “realista”, ou verossímel da exploração espacial, apesar de ser uma obra de ficção. O filme marcou realmente uma virada de época, um ponto alto, em outubro de 1929, em sua estréia no Ufa Palast de Berlim, na audiência estavam ninguém menos que Albert Einstein e as principais celebridades intelectuais de Weimar. “Frau im Mond” foi muito importante também em dois sentidos> primeiro, porque, ao popularizar a fantasia do espaço com realismo, ele também disseminou num grande público a idéia de sua viabilidade prática e, segundo, porque criou imagens poderosas e resistentes que, mesmo depois da guerra, já no incio da Era Espacial, apareciam em revistas e jornais como um “testemunho” desta viabilidade. Embora se tratasse de um filme de fantasia, quando a demanda crescente por imagens no inicio da Era Espacial tornou-se imperiosa, ele ainda nos fornecia ainda este material emblemático. Mas o trabalho com Oberth, especialmente, e a UFA foi uma relação extremamente conflituosa e que faz já parte dos muuitos mitos gerados na produção. Ele também não foi o único e colaboraram também muitos outros experts da época.
Mesmo o rumor de que o filme teria introduzido, supostamente, a idéia de contagem regressiva?
Alexander Geppert – Já não estou tão certo neste ponto, tenho sérias dúvidas, este é um dos muitos mitos e rumores que cercam sua realização, criados talvez pelo próprio Oberth e sempre repetidos. Mas o filme tem este equilibrio notável entre estes dois espacos. Há um triangulo amoroso clássico, um professor enlouquecido, que acredita haver reservas gingatescas de ouro em nosso satétite, mas tambem muitos ingredientes e concessões comerciais e apelativas em prejuízo dos detalhes e da verossimilhanca cientifica, por uma necessidade dramatúrgica, cria-se uma atmosfera artifical do lado oculto da lua, por exemplo. Mas esta crença que você mencionou nos remete ao mito por excelência do filme, pois “Frau em Mond” notabilizou-se, antes de tudo, como uma parte da construção do próprio mito von Braun, sua entronização posterior, do jovem engenheiro capaz de realizar o sonho do velho professor em sua ambivalência entre a fascinação e o horror. As V2 eram, por execelência, armas de terror e objeto do desejo dos aliados.
José Galisi Filho - Tentarei esquematizar ao essencial o grande arco imaginário da Era Espacial Clássica. Na metade dos anos 50, quando o time de von Braun estava marginalizado, no já atrasado programa espacial americano, antes do choque do Sputinik, Wehrner von Braun procurou os estúdios Disney para dar impulso e suporte às suas fantasias de um suposto futuro civil da exploração mas, sobretudo, pavimentar o caminho para seu protagonismo na corrida militar que começaria. Esta visões constituem o que o estudiosos chamam de o “Paradigma von Braun”.
Segue-se o choque do Sputinik que o coloca finalmente no centro, o início da corrida espacial, o ciclo do Projeto Apollo e sua desilusão brutal, que só seria resgatada em parte na última fantasia da Guerra Fria, “Star Wars”, a militarizaçao ficcional de Reagan e hoje se encerra com o ciclo Schuttle. Como o Sr. vê este grande arco. Como se diferenciam as visões do futuro do passado das do presente. A exploração espacial ainda tem ainda visões?
Alexander Geppert – Existe, sim, este grande arco do imaginário naquele duplo sentido ao qual já me referia da fascinação e terror, que corresponderia em linhas gerais ao que chamados de Era Espacial Clássica e nele se confudem as visões, o imenso salto tecnológico, os interesses do complexo industrial-militar e, claro, a frustação daquilo que denomino o fim prematuro do paradigama clássico. Von Braun soube manter a rede internacional de contatos em torno dele e fazer prevalecer seu talento organizatório e quando foi chamado tinha alternativas.
O Paradigma von Braun é, na verdade, o paradigma clássico anterior à Era Espacial, na verdade, este caminho e cartada foi perdido prematuramente antes que a Era Espacial se iniciasse, ele é anterior, inclusive, ao pouso no Lua, e consistiria na ordem 1.) superação da gravidade terrestre, 2.) a construção da estação orbital permanente em baixas órbitas como trampolin para a Lua 3.) e da Lua para Marte, 4.) e de Marte e outros planetas. Neste arco que você traçou, o desenhinsta Chesley Bonestell criou estas imagens plásticas e fascinantes do futuro com forte apelo na luta ideológica e este futuro é o presente da corrida armamenstista contra a União Sovietica, pois, sob o manto civil, permitiria o estacionamento de armas nucleares em órbita, sobretudo depois do shock do Sputinik. O que é fascinante nesta estratégia dupla muito bem sucedida de von Braun é a combinação de fantasia e terror, de ameaças não tão veladas de retaliação nuclear direta do espaço e um futuro civil da exploração espacial, uma ambivalência que o desloca para uma posição quase mítica. E von Braun, com seu inglês fortemente impregnado pelo alemão, encarna esta dualidade não totalmente superada do tecnocrata SS que lava seu passado, como Kubrick o imortalizaria. Por exemplo, “sem os nazistas nao teríamos chegado à Lua”.
A Nasa, fundada em 1957, viveu sua idade de ouro nesta época. Ao mesmo tempo, este arco encerra a unidade da cultura do astrofurismo em sentido amplo e de seu "pathos" que hoje é também objeto de uma nostalgia retrofuturista, um sentimento de entusiasmo que formaria gerações, nesta visão, o grande tempo das fantasias foi o início dos anos cinquenta. Enquanto alguns acreditam que o pouso na Lua foi o apogeu desta era, outros recuam este pico ao início dos 50 em fantasias ainda mais ousadas. Enquanto muitos teóricos acreditam que o lançamento do Sputinik seja o início oficial da Era Espacial classica, julgo este ponto muito tardio ou falso, não concordo com esta periodizacao, pois, para muitos, o Sputinik já seria o fim de muitas visões da primeira fase das Era Espacial.
José Galisi Filho - Um futuro do passado que nunca foi e não amadureceu o paradigma inicial, que se tornou histórico antes de esgotar suas alternativas.
Alexander Geppert - Sim, mas este entusiasmo não pode mais ser recuperado, a visões e utopias tornam-se, desde então, mais sóbrias e realistas e a crise atual decorre de não sabemos construir um novo paradigma e trabalhamos apenas com as visões visões do passado. Um representante da ESA me confessava recentemente que a crise que vivemos é justamente porque tentamos retrabalhar as visões do passado, pois se fazem novas promessas, enquanto ainda as do passado sequer foram quitadas, e as novas visões também nao são mais viaveis. O pouso na Lua, segundo a maior parte dos críticos, encurralou nosso caminho nas baixas orbitas, que se encerra agora com a Era Schuttle. No antigo paradigma, a idéia de uma estação orbital como posto externo, a superação da gravidade terrestre, depois a Lua e só então Marte eram o “caminho natural”. Mas todas estas etapas foram queimadas com a corrida à Lua, com resistência do próprio von Braun, que, sem alternativas, engajou-se. A Estação Orbital Internacional é uma velha utopia que não excita mais a imaginação de ninguém, pois não se vincula mais a nenhuma destas visões e não há mais recursos financeiros para bancar as velhas promessas remaquiadas. O slogan da Britsh Society “From imagination to reality”
formula este paradoxo das dualidades das visões e trata-se, no grande arco que você traçou, de desficcionalizar estas visões do futuro com os recursos existentes. A Nasa tem seu equivalente deste slogan “From science fiction to science fact”. Mas, no meu ponto de vista, a história mostra que Nasa descartou muito prematuramente todas as cartas decisivas deste paradigama, queimando etapas.
José Galisi Filho - A arte e o cinema sempre foram superfícies de projeção do espaço. Mas este espaço é realmente infinito ou existem fronteiras? Para exemplificar este idéia nada melhor que o clássico de Kubrik 2001. Lá, o espaço é literalmente vazio, frio, silencioso, completamente hostil, no qual aos únicos extraterrestres são os humanos, um traço de realismo radical. Mas do ponto de visto imaginário, este vazio, como limite, aparentemtente não é infinito, pois ele se volta sobre si mesmo.
Alexander Geppert – Acho esta uma questão brilhante e essencial em seu paradoxo. Vocé está ressaltando o duplo conceito de espaço em 2001, físico e mental. A grandiosidade deste filme é que, sim, o espaco é infinito, mas este infinito não pode ser pensado, nenhum pensamento humano suporta esta ideia, este abismo, o astronauta está à beira deste abismo e esta idéia se volta contra ele e, portanto, o "outer space" transforma-se num "inside space", num espaço interior que desencadeia um movimento de regressão que tende ao infinito. Se o espaço físico é infinito, nosso pensamento pode ultrapassá-lo...
José Galisi Filho - Por outro lado, há uma certa banalidade e prosaismo neste futuro em detalhes com um Hotel Hilton, uma ponte aérea entre a Lua e a estacao orbital, algo até familiar.
Alexander Geppert – Que neste aspecto o distingue de um outro como “Solaris”,
em que realemnte não sabemos do que se trata, se aqueles visões turvas são sonho ou realidade, ou ambas ao mesmo tempo. E neste pensamento de fronteiras sempre aparece o antropomorfismo, os alienígenas sao a materialização de nossos sonhos e fantasias, o nosso duplo romântico. E concluiria, se o espaço é realmente infinito, nós nos deparamos com nossas próprias fronteiras mentais. É isto que ocorre no filme.
Fiz recentemente o upload do filme Der Raketenmann, uma reconstrução biográfica de von Braun, do canal ZDF, no youtube, infelizmente sem legendas. Contudo, solicitaria ao leitor assistir, pelo menos, à abertura, aos 5 minutos iniciais, pela bela música e pela sensacional reconstrução da reentrada do primeiro míssel balístico, o A 4, da estratosfera precipitando-se supersonicamente sobre Londres!
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
O Eros do Processo (Mais!)
O EROS DO PROCESSO
AUTOR DA BIOGRAFIA "OS ANOS DO CONHECIMENTO", O ALEMÃO REINER STACH FALA DA RELAÇÃO "PROBLEMÁTICA" DE KAFKA COM OS JUDEUS E DE SUA VISÃO DA MULHER COMO MEDIADORA DA JUSTIÇA
A fascinação por Kafka decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo
JOSÉ GALISI FILHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE HANNOVER (ALEMANHA)
Numa conferência pronunciada no Fórum Cultural Austríaco em 28/ 4/04, intitulada "O Fim das Lendas", o biógrafo de Franz Kafka (1883-1924) Reiner Stach dizia: "Não preciso apontar o enorme abismo entre aquilo que o nome de Kafka significava duas gerações atrás e o que representa hoje. Kafka era, nos anos 1960, uma supernova literária, seu trabalho era discutido com paixão e até mesmo se tornou uma fonte de esperança política".
"Hoje, em contrapartida, Kafka é uma estrela, uma espécie de figura pop. Os originais escritos com sua caneta se tornaram objeto de culto, cuja propriedade poucos podem se permitir. Surgiu até mesmo uma espécie de turismo literário em todos os lugares que freqüentou, cercados por uma aura que quase nada mais tem a ver com o nome do indivíduo histórico e representam muito mais um conceito, uma marca comparável às de Mozart, Einstein ou Marilyn Monroe."
Há mais de 13 anos, Stach se ocupa pacientemente em desmontar as lendas do edifício literário desse clássico moderno.
E o segundo volume de sua enorme biografia, "Die Jahre der Erkenntnis" (Os Anos do Conhecimento, ed. Fischer, 726 págs., 29,90, R$ 73), concentra-se na fase final da carreira do autor, entre 1915 e 1924, marcada pela doença, pela guerra e pelo desmoronamento de suas relações.
"A guerra arruinou sua vida", reconhece. Mas, em contrapartida, a experiência profissional direta de Kafka -ele trabalhou com seguros à época- com a nova dimensão tecnológica do conflito, a guerra total com armas químicas e a legião de mutilados a ser administrada pelos Estados-maiores no front doméstico se transfigurou, em sua escrita, em uma opção pela parábola e por um depuramento formal extremos.
Para Stach, Kafka foi, de fato, o único escritor do idioma alemão à época a perceber a essência do mundo administrado emergente.
Sua biografia pode ser lida como um romance em aberto, no qual nos confrontamos com todas as virtualidades de decisão que não se tornaram realidade na vida de Kafka.
De Hamburgo, o autor concedeu uma entrevista à Folha, de que seguem abaixo os melhores trechos.
FOLHA - Uma das principais lendas desconstruídas em sua biografia é a de que Kafka teria se recolhido a um mundo de fantasias privadas, enquanto a velha Europa desmoronava sob a Primeira Guerra. De que modo a experiência da guerra se espelha em sua obra?
REINER STACH - Kafka não escreveu nenhum texto tematizando diretamente a guerra, nenhuma narração em que a guerra seja pano de fundo. Proliferou, depois da guerra, uma "literatura de trincheiras" dos retornados do front, mas ele não podia [escrever isso], pois não viveu a guerra como soldado.
Essa experiência se espelha na forma, não no plano temático. Até 1916 seus textos apresentavam uma dimensão lúdica, um gozo na construção de situações fantásticas, ele jogava com a literatura, como em "A Metamorfose", por exemplo.
Vemos aí um enorme prazer na narrativa de uma situação absurda, na exploração e na construção diferenciada de uma lógica fantasmagórica até seus limites. Ele procurava, por assim dizer, desdobrar essa fantasia inicial em todas as suas possibilidades.
A guerra lhe tirou esse prazer lúdico da literatura. Até a escrita de "O Castelo", ainda irão transcorrer oito anos de intervalo, mas não vemos mais nesse período nenhuma cena construída, apenas parábolas curtas. Kafka deixa de ser um "narrador": torna-se escritor, mas não mais um narrador.
FOLHA - Seria possível afirmar que essa "nova aparição", esses homens mutilados com membros protéticos, já constitui, em si, a caricatura de um ser humano e que a opção pela parábola parte de uma imagem real, que em si já é uma redução?
STACH - Sim, mas o que é mais importante é que não se trata, nesse contexto, do destino individual, mas sim coletivo, das massas emergentes, derivado da nova relação com a máquina.
A máquina torna-se mais importante que o indivíduo.
Essa relação se alterou para sempre com o emprego de armas químicas, com as novas linhas de produção e com a simbiose entre o front doméstico e o campo de batalha na "mobilização total" de recursos humanos e materiais.
Surge, na época, o novo conceito da "batalha de material".
A superioridade do material decide a guerra -esse era o ditado. Havia até o conceito de "homem-material". Os homens se tornam apenas uma engrenagem, entre muitos outros recursos, numa luta industrial. Kafka experimentou as conseqüências desse estranhamento completo em sua profissão, todos os dias. Ele foi o único escritor em língua alemã, à época, que viu esse processo.
Em outras palavras, eles não viram, como Kafka, a guerra na sua dimensão "administrada".
Outros escritores, como Egon Kirsch, viveram a experiência do front, mas enxergavam apenas uma parte desse novo maquinário e não seu lado decisivo: o front doméstico.
Kafka era amigo de Kirsch, que vivenciou massacres terríveis no front, mas não dispunha de um conceito de que a guerra se transformara radicalmente na administração das massas civis, com a participação, na retaguarda, de mulheres e escritórios de administração de apólices de seguros.
Daí surgiu também o conceito de guerra total, depois operacionalizado pelos nazistas.
Nesse sentido, não se trata de fantasias pessoais, embora a lenda afirme que Kafka era um neurótico que padecia de fantasias compulsivas e perdera o contato com a realidade.
Trata-se de uma perversão pública, e não privada. Ele compreendeu a guerra não como flagelo, mas como perversão coletiva, uma perversão real, organizada e administrada.
FOLHA - A que conhecimento o sr. se refere no título de seu novo livro?
STACH - Até a Primeira Guerra, o conhecimento não era provavelmente o mais importante para Kafka, mas sim a tomada de decisões corretas: casar, constituir família ou tornar-se escritor e deixar o emprego.
E essas opções, que estavam em aberto até 1914, foram se reduzindo, não apenas em razão da eclosão da guerra, mas também da doença [Kafka morreu de tuberculose].
Houve nesse entretempo uma fase em que ele não escreveu muito, entre 1915 e 1916.
Então, a partir do final de 1917, delineia-se em seu percurso uma outra forma de literatura. Seus textos tornam-se cada vez mais abstratos e parabólicos e visam, em sua concisão extrema, uma certa forma de conhecimento, que ele atinge entre os anos de 1917 e 1919: a constatação de que tem de viver com o que lhe sobrou.
Não há mais sentido em forjar novas opões, mas sim em fazer o balanço daquele saldo e viver com uma certa dignidade.
Esse conhecimento significa que, em outras palavras, ele precisa de uma atitude estóica, uma atitude transfigurada em seus textos, como um ponto alto da forma que é o romance inacabado "O Castelo".
Trata-se de um "estoicismo da forma", uma clareza que decorre não da resignação ou do desespero, mas do realismo sobre as opções ainda disponíveis. Pode-se falar das próprias perdas sem desespero.
FOLHA - O sr. cita no início do livro o ensaio de Cynthia Ozick "The Impossibility of Being Kafka" (A Impossibilidade de Ser Kafka). Não haveria uma contradição entre sua pretensão literária de escrever uma biografia romanceada, que presentifica e mergulha em cada cena dessa vida?
STACH - Toda biografia que pretenda abranger substancialmente seu objeto não pode deixar de ter uma pretensão literária. Nenhuma biografia cronológica pode ser bem-sucedida.
Não se pode, como biógrafo, descrever a vida de alguém como se fosse um encadeamento causal.
Quando retrato Kafka numa determinada passagem de sua vida, tenho de incluir todas as possibilidades sobre como ele poderia ter tomado determinada decisão. Caso contrário, não se entende a decisão.
Faço uma analogia: se você tiver de descrever como jornalista uma audiência e descrever apenas o que foi dito pelo acusado ou pelo juiz, os leitores não entenderão o que se passou, pois não conhecem as regras processuais.
Quando o acusado afirma algo, é preciso levar em conta quais outras opções ele dispunha naquela dada situação processual. Sem essas opções, não há como avaliar o procedimento da defesa.
FOLHA - A relação de medo e prazer com a herança judaica em Kafka é extremamente complexa.
STACH - O problema é que Kafka se sentia extremamente atraído pela cultura e pela identidade judaicas, mas a relação com os judeus reais que conhecia, a maioria em Praga, é problemática -até os desprezava. Numa carta, afirma: "É tenebroso sempre precisar da polícia para fazer valer seus interesses". Ele sempre se expressou de maneira agressiva contra os judeus que não sabiam o que queriam e sempre chamavam a polícia quando se sentiam ameaçados, definindo-se como vítimas.
Quando falo em vítima, falo no sentido negativo da vítima.
Ele imaginava, com o sionismo, uma definição positiva da identidade judaica.
Mas não existe nenhuma passagem em que se queixe do anti-semitismo -algo como "nós, os judeus, somos sempre perseguidos"-, mas há muitas passagens em que se refere de maneira extremamente desabonadora aos próprios judeus que se definem como vítimas e que procuram tirar partido disso. Ele tinha nojo dessa atitude.
É muito difícil, depois do Holocausto, contextualizar essa posição, mas Kafka não podia imaginar a dimensão que o anti-semitismo organizado atingiria na década seguinte.
Que o anti-semitismo existisse, isso lhe parecia evidente, mas, para ele, se tratava de restabelecer a dignidade.
Kafka gostaria que os judeus reconquistassem a própria iniciativa, e isso lhe parecia o ponto central do movimento sionista. Mas também ironizava sua ideologização e, sobretudo, as disputas internas.
FOLHA - A guerra cortou o contato de Kafka com sua noiva, Felice Bauer, mas o sr. lança um novo olhar sobre esse relacionamento...
STACH - O que pude conseguir a partir do contato com a família é que Felice Bauer, na verdade, omitiu e silenciou para Kafka muitas informações decisivas sobre sua família, para protegê-la dele.
Certamente, ela não tinha nenhuma confiança em Kafka.
A história da família dela era um catálogo de catástrofes.
Havia na família uma irmã com um filho ilegítimo que teve de ser escondido da avó.
Felice tinha um irmão que roubara a firma em que trabalhara e, para não terminar na cadeia, teve de fugir para os Estados Unidos.
Ela pagou a fuga com o dinheiro aparentemente destinado ao casamento com Kafka.
Pagou a passagem e ainda enviou dinheiro -na verdade, quase todas as suas economias.
Ele percebeu, é claro, que ela lhe escondia muitos detalhes, mas, cada vez que ele perguntava sobre isso, ela silenciava ou lançava mão de subterfúgios.
Ela simplesmente mentia, e Kafka não conseguia compreender. Ele lhe dizia: "Você pode enganar seus pais, mas não a mim".
É interessante em sua obra o papel das mulheres como instâncias mediadoras da Justiça, como em "O Processo", em que são passagens ou portas entre as várias instâncias, dizem meias-verdades. Nesse romance, Kafka erotizou o próprio processo.
FOLHA - O sr. compara a imaginação de Kafka a um "cinema permanente". O que significa isso?
STACH - Essa imaginação cinematográfica você encontrará em muitas passagens como, por exemplo, na "Carta ao Pai": "Seria como se você ocupasse todo o mundo com seu corpo e sobrassem para mim apenas os espaços que ele não sombreia".
Há aqui uma típica fantasmagoria, não do menino, mas do adulto Kafka. Ele quer dizer algo de importante, mas encontra apenas uma imagem -uma imagem muito boa, por sinal.
Esse é um exemplo da maneira como ele pensa com imagens. Vemos também nos "Diários" como pensava intensivamente com imagens elegantes.
São metáforas que reaparecem nos romances e parábolas.
Kafka tinha que lutar constantemente com esse fluxo de imagens -o que também era um fardo.
Ele mesmo escreveu nos "Diários": "Tudo me faz pensar imediatamente". Se observa alguém na rua, esse instantâneo se desdobra numa reflexão de meia hora: como é sua família, como a pessoa se comportaria ao retornar para casa etc.
FOLHA - Para dizer com Adorno, ele fixa aquele momento mimético pré-discursivo da linguagem -o gesto?
STACH - Sim, o gesto é decisivo na linguagem. Ele descreveu o encontro com várias pessoas antes da guerra em seus "Diários", em um contexto em que não usa palavras, mas apenas a pantomima.
Ele descreve um encontro com Max Brod, em que este abotoa e desabotoa o paletó de tão nervoso, e como os judeus orientais encantavam as mulheres, mas não há nenhum conteúdo discursivo.
FOLHA - O conjunto do legado privado de Max Brod ainda não é totalmente acessível. Quais foram suas dificuldades com esse material?
STACH - É uma história complicada. Ele é muito vasto, entre 15 mil e 20 mil cartas, não apenas endereçadas a Kafka, mas a interlocutores famosos, como escritores, jornalistas etc.
Existem também diários não publicados e alguns cadernos de notas que datam de 1901, antes que ele conhecesse Kafka, e um outro caderno já a partir do início da relação, no qual provavelmente se encontrem muitas informações inéditas da fase juvenil de Kafka.
Na verdade, seu legado está dividido entre Zurique [na Suíça] e Tel Aviv [em Israel].
O problema é que todos os documentos em Tel Aviv se encontram numa residência particular há décadas, e os herdeiros desejam vendê-lo, mas o Arquivo Nacional de Jerusalém se pronunciou para que não deixem Israel.
O Arquivo Nacional de Marbach [Alemanha] mostrou também interesse em adquirir parte do arquivo. Isso poderá se transformar numa disputa judicial, mas até agora esse legado de propriedade particular, depositado num quarto repleto de papéis em Tel Aviv, está indisponível.
FOLHA - O que é verdadeiro na lenda de que Kafka pretendia destinar todos seus escritos ao fogo?
STACH - É uma meia verdade.
Há duas folhas nas quais Kafka solicita que os textos inacabados em suas gavetas fossem incinerados.
E, na medida do possível, Brod deveria recuperar as cartas que estavam com Felice e outras pessoas. Mas trata-se apenas dos documentos privados e dos fragmentos.
Kafka não levantava nenhuma objeção aos textos já publicados, como, por exemplo, o último volume de "O Artista da Fome" -ele desejava que fosse publicado de qualquer maneira. O testamento refere-se apenas aos textos inacabados. E Brod retrucou, dizendo que não poderia fazer isso.
FOLHA - O que permaneceria, além das lendas, como o traço mais moderno e realista de sua obra?
STACH - A administração das massas. Com a web, os governos passam a acumular cada vez mais dados privados em tempo real. É uma forma de controle jamais imaginada antes. A fascinação por Kafka decorre do fato de que ele formulou a experiência humana em seu nível mais fundamental e instintivo.
Foi uma experiência que superou desde o início os limites da língua alemã até se tornar um lugar-comum da condição absurda moderna, do estar entregue a mecanismos de controle invisíveis.
Os movimentos especulativos da Bolsas nos mostram todos os dias, com uma clareza assombrosa, como decisões baseadas em detalhes aparentemente racionais potencializam uma reação irracional.
O acesso e o acúmulo de dados privados dos cidadãos podem ser justificados pelos governos como decisões racionais, mas a soma dessas decisões leva a uma rede fora de controle até dos próprios governos e que se volta contra seu controle.
Mais!, Folha, 10.08.2008
domingo, 21 de agosto de 2011
Le Vent Nous Portera (Noir Desir) - Sophie Hunger - Boot Boo Hook Festival 2011 Hannover Linden Faust 21.08.2011
É fim de tarde em Hannover, no Linden, e a voz doce de Sophie Hunger, ao crepúsculo, no gramado, à margem do Ihme, me lembra o que procuro sempre esquecer nestes dias sem ontem, aqui na praia da eternidade, que, embora meu endereço seja, por acaso, na rua ao lado, não tenho mais lar, "Heimweh", saudades de uma vida num universo paralelo do que nunca fui, sou, ou teria sido, apenas infinitamente só.
It is late afternoon in Hanover, in Linden, and the sweet voice of Sophie Hunger at twilight on the dawn outside the Ihme shores reminds me of what I always try to forget in these these days without yesterday here on the shore of eternity, that although my address is, by chance in the next street, I have no more home, "Heimweh", longing for a life in a parallel universe in which I have never been or would ever had been, only infinitely alone.
Je n'ai pas peur de la route
Faudrait voir, faut qu'on y goûte
Des méandres au creux des reins
Et tout ira bien
Le vent l'emportera
Ton message à la grande ourse
Et la trajectoire de la course
A l'instantané de velours
Même s'il ne sert à rien
Le vent l'emportera
Tout disparaîtra
Le vent nous portera
La caresse et la mitraille
Cette plaie qui nous tiraille
Le palais des autres jours
D'hier et demain
Le vent les portera
Génétique en bandoulière
Des chromosomes dans l'atmosphère
Des taxis pour les galaxies
Et mon tapis volant lui
Le vent l'emportera
Tout disparaîtra
Le vent nous portera
Ce parfum de nos années mortes
Ceux qui peuvent frapper à ta porte
Infinité de destin
On en pose un, qu'est-ce qu'on en retient?
Le vent l'emportera
Pendant que la marée monte
Et que chacun refait ses comptes
J'emmène au creux de mon ombre
Des poussières de toi
Le vent les portera
Tout disparaîtra
Le vent nous portera
O Vento Nos Guiará
Eu já não tenho medo do caminho
É preciso ver, é preciso provar
Do espaço vazio que há em seu peito
E tudo ficará bem
O vento levará
Seu pedido para a Ursa Maior
E a trajetória da sua raça
Um momento confortável
Mesmo que isso não seja útil
O vento levará
Tudo vai desaparecer mas
O vento vai cuidar de nós
O cuidado e o desprezo
E essa ferida que nós mantém divididos
O palácio de cada dia
De hoje e de amanhã
O vento os levará
A genética em suas costas
Cromossomos na atmosfera
Táxis pelas galáxias
E meu tapete voador
O vento os levará
Tudo vai desaparecer mas
O vento nos guiará
O perfume dos nossos anos mortos
Que batem em sua porta
Infinidade de destinos
Nós vivemos alguns, mas qual queremos conservar?
O vento levará
Enquanto a maré sobe
E todo o mundo está fazendo contas
Eu sigo sua sombra
Pedaços de você
O vento levará
Tudo vai sumir mas
O vento nos guiará
weil der wind uns tragen wird
ich hab keine angst vor dem weg,
weil ich ihn sehen will, ihn auskosten will
jede biegung, jede windung, bis es gut ist
weil der wind uns tragen wird
so wie all das, was du den sternen sagen würdest,
wie der lauf der dinge
wie die zärtlichkeit und der schlag,
wie anderer tage paläste, von gestern, von morgen
ein flüchtiger eindruck wie von samt
und dann kommt der wind und trägt alles davon
unser erbgut, unsere gene nimmt er,
trägt sie in die luft, in die atmosphäre
in die galaxi, wie ein fliegender teppich
der duft der jahre davor und all das, was einlass verlangt an deiner tür
diese unendlichkeit von schicksalen, davon man eines lebt
und was bleibt von alle dem zurück?
eine flut, die beständig steigt
eine erinnerung, die jeder ab und zu hat im herzen des schattens
der vor mir bleibt,
nehme ich mit mir die spur, die von dir bleibt
bis der wind alles davonträgt
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Faun - Sieben
7 Rosen roter wie Blut,
7 seidene Hemden dazu,
7 Namen, die geb ich dir,
doch deinen Ring, den will ich dafür.
7 Rosen roter wie Blut,
7 seidene Hemden dazu,
7 Namen, die gibst du mir,
doch meinen Ring, den halt ich bei mir.
7 Rösser, so weiß wie der Schnee,
7 Schwäne im stille See,
7 Falken, die geb ich dir,
doch deinen Ring, den will ich dafür
7 Rösser so weiß wie der Schnee,
7 Schwäne im stillen See,
7 Falken, die gibst du mir,
doch meinen Ring, den halt ich bei mir.
Du wirst ziehen für immer und mehr,
dein Glück liegt 7 schritte vor dir.
7 Schritte und ein goldenes Land,
zeige ich dir für den Ring, der mich bannt.
Nein du wirst ziehen für immer und mehr,
die Welt misst 7 Schritte zu dir.
In deiner Welt, da läg ich falsch
und meinen Ring legst du mir um den Hals.
Nein du wirst ziehen für immer und mehr,
die Welt misst 7 Schritte zu dir,
7 Schritte sind 7 zu viel,
Wege führen weiter ohne Ziel.
http://www.faune.de/web/index-en.html
domingo, 14 de agosto de 2011
O Fim dos Profetas - Entrevista com o Publicista e Redator de Política do “Die Zeit” Richard Herzinger* (Mais!)
“República sem Centro, um Ensaio Político” Siedler, Berlim, 2001
Entrevista com o publicista e redator de Política do “Die Zeit” Richard Herzinger
*Esta é a versão original de minha entrevista realizada com o redator de política do semanário "Die Zeit", às vésperas das eleições gerais de 2002, sobre seu trabalho ensaístico até então, editada e publicada pelo caderno Mais!, da Folha, em 07.07.2002. Conheci Richard Herzinger em Berlim, em 1992, quando fora bolsista do Instituto Goethe de São Paulo, durante meu mestrado sobre a poética do dramaturgo da ex-RDA Heiner Müller, na UNICAMP. A influência de sua dissertação e dos pontos de vista de seu então ex-orientador Horst Domdey, da Freie Universitaet Berlin, sobre meu trabalho, naquele estágio, impreganaram, definitivamente, não apenas minha visão sobre o processo de ocidentalização do país desde o Milagre Econômico, os limites e perspectivas da Reunificação, ainda incipiente com dois anos, mas, sobretudo, sobre a dinâmica peculiar dos debates intelectuais e seu “pathos” moralizante numa esfera pública que se remodelava a passos acelerados depois de 40 anos, ainda engessada sob o fantasma do fogo cruzado da propaganda ideológica, sobretudo em Berlim. Pois era a própria “normalização” mesma da vida intectual num país integrado finalmente na OTAN e na dianteira da integração européia com o então Chanceler Kohl que retirava a última máscara dos supostos intelectuais "guardiães da moral", aqui também conhecidos como "Praeceptor Germaniae". É difícil escolher qual seria o pior deles, páreo duro, mas a minha escolha recai sobre o arrogante Guenther Grass do SPD, mas isto já e uma outra história. Como se diz por aqui:„Wer zu spät kommt, den bestraft das Leben“. Traduzindo o que Gorbachev disse a Honecker: "Quem chega ou acorda tarde demais, ou perde o passo, é punido pela vida". Havia também uma guerra selvagem à porta nos Balcãs, visitei vários alojamentos de refugiados e vi coisas na TV que não chegavam ao Brasil de Collor às vésperas de ser chutado do Planalto, como, por exemplo, um raid de uma milícia sérvia numa aldeia em tempo real e, depois de abaterem seus inimigos, urinavam sobre os cadáveres em triunfo. Todos os lados desta guerra bestial eram selvagens. Eram imagens que mostravam como aqueles antigos intelectuais sabichões não tinham mais nada a dizer. Foi o início de uma profunda ruptura em meu espírito e, por que não dizer, também, de minha visão sobre a universidade e sua hierarquia, um processo que culminou no 11 de setembro e na maneira traumática e extremamente pessoal em que o experimentei. Mais do que isto, a reflexão de Herzinger representou em minha biografia, e quase 20 anos depois entre os alemães, o encontro com uma visão genuinamente liberal do que seja uma sociedade aberta, seus desafios, da imensa tarefa civilizatória e pacificadora que a hegemonia cultural americana desempenhou sobre uma parcela da intelectualidade européia desde o Plano Marschall e, sobretudo, do valor da democracia e da expressão “mundo livre”, nome de seu blog no “Die Zeit”, “Freie Welt” (http://freie.welt.de/). Pela primeira vez na vida, deixei de sentir aquele complexo “vira-latas” e provinciano da nossa esquerda local e seu medo diante da pluralidade do debate com "Weltanschauungen” distintas, igualmente válidas e antagônicas. Uma coisa é ler Max Weber sob o conforto refrigerado do debate acadêmico do sexo dos anjos, outra coisa negociar politicamente, "administrar" este antagonismo na prática. A despeito de minha visão cada vez mais endurecida e desencantada das entranhas da sociedade alemã, sobretudo nos últimos cinco anos, desde a reforma Hartz IV, não deixo de admirar e invejar a capacidade gerencial única que os alemães têm em se antecipar e prevenir o pior na sociedade, com um sistema burocrático que detecta prematuramente encadeamentos explosivos. Mas como disse, isto mudou radicalmente com a maior reforma social do pós-Guerra, o pacote conhecido como Hartz IV, sobre o qual escrevi, com o ensaísta Robert Kurz, um grande dossiê para a revista eletrônica "Tróprico" e o antigo caderno "Mais!" da Folha de São Paulo, uma espécie de ABC para os brasileiros. Ele pode ser comparado quase a um gigantesco experimento de darwinismo social. Desde então, a velocidade das mudanças sociais na Alemanha suplantou a capacidade administrativa daquilo que os alemães denominam a grande "Máquina Social" ("Die grosse soziale Maschine"), ou o JobCenter, Arbeitsamt, Departamento de Trabalho, mas sobretudo aquilo que eu, José Galisi Filho, chamo de jornalismo preguiçoso da redações brasileiras, uma mescla de fantasias acadêmicas, complexo vira-lata, já que muitos deles idealizam a Alemanha como a Disneylandia da "Cultura", "Filosofia" e "Artes", do intercâmbio e turismo acadêmicos CAPES ou DAAD, a maioria desses jornalistas viaja a convite do governo alemão para coberturas, pouco importa, nada disto descreve mais a realidade social de um país em declínio muito rápido, que inevitavelmente levará a Europa consigo. Portanto, esta conversa ocupa um lugar muito especial em minha reflexão e a considero mais atual do que na época diante da miséria, da indigência e da estagnação do presente e daquilo que poderia ser também considerado a nova "hora zero" (o mito da Stunde Null") alemã, a prórpia Reforma e as cesuras que ela radicalizou no "Mitte", no centro. Quase uma década se passou e de linha de frente e foco intelectual da Guerra Fria, o debate e as polêmicas alemãs encolheram também para o tom acanhado e moralizante da província, num pais para lá de envelhecido em seu parlamento, com dificuldades em compatibilizar sua auto-imagem e peso econômico em declínio com seu tamanho real na nova ordem internacional. Há alguns meses atrás, a revista "Spiegel" chegou à conclusão de que a coalizão precária de Angela Merkel, e a paralisia que a sustenta neste vácuo da história, representavam, sem dúvida, a “pior elite política do pós-guerra” da República Federal. E na verdade isto ainda é um eufemismo. Não se trata da já quase proverbial "mediocridade" pessoal da Chanceler (a palavra mediocridade aqui tem um sentido positivo de equilíbrio na tradição burguesa do "Aufklaerung") e de sua falta de imaginação e coragem políticas, “vazadas” recentemente nos Wikeleaks com estardalhaço e a maioria dos alemães deu de ombros. Não se trata dessa marca pessoal. Merkel é quase um subproduto involuntário de uma visão tecnocrática da “politica como vocação” do antigo SED e, se vem administrando o colapso de seu país, como se diz por aqui, em pequenas prestações, tocando sua Alemanha como uma Caixa Econômica Estadual ou "Sparkasse", ou em nosso português coloquial, empurrando com a barriga, isto não significa que a história real esteja de férias, aposentada em um ressort mediterrâneo. Na verdade, nesta altura, é até indiferente se Merkel ou um “dummie” ocupem a cadeira já ocupada por europeus legendários como Helmut Schmidt e Willy Brandt, porque nada mais impedirá o declínio inevitável da Alemanha SA, ou Deutschland AG diante da ascensão dos novos atores. O que esta em jogo é, sim, e esta é a última trincheira, o fim definitivo do “projeto europeu”, do euro e da esperança de que ainda exista sobre a superficie do planeta um último soldado do “New Deal”. Na metade de maio , o filósofo Juergen Habermas acusou pessoalmente Angela Merkel de trair este “projeto” europeu com sua miopia doméstica e uma tradição alemã que se iniciou com a “Ostpolitik” no início dos setenta para a construção da Casa Européia, como se fosse possível voltar-se para os "containers", para a velha moldura dos Estados nacionais e sequer nisto, ou seja, a dissolução do antigo sistema prevedenciário, sua coalizão demonstra competência. A Reunificação alemã fora pensada, desde o início, como um projeto europeu, na verdade, sua última chance na História, não haverá outra. O fim desta utopia é uma perda de dimensões civilizatórias ainda não mensuráveis. Merkel e Sarkozy serão, sem dúvidas, uma nota de rodapé dos livros de história, quando pensamos em Willy Brandt ou Helmut Schmidt e existem ainda reservas intelectuais neste continente para salvar este projeto. Mas o que é desolador neste momento é a arrogância e vacuidade dessas personagens. Agosto de 2011
Na eleição de 1998, Gerhard Schroeder chegou ao poder, propondo a construção de um "novo centro" político na Alemanha. Desde a criação da República Federal, em 1949, as coalizões que conquistaram o centro do eleitorado mantiveram a base de um consenso estável sobre o qual a Alemanha reencontraria seu caminho para a unidade.
É com surpresa então que o novo livro do crítico de literatura e redator de política do diário "Die Zeit", Richard Herzinger, "Republik ohne Mitte" [República sem Centro, ed. Siedler], propõe a tese de que, desde a reunificação das duas Alemanhas, em 1990, esse centro meridiano da política está vazio, e essa tomada de consciência levaria finalmente a mudanças radicais na esfera pública do país, sobretudo entre seus intelectuais.
O livro é também a síntese do pensamento de um dos mais brilhantes intelectuais da nova geração de Berlim, cuja carreira de jornalista teve como eixo um levantamento exaustivo das figuras do conservadorismo político alemão -em especial seu antiamericanismo- e começou com um trabalho acadêmico fulminante sobre o dramaturgo Heiner Müller -"Masken der Lebensrevolution" (Máscaras da Revolução, ed. Wilhelm Fink, 1992). Herzinger buscava na obra de Müller aquilo que o próprio autor apontava como as duas premissas de seu trabalho: 1) distanciar suas idéias e visão de mundo como um "material" da atualidade e descobrir, assim, qual era o seu significado político real; e 2) julgá-la sem tabus em razão disso, uma estratégia que Müller empregara sistematicamente com Brecht.
Distanciando-se de uma germanística desconstrutivista, descritiva e laudatória, que fizera da intertextualidade da obra e seus sistemas de auto-referências à tradição literária um quebra-cabeça do qual nenhuma citação escapava ilesa, Herzinger se propôs a traduzir a retórica monumental das imagens de Müller para o presente. Herzinger não acreditava que Müller tivesse superado as "premissas escatológicas" e "maniqueístas" de uma "visão de mundo" arraigada na ex-República Democrática Alemã (RDA) desde sua constituição, isto é, uma visão antiocidental que se afirmara desde a luta contra Brecht e o "formalismo" e que havia determinado a organização da esfera cultural na RDA.
Ao estalinizar o partido em todas as suas esferas no início dos anos 50, Walter Ullbricht [1893-1973, estadista alemão que foi um dos responsáveis pela criação da RDA e do Muro de Berlim" e seu grupo partiram na época para uma campanha difamatória contra a obra de Brecht e seus discípulos. E foi justamente nesse momento que a denúncia do "cosmopolitismo" representado pelo "barbarismo da cultura americana" mostrava que, tanto à esquerda quanto à direita, havia uma unidade indissolúvel na tradição alemã de recusa ao Ocidente -e, durante a Guerra Fria, à América.
De fato, Herzinger mostra, na entrevista abaixo, como Heiner Müller reaviva as principais coordenadas do complexo cultural conservador da crítica civilizatória alemã, a saber: a oposição entre cultura e civilização sob o conceito de decadência; o ressentimento contra a sociedade liberal como lugar da massificação e comercialização da alma e do espírito; e sobretudo a recusa ao Ocidente e a seu "imperialismo tecnológico", a partir da qual surge a idéia alternativa de que o socialismo deveria opor uma "outra trilha temporal" e uma qualidade mais "vital" e "orgânica". A busca incessante de Heiner Müller por um "outro" e uma "diferença" na ruptura do "continuum" benjaminiano encontraria assim os mais eminentes fantasmas românticos.
Essas posições, longe de serem "críticas", legitimariam o socialismo real no seu ocaso. O mais interessante no trabalho de Herzinger, contudo, é seu pressuposto teórico: no exato momento em que o socialismo desaparecia, ele não via mais sentido em usar as coordenadas direita ou esquerda, preferindo se servir das categorias de ocidental ou antiocidental de modo a encontrar um denominador comum diante da irracionalidade do presente: terrorismo ecológico, nova e velha direitas etc.
José Galisi Filho – Desde a reunificação, o Sr vem enfatizando a continuidade das figuras e dos afetos anti-americanos da inteligência alemã, a saber, do Ressentimento contra o Ocidente, originário da crítica romântica de início do XIX à civilização e à Decadência. Já em seu livro “Profetas dos Fins dos Tempos ou a Ofensiva dos Anti-Ocidentais: Fundamentalismo, Antiamericanismo e a Nova Direita”, 1995, o Sr. descrevia esses afetos, que uniam direita e esquerda numa zona morta marcada pelo declínio do pensamento utópico. Quais seriam, resumidamente, as figuras e os atores deste processo?
Richard Herzinger – Comecei meu trabalho acadêmico sobre Heiner Müller (“Masken der Lebensrevolutionen”, Wilhelm Fink, 1992) no início dos noventa sob de pano de fundo desta reviravolta, a saber, a questão chave do papel da Alemanha no mundo pós-Guerra Fria. Naquele momento, esta questão ainda levantava o fantasma do caminho “alternativo” da Alemanha à modernidade como “Sonderweg”, ou seja, o fascismo.
Era natural que, diante do rápido desabamento do Império Soviético, a questão alemã, o fantasma desse “Sonderweg” alemão estivesse na ordem do dia. Ninguém sabia, de fato, aonde levava aquela estrada.
A Alemanha reunificada seria integrada finalmente ao sistema cultural ocidental, liberal, ou a Alemanha iria procurar novamente um alinhamento ao Leste, como no passado a Prússia? Em outras palavras, retomaríamos o romantismo político que nos conduziu à catástrofe, ou seríamos um “Novo Centro” (“Neue Mitte”) no coração da Europa, uma ponte entre o Ocidente e o Leste? Como era natural, esta questão não tinha uma resposta clara e até hoje permanece aberta.
No passado, a centralidade da Alemanha foi um fator que acentuou suas ambições hegemônicas no interior do continente e conduziu à catástrofe do nacional-socialismo. Com a divisão do país depois da derrota e a assimilação compulsória de sua parte ocidental ao sistema de segurança da Nato com Adenauer, a República Federal iniciou um caminho democrático num sistema de valores liberal, enquanto o outro lado permanecia atrelado à hegemonia do bloco soviético.
A Alemanha se reconhece depois da Reunificação como parte constitutiva deste sistema ocidental, mas o que é o “Ocidente” depois da Reunificação, quando os blocos deixaram de existir? Até vinte anos atrás, seria muito fácil responder à questão onde ficava o Ocidente. Mas com a desnacionalização dos Estados e a globalização esta questão assume um novo significado.
Em meu trabalho acadêmico e agora como redator de política do “Die Zeit”, não compreendo o Ocidente como uma instância metafísica, substancial, isto é, algo que pudesse ser definido a priori, ou de maneira unívoca, nem tampouco uma ideologia precisa, ou seja, que o Ocidente seja idêntico a “Weltanschauung” judaico-cristã. As sociedades modernas e seculares são, pela definição weberiana, plurais e antagonísticas.
O Ocidente também não é idêntico à democracia, não obstante, a democracia parlamentar seja um de seus apanágios. Ocidente significa, para mim, antes de tudo, a liberdade de ter a própria opinião, desde que esta opinião não seja inimiga declarada da democracia.
O segredo do Ocidente é que ele coloca esta questão: como a sociedade pode organizar-se e resolver seus complexos problemas culturais, sociais e econômicos dentro das regras do jogo da liberdade, sem que o indivíduo seja aniquilado pelo domínio cego do coletivo,
como no fascismo, sem que a liberdade que temos como meta seja ameaçada, mesmo quando este coletivo se veja confrontado com uma grande ameaça, como hoje, o terrorismo internacional.
Esta é questão aberta do Ocidente, que se reconhece plural, mas que protege, antes de tudo, as minorias contra a ditadura da maioria, ou seja, apenas quando o direito do indivíduo é garantido é que existe a democracia, senão é a ditadura do coletivo.
Dito de maneira sumária, a reunificação alemã emparedou todos os esquemas tradicionais de pensamento sobre os quais se alicerçava a hegemonia tutelar de nossas elites intelectuais e pulverizou seu “centro”, ou melhor, a ilusão de um centro substancial em torno da qual elas exerciam suas prerrogativas em função de um pensamento totalizador na busca de uma centralidade atribuidora de sentido, que se traduzia, até a Reunificação, politicamente, em torno do “consenso” que fundou a República Federal desde os anos cinqüenta. As respostas intelectuais a este processo reabilitaram com toda a força a matriz, a usina de força, por assim dizer, de nossa identidade cultural: a crítica romântica à civilização que era sobretudo impregnada por afetos anti-ocidentais.
Seria quase que impossível resumir todos os matizes desta superfície cultural, mas como escrevi um trabalho acadêmico sobre ele, destacaria o exemplo de Heiner Müller, que morreu no final de 1995.
Para entender melhor o contexto em que se coloca meu trabalho, teria de fazer uma pequena digressão. Nos anos setenta, surgiu na literatura da ex-RDA o que se convencionou denominar na crítica literária da República Federal de “Mudança de Paradigma Civilizatório”.
Do nosso ponto de vista da República Federal, parecia que esta mudança temática indicava uma atitude crítica e distanciada dos autores da inteligência leal da RDA à estagnação do socialismo real, Autores como Christa Wolf, Volker Braun e, sobretudo, Heiner Müller, passaram a tematizar em ensaios, romances e peças explicitamente motivos básicos da crítica à civilização, em especial, dentro da tradição frankfurtiana. Christa Wolf via em “Kassandra” o Patriarcado como matriz do desenvolvimento catastrófico do Ocidente.
Já em Müller, vê-se com toda a força em peças como “Filoctetes”, mas sobretudo “Gundling”, uma peça sobre Lessing e a relação entre o intelectual e o poder, uma tematização e criminalização nominal do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento”.
A minha tese, que acabou desencadando uma polêmica, é que na verdade esta “guinada” à crítica civilizatória tinha um caráter conservador, na medida em que esta inteligência leal legitimava seus privilégios, sacralizando o socialismo real, e recuando à matriz do pensamento romântico alemão. Eu procurava uma unidade mais profunda da inteligência alemã depois do regime da divisão, de fato, minha especialidade era o próprio pensamento conservador e suas figuras, que reaparecia naquele contexto com toda a força.
Müller representava a consciência de um estamento intelectual da ex-RDA, que pretendia manter a utopia de um socialismo “alternativo” depois do colapso do Partido da Unidade Socialista (SED), já que Müller era também uma, por sua vez, uma dissidência, porém “integrada”. A Reunificação alemã foi experimentada por Müller com um sentimento trágico de profunda infelicidade pessoal. Ela representava a anexação da RDA ao Ocidente, à “plutocracia” do Marco, ao “ditado” do Ocidente.
Foi um grande golpe intelectual. Era como ser ocupado por um Estado inimigo, por uma potência estrangeira, como sua autobiografia “Guerra sem Batalha” comprova. Müller repetia nesses anos que a “democracia era tediosa” para um artista, em outras palavras, a vitalidade artística dependeria da “pressão da experiência autêntica”, uma idéia benjaminiana de Müller. Ora, a democracia é tudo, menos “tediosa”, a democracia formal, que ele desprezava, era sinônima de “consumo”, do entorpecimento da sensibilidade pela indústria cultural, pois a historia do socialismo real fora feita de “sacrifícios” e agora, com a desaparecimento da RDA, desapareceria também a memória da experiência autêntica do fascismo que esta inteligência leal encarnava e ritualizava.
Mas a questão é: o que se esconde nesta visão de mundo: quase todos os topoi, com poucas exceções, de uma fantasia maniqueísta do Ocidente como barbárie civilizatória. O Ocidente, isto é, Auschwitz, representa para Müller o princípio da aceleração tecnológica, movido pelo pensamento instrumental do Entendimento kantiano, e a este princípio ele opõe, contra avalanche civilizatória, o Leste, a estepe e sua reserva territorial seriam um caminho alternativo a esta força “colonizadora”. O Esclarecimento coloniza a “Vida”, as reservas vitais da cultura.
Ora, estes temas vinculavam-se de maneira inequívoca aos motivos românticos da crítica à civilização. O Ocidente, para Müller, seria assim a “puta Babilônia” do consumo, dos dejetos das “grandes idéias”, com o fim da “experiência autêntica”, que o socialismo realmente existente supostamente representaria. Ele estilizou de tal maneira esta visão de mundo que se tornou impossível, a partir de certo ponto, dissociá-la de uma relação neurótica diante de uma realidade que o desmentia.
Há um ensaio bastante emblemático desta visão de mundo maniqueísta, “Alemanha Nenhum Lugar”, de 1991, em que se retematiza o conflito entre “Roma e Bizâncio”, o Ocidente como Novo Império Romano e o Leste como Bizâncio.
Depois da Queda do Muro, a Alemanha estaria literalmente na fronteira dos dois impérios, de duas visões de mundo, como uma fratura, uma “zona de terremotos” entre dois mundos antagônicos.
Ele sugere que Adenauer enxergava o Elba, na época a fronteira com a Zona de Ocupação Soviética, como uma “fronteira asiática”, ou seja, a criação da República Federal fora uma reação ao medo de invasão da “estepe asiática” sobre o “mundo da manufatura alemã”. Dessa maneira, o Leste começava exatamente onde os romanos haviam parado há dois mil anos.
Neste romantismo, o Ocidente é também um veneno ao espírito alemão, à sua vitalidade orgânica.
Grande parte da plasticidade das imagens de Müller decorre desta mescla e conjuração de forças vitais, que projeta uma metafísica da História, como vemos em suas peças “Mauser” e “A Missão”. Estas forças vitais se opõem à linearidade colonizadora do Esclarecimento, à sua obra civilizadora. Ao mesmo tempo, este repertório de metáforas e tiradas escatológicas que alimentava naqueles anos a contento a máquina folhetinesca da República Federal. Foi sem dúvida um papel bem desempenhado e de grande ambigüidade e todos os críticos que me jogam na cara o fato de eu utilizar as declarações e entrevistas de Müller de maneira literal fazem a mesma coisa, só que com outros própositos. O que me interessa é a visão de mundo subjacente destas declarações, e esta visão de mundo é artística e política ao mesmo tempo, como o próprio Müller se cansava de repetir.
Já Botho Strauss poderia ser visto como a variante “hedonista” desta crítica civilizatória.
Contudo, Botho Strass é um intelectual já criado num sistema democrático com laços fortes com as tradições culturais do Ocidente, com a Inglaterra e a América, ao contrário de Müller e outros intelectuais como Cristha Wolf. No final dos anos oitenta, quando a reunificação se aproximava, Strauss redescobre a Nação como um valor metafísico, ao demonstrar cada vez mais um mal-estar civilizatório diante da “Decadência” cultural do entretenimento e da cultura dos talk shows. Como dramaturgo, Strauss está impregnado do “pathos” trágico que vê o conforto e afluência que o pluralismo democrático produz como uma espécie de doença, ou seja, ele experimenta o “vazio” do centro social como a decadência dos valores substanciais e das visões de mundo tradicionais. Strauss recupera, dessa forma, a busca romântica e restaurativa da unidade perdida entre política e poesia. De fato, ele busca uma unidade imaculada e pura de uma história ainda não corrompida pelo nacional-socialismo, reabilitando politicamente o caminho romântico alemão para a modernidade, antes deste desvio. É uma tentativa curiosas de amputar da história esta parte podre que se alimentava do mesmo manancial romântico.
Strauss mergulha tão fundo neste romantismo seminal do XIX que se opõe até à tradição do “Aufklärung”, que ele passa a propagar a simbiose de liberdade individual e essência nacional como “Volksgeist”, uma comunidade autêntica de laços afetivos antes que a sociedade burguesa se estabeleça. Em outras palavras, a fantasia pré-burguesa de uma virtude e ingenuidade do indivíduo. Esta espécie Pólis “novaliana” seria organizada pelo ideal da Poesia, o Estado como poesia.
Já em Peter Handke,
temos uma variante menos refletida deste anti-ocidentalismo, em oposição ao nível de auto-reflexividade da arte de Strauss. Enquanto Bothos Strauss propõe uma espécie de sacerdócio artístico, este seria o pressuposto, pois somente na medida em que o artista se volta sobre si mesmo, ele é capaz de encarnar um ideal político, Handke engaja-se diretamente na política real como no caso da Guerra dos Balcãs. Handke engajou-se ao lado dos sérvios, idealizando o regime sérvio de Milosevic, como se este fosse a vítima da difamação da mídia ocidental.
Ele passou então a acusar a Nato
de entidade fascista e terrorista a serviço do massacre da “verdadeira identidade” do povo sérvio. E mais uma vez reaparece o fantasma romântico que já havíamos mencionado, só que transferido numa outra essência popular, ou seja, uma Sérvia ideal
como reduto autêntico de um espírito não destruído pelo consumismo ocidental.
Este seria um pressuposto romântico em Handke, mas traduzido de maneira explícita em seu engajamento à Sérvia. Além do que, e dito de maneira “neutra”, Handke é um tipo de pessoa meio impulsiva e truculenta, muita agressiva, um tremendo egocêntrico que se coloca ao lado de Milsovic para defende-lo no Tribunal Internacional de Haia contra os crimes contra a humanidade de seu regime.
José Galisi Filho – E o que mudou neste caráter anti-ocidental da inteligência depois do genocídio do 11 de setembro? As reações intelectuais foram maioritariamente histéricas, indo do espectro do delírio à acusação franca à América. O músico Stockhausen afirmou que o genocídio foi quase um “ato puro de vanguarda” em sua bestialidade. Já Grass e Martin Walser culpam a política externa norte-americana. Sloterdijk, que o Sr. denomina de “apóstolo da auto-justiça”, mal disfarça a alegria de ver a uma América bombardeada, perdendo finalmente sua invulnerabilidade. A memória das tempestades de fogo Hamburgo (Operação Gomorra) e Dresden (fevereiro de 45) é um dado profundo da identidade alemã, ainda presente na população. Diante da diante da relativa irrelevância da Europa, que papel caberia à “inteligência” alemã?
Richard Herzinger – Para minha surpresa, o 11 de Setembro mostrou finalmente, de maneira cabal, que estes sentimento de aversão ao sistema ocidental da Alemanha estão mais disseminados entre a população do que se supunha. O ressentimento intelectual é parte de um complexo de inferioridade e medo, vale a pena analisá-lo de longe. Montou-se uma verdadeira operação de guerra durante a visita de Bush a Berlim.
Até agora era este sentimento anti-ocidental de matriz romântica parecia exclusiva de intelectuais e artistas que têm a licença poética para falarem o que bem quiserem, mesmo diante do horror, mas ele não parecia ter uma expressão política tão clara. E agora, para mim, fica evidente o contrário. Este anti-americanismo é mais forte do que pensávamos. Passado um primeiro momento de choque e solidariedade popular, mais por medo, justamente como você mencionou, a memória da destruição pelo ar é um dado mal resolvido e acabado do passado- e apesar do governo de Schroeder ter sido o único que prometeu de “solidariedade ilimitada à OTAN-, esta decisão política não tem nada a ver com este profundo sentimento anti-americano na população.
Este sentimento indica duas coisas: em primeiro lugar um complexo de inferioridade de ser dominado pela América, já que a Europa não consegue definir qual é o seu papel neste novo mundo.
Mas é um sentimento ambíguo, pois nunca houve nenhuma época da história européia em que houvesse tanta liberdade e conforto, sem nenhuma guerra, com exceção da Guerra do Balcãs.
É um sentimento ambíguo, pois a Era de Ouro da Europa foi a era de Ouro da Pax Americana. Foi sob a tutela americana que nós alemães atingimos este patamar social. É um mal-estar por se beneficiar dos efeitos indiretos desta Pax, mas também diante da impotência que ele significa.
Antes de responder pela política externa alemã, Fischer enfrentava policiais
Por outro lado, este anti-americanismo traz em seu cerne um complexo de medo atávico, pois para a população este acontecimento diz respeito apenas à América, seria um fato isolado.
A população acredita que estes terroristas, que afinal saíram daqui mesmo, de Hamburgo, não vão cometer uma barbaridade destas por aqui, pois nós não temos nada a ver com eles. Por que eles atacariam nossas usinas nucleares, ou como nesta semana se afirma iriam abater um grande avião de carreira no espaço aéreo de Frankfurt? Ou seja, medo e inferioridade cominam-se neste fronte. Ou seja se permanecemos neutros, não seremos atacados, pois não temos nada a ver com eles, somos apenas alemães.
Mas no campo intelectual surgiu desde o 11 de setembro uma busca desesperada pela culpa dos americanos. Enfim, o subtexto é: “mas os americanos vinham pedindo por isto”. Enfim, eles têm de ser culpados. Esta é a razão que leva Günther Grass, Soloterdijk e Walter Jens, a maioria esmagadora da intelectualidade de maneira grotesca a pôr a culpa na América pelo que aconteceu no 11 de setembro, no “imperialismo” e na “unilateralidade” do governo de Bush que leva estes desesperados e pobres terroristas suicidas a uma reação tão radical. Ou seja, são argumentos tão frágeis que tenho certeza de não convencem nem a eles mesmos.
É como se estes terroristas fossem explorados que não tinham como reagir. Para não falar da palavra de ordem da globalização Eu particularmente fico impressionado com o que ouvi, com a falta de sensibilidade moral e intelectual de algumas de pessoas que considero inteligentes como Günther Grass. Grass lamenta que tenham morrido 3000 inocentes civis americanos, e no cálculo dele isto não e nada diante das vitimas da fome do mundo produzida pela Pax Americana. Lamento, como alemão, que Gunther Grass não tenha sequer entendido que a sociedade americana é complemente heterogênea, que ela não apóia as medidas unilaterais de seu governo, os Estados Unidos são a pátria da desobediência civil, que a população americana foi, é e sempre será isolacionista.
No WTC havia pessoas de mais de 100 nacionalidades, sobretudo nações do Terceiro Mundo, muçulmanos e muitos hindus morreram naquela fornalha de Nova Iorque. Esta cegueira diante da realidade é um forte distúrbio neurótico no qual o medo nos leva a achar argumentos, por mais absurdos que sejam e mais uma vez nos afastar do real diante de algumas fantasias. Argumentos que nos comprovem que não temos nada a ver.
José Galisi Filho – Neste sentido, para falar com o historiador Heinrich Winkler, “O Longo Caminho para o Ocidente”, ainda não se perfez na Alemanha?
Richard Herzinger - Muito longe disto. O que se vê é que em todos os debates na esfera publica por aqui é como é difícil fugir do pathos moralizante, como no debate sobre a imigração. Como é difícil para a Alemanha aceitar-se finalmente - o que já é um fato irreversível-, como uma nação nao-homogêna etnicamente. Ou seja, vivemos num tempo que Habermas definiu como a constelação pós-nacional. As nações não são e nem podem mais ser mais homogêneas etnicamente num mundo globalizado. Embora a Alemanha esteja na dianteira deste processo como o pais europeu com o maior percentual de estrangeiros, a política não consegue traduzir esta realidades num programa de ação, ficando a reboque de um eleitorado temeroso e daquelas imagens imagens originais como se estivéssemos num container isolado. É o debate recente sobre uma suposta “Leitkultur” alemã, ou seja, e traduzindo de maneira trivial: primeiro temos de germanizar este gente para uma cultura homogênea dominante alemã. É risível. Mais uma vez reaparece o espírito romântico do Volksgeist, como se ele existisse, como se tivesse existido, como imaginavam os nazistas, em algum momento da História deste país, uma “Leitkultur” alemã que pudéssemos incutir nos novos bárbaros. E neste sentido mas uma vez, os americanos, o que não deixa de ser irônico, são o suspeito numero um, pois a sociedade americana é a prova cabal de que a fantasia romântica da pureza racial não existe e sim o pluralismo, sobretudo cultural. A América é o modelo da sociedade multicultural, mas especificamente no caso da Alemanha, temos um dificuldade muito, em função desta herança romântica e do desastre que ele significou em nossa história, em aceitar que não somos mais, ou que nunca fomos “homogêneos”, isto é que não exista nenhuma origem, nem ponto de partida fora do tempo ao pudéssemos recuar nossa imaginação.
José Galisi Filho – Mas pela primeira vez em sua história, parece e existir na Alemanha uma convergência positiva de Estado e Nação, isto é, a normalidade democrática, finalmente, começa a apagar estes fantasmas e seus profetas. Por que a República de Berlim não precisaria de centro, ou o novo centro, como o Sr. afirma em seu novo livro, um ensaio político? Há muitos ponto em como entre seu argumento e o ensaio clássico de Hans Magnus Enzenberger, “Mediocridade e Loucura”, de 1984. O Sr. poderia discorrer sobre eles?
Richard Herzinger – A expressão República de Berlim surgiu no início dos noventa vinculando a expectativa de que com o retorno da capital, em oposição á provinciana Bonn, a Alemanha se tornaria novamente uma nação forte, com uma capital que representasse o centro de gravidade europeu em todos os sentidos: cultural, político e econômico, que pudesse fazer a mediação. A República de Berlim projetava no início dos noventa a promessa do Centro, do um Novo Centro, expressão que mais tarde a coalizão SPD Grün tornaria programa de governo como Schröder em 1998.
E foi justamente no momento que Berlim tornou-se novamente a capital, que se constatou finalmente o contrário, ou seja, que em vez de Berlim representar, este novo centro mediador, os conflitos explodiram com toda a força depois de décadas de um consenso harmônico e de status privilegiado que a cidade tinha durante a Guerra Fria, escondendo seus problemas reais e sua diversidade: conflitos étnicos com minorias, mas sobretudo conflitos sobre valores fundamentais como o capital genético e seu gerenciamento, ou seja, o debate sobre a produção artificial de vida. Este foi a primeiro grande debate da República de Berlim, o debate que colocou as questões essenciais do futuro Aquilo que era até anos atrás natureza tornou-se um problema muito sério com a manipulação genética implicando uma redefinição da esfera básica de direitos constitucionais do indivíduo, o cerne de qualquer democracia. A irrupção destes novos conflitos mostrou também que aquele sistema de valores que organizava a esfera pública em nosso pais nas últimas décadas não tinha mais o Centro, pois estas questões, por definição, não tem nenhuma solução ética, em princípio as questões morais colocados pelo debate genéticos são insolúveis e somente podem gerenciadas na esfera política de maneira pragmática, quando criamos compromissos. Foi isto que mudou o centro de gravidade, no meio ponto de vista, da esfera pública alemã e lhe trouxe uma nova percepção: o centro está vazio, não há nada nele, as idéias orbitam ao seu redor, as idéias morais decorrentes do problemas do avanço tecnológico, mas este lugar “mágico”, em nome do qual se proclamava o consenso e em nome do qual os intelectuais reivindicavam uma tutela moral, desapareceu e descobriu-se, assim, finalmente que só os um país normal e democrático, enfim, a Alemanha descobriu-se como uma sociedade aberta na qual a tutela destas doutrinas proféticas e românticas não atinge mais a realidade e fica cada vez mais distante. Berlim acelerou estes conflitos e a desorientação e criou um impulso modernizador fortíssimo em nossa sociedade, transformando em sociedade aberta, a saber uma sociedade das questões em aberto livre da tutela moralizante do debate.
O SPD procurou com o Novo Centro reabilitar este mito do centro forte, mas, ao proclamar isto, o SPD se pretendia representar o conjunto da sociedade, um conceito alias que tem para nos uma sugestão quase que mágica, pois ele nos induz a acreditar que exista no centro algo valores substancial a priori e na verdade, quando os aproximamos deste centro, percebemos que ele é vazio e a tarefa da política é construir, diante de cada nova situação, os compromissos que regulamentam os conflitos. A coalizão que entrou no poder com grandes expectativas transformou-se desde então no governo de administração permanente de crises. Um governo que foi de um crise a outra, sobretudo na questão dos Balcãs que mexeu com tabus sérios de nosso passado. Este conceito governo de crises não é uma censura, mas a constatação de que com as mudanças a política tornou-se uma administração regular das crises. A ilusão do Centro rompe-se de vez com a República de Berlim e agora podemos ser pragmáticos, é um impulso libertário, porque nos traz a pluralidade, as discussões e um maior espaço de liberdade, nos torna, no bom sentido do termo, liberais. Ninguém pode ocupar mais este centro.
Hans Magnus Enzensberger foi um dois primeiros a insistir na normalidade democrática do centro vazio contra o pensamento unificador e metafísico.
Em “Mediocridade e Loucura” e um elogio da normalidade emancipada de um núcleo substancial, normalidade no sentido de Enzensberger significa uma variante do Esclarecimento e do pragmatismo: é sempre possível fazer “mais alguma coisa”, sem “surpresas” e “milagres” dos grandes esquemas explicadores da sociedade como unidade homogêneo, e isto, como Enzensberger afirma, é revolucionário.
Isto quer dizer também que, ao contrário do que está no senso comum, a sociedade aberta não é dividida pelos conflitos, mas unificada por eles. São os conflitos que nos unificam, e não o contrário. Diante da pluralidade de opiniões, substratos culturais, religiosos, étnicos e de percepção e sistema de valores, estes conflitos nos tornam plurais. Não são os aparentes valores inquestionáveis desta metafísica dos grandes esquemas teóricos, que unificam a sociedade, mas a ação política real.
José Galisi Filho – Neste sentido haveria diferenças entre Stoibler, que está à frente nas pesquisas e a continuidade da coalizão de Schroeder?
Richard Herzinger – Há poucas diferenças entre ambos, diria no grau do populismo. Com Stoibler haveria certamente uma ênfase nestes dados do conservadorismo no debate imigratório ou na questão do casamento homossexual. Mas mesmo aí haveria compromissos e a administração de crises. Ambos os lados, por um lado os verdes e o SPD, por outro o CSU CDU e FPD ainda estão fundamentos ainda num consenso da velha republica Federal, ou seja de que seja possível harmonizar os interesses, quando na verdade este consenso, que fundou a Alemanha Federal, acabou para sempre. Eles procuram ainda ser os baluartes do “consenso” para manter o centro, o novo centro, tanto faz se mais à direita ou à esquerda.
Agora Stoibler procura tirar partido das promessas fracassadas deste governo de reduzir pela metade o desemprego. Não podemos estar certos se Stoibler ganhará, já que o eleitorado tem mudando muito rapidamente nestes últimos anos. Este é um aspecto interessante da política eleitoral. As mudanças de tendência do eleitorado são cada vez mais rápidas. Não há mais o centro que sempre votava num partido e no outro. Hoje as posições flutuam ao sabor das conjunturas. Sempre houve na Alemanha coalizões duradouras, a Grande Coalizão dos sessenta, o 16 anos da Era Kohl, talvez o governo de Schroeder dure apenas estes 4 anos, ninguém sabe. As pesquisas diziam ha duas semana que Stoibler seria eleito, agora, afirmam o contrário.
José Galisi Filho – A República sem Centro é também uma república de Desempregados. São 4 milhões. Não existe “direito à vadiagem na Alemanha”, afirmou Schroeder em entrevista ao Bild. O que quer dizer isto? O Sr. discorre em seus ensaio sobre uma iniciativa de desempregados berlinenses de Prenzlauer Berg de criarem um movimento e “desempregados felizes”. Como é possível ser desempregado e feliz na República Federal?
Richard Herzinger – Esta expressão populista e autoritária de Schroeder é em primeiro lugar uma difamação aos desempregados e busca desviar o ressentimento popular diante das dificuldades de financiar um sistema social. Apesar de tudo, nossos benefícios sociais ainda são um modelo no mundo, mas o financiamento deste sistema tornou-se incompatível com o novo mercado de trabalho, que cresce cada vez mais e do qual se aproveitam grupos que não precisam em absoluto de ajuda social.Nostaligia de Capitalismo e da Era de Ouro da Plena Ocupação
Justamente aqueles que mais precisam de ajuda social estão sendo atingidos diante da redução destes benefícios, enquanto certos funcionários públicos gozam de privilégios obscenos e de pensões. O ressentimento que Schroeder tenta mobilizar é real. As aberrações estão todos os dias na imprensa marrom, mas daí a difamar os desempregado com este populismo barato. Dahrendorf, um grande liberal, rebateu esta frase, dizendo. Justamente na sociedade liberal o direito à vadiagem é sagrado, o direito de não ter de trabalhar sob o chicote. Este seria um direito fundamental da sociedade liberal. Os desempegados felizes de Prenzlauer Berg, o centro da cena boêmia berlinense, .formulam, demaneira surrealista, algo muito simpático, para mim: diante do fracasso da política, podemos formular uma variante poética, um estilo de vida alternativo. Seria possível nesta sociedade altamente tecnológica e mediática viver num nicho de felicidade sem ter de trabalhar, sem se sentir culpado por ser desemrpegado, eles propõem happenings sessões de vadiagem. Se o desemprego nos leva a um tempo morto e a uma condição passiva na qual vivemos a consciência infeliz do não desempenho, por que não dar à preguiça uma força produtiva? Isto enfurece muitos que os chamam simplesmente de vagabundos, mas outros os convidam aos talk shows.